“Os enfermeiros
Por Monica de Bolle
“Coronel Felisberto não era só rabugento. Se
fosse só rabugento, vá; mas ele era também mau, deleitava-se com a dor e a
humilhação dos outros.” Os coronéis da velha política brasileira não são só
egoístas. Fossem só egoístas, vá; mas são também maus, deleitam-se com a dor e
a humilhação dos outros. Não há conflito de interesse que não possam superar
por meio do convencimento de que nesse mundo peculiar chamado Brasil não há
divisórias a separar o que pode e o que não pode.
O Procópio de Machado de Assis
até que tentou. Conflitado por receber dinheiro de personalidade demasiado
tóxica, demitiu-se não uma, mas algumas vezes. Mas Felisberto roubou-lhe as
forças. Por fim, lá ficou como o enfermeiro do coronel, sujeitando-se a todo
tipo de humilhação. Até o dia em que, tomado de raiva e ressentimento,
estrangulou o enfermo. Crime mais que perfeito, visto que Felisberto sofria de
aneurisma. Procópio o enfermeiro recebeu em testamento toda a sua fortuna. E
eis que o conflito evaporou-se. Procópio não matara o coronel com suas mãos, as
moléstias o fizeram – “a verdade é que devia morrer”.
Os enfermeiros do governo Temer,
todos os homens do presidente, tentam emular o comportamento de Procópio. São
os enfermeiros da economia que por ela zelam, enquanto o País sofre abuso atrás
de abuso de todos os que não sabem distinguir as linhas que demarcam conflitos
de interesse de naturezas mais diversas.
O presidente que utiliza cadeia
nacional para fazer defesa em causa própria com dinheiro do contribuinte – tal
qual a antecessora –, que usa os advogados da União para montar sua defesa.
Juízes de tribunais superiores que criam controvérsias e constrangem o Poder
Judiciário ao fazer pronunciamentos duros a respeito da Operação Lava Jato.
Relatores da reforma trabalhista investigados pelo STF por envolvimento em
empresa terceirizada que coagia funcionários demitidos a renunciar às verbas
rescisórias e a devolver a multa do FGTS. Partidos da base governista que não
sabem o que fazer, já que alguns de seus mais proeminentes políticos podem
estar prestes a ver o sol nascer quadrado.
Todos justificam suas posturas
como Procópios do autoengano: recusam-se a enxergar em seus atos os conflitos.
Usam como justificativa a proteção à enfermaria da economia. Já não se pode
criticar alguns enfermeiros da equipe econômica sob o risco de tornar-se
traidor da pátria.
A inflação brasileira está em
3,6%, a perspectiva é de que continue a cair. Com seu tecnicismo competente, o
Banco Central conseguiu alcançar o Santo Graal do regime de metas, a ancoragem
das expectativas. Ainda que a queda inflacionária seja também resultado das
moléstias econômicas que assolam o País, não há dúvida de que preços que sobem
mais lentamente seja algo bom.
Antes fosse a inflação nossa
principal algoz, como em épocas anteriores. Afinal, essa sabemos combater.
Infelizmente, o Banco Central não é nem Procópio nem Felisberto, nem
protagonista nem coadjuvante. Muito menos a última trincheira contra a sanha
populista que ainda assombra o Brasil, como parecem pensar alguns. Mantenhamos
a mansidão com o Banco Central. Ele está apenas fazendo o seu trabalho, o que é
muita coisa nesse Brasil atormentado.
Mas, e o Ministério da Fazenda?
Qual a sua responsabilidade em relação à queda contínua da arrecadação? Qual a
sua responsabilidade em não ter, quando podia tê-lo feito, exigido a reversão
completa de todas as desonerações atabalhoadas de Dilma? Qual a sua
responsabilidade em não ter conseguido frear os piores instintos perdulários do
presidente cercado de dúvidas sobre sua idoneidade a quem servem? Até que ponto
é possível autojustificar a permanência no governo manchado de Michel Temer em
prol do País?
São apenas perguntas. Perguntas
que deveriam incomodar mais do que incomodam, que deveriam forçar reflexão
sobre o País que queremos ter. País com regras e governança, onde Procópio o
enfermeiro não vira impunemente Procópio o assassino, ou o País do século 19
tão bem descrito por Machado de Assis? Por enquanto, tudo o que temos é a
lápide brasileira: “Bem-aventurados os que possuem, porque eles serão
consolados”.
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