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sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Bolsonaro e a maldição da meia-sola





“Bolsonaro e a maldição da meia-sola
      
Por Fernão Lara Mesquita

As piores doenças crônicas do Brasil têm o peronismo no seu DNA. A socialização da teta insuficiente, cuidadosamente dimensionada para que não cesse nunca a dependência do agraciado, é a versão benigna da doença universal do populismo. A cepa peronista é a maligna. Rói darwinianamente, de geração em geração, a moral das nações onde se instala.

A corrupção das elites pelo acesso ao privilégio através da riqueza, mesmo a conquistada por mérito, é um processo natural que, em última instância, promove a mobilidade social e a renovação das sociedades. Mas o peronismo, que Getúlio Vargas instilou nas veias do Brasil, corrompe a sociedade a partir da base. A República Sindicalista (“Trabalhista”, na versão macunaímica) criminaliza o ato de empregar e estatiza a progressão na escala social, o que é veneno bastante para deixar qualquer economia paraplégica. Mas em paralelo instala, onipresente nos céus da nação, a mensagem deletéria que tem o potencial de salgar para todo o sempre a terra arrasada: “Traia, minta, falseie que o governo garante”.

Graças à prosperidade da indústria nacional de achaque aos empregadores o Brasil tem hoje mais “escolas de direito” e produz mais “advogados” de botequim por ano que todo o resto do mundo somado. Nelas não é preciso ler um livro de direito sequer para, ao fim do percurso, ganhar a prerrogativa de cabalar trabalhadores (em dificuldade ou não é fator que se vai tornando irrelevante na medida em que o caráter aviltado passa a ser padrão) para dividir com eles um dinheiro tão fácil quanto certo de ser arrancado às vítimas por tribunais que não são de justiça, são “de classe”.

O resultado é a geleia argentina que só se diferencia da do Brasil pela longevidade e por vir com letra de tango, e não de samba.

A doença, como todas as que matam seus hospedeiros, só se esgota no seu próprio paroxismo. Mortos todos os empregos, passadas quatro gerações aqui, cinco lá, com o País tentando desesperadamente livrar-se da herança maldita, não é na massa dos desempregados e subempregados vivendo sob a lei do cão no favelão nacional que se instala a resistência. É nessa horda de caçadores de cúmplices para achaques e nos “sindicatos” e “partidos políticos” estatizados que exploram o monopólio do comércio de privilégios para fazer corporações selecionadas por sua força eleitoral saltar sem fazer força para os diferentes degraus da classe média não meritocrática, ou para guindar seus patronos à nobreza da privilegiatura que vão instalando em metástase em todos os órgãos vitais de governança do País.

A fase terminal dá-se com a infestação da imprensa, o aparelho imunológico das sociedades democráticas. Isolados pela língua que deu eficiência redobrada ao patrulhamento ideológico, já vamos para a 3.ª geração dos produtos do modelo gramsciano de censura imposta pela ameaça de assassinato midiático, exílio social e asfixia econômica dos “hereges”. A imprensa é a voz da classe média e a classe média que sobra é, cada dia mais, a classe média de teta. A meritocrática está ameaçada de extinção pela progressiva supressão do meio ambiente capaz de sustentá-la.

Na semana retrasada festejou-se como “uma vitória” a “confirmação” da MP da Liberdade Econômica pelo Congresso. A lista dos itens desbastados dela – todos os que apontavam na direção da meritocracia e da redução do espaço para o achaque ao trabalho e ao empreendedorismo, assim como ocorreu com os dispositivos revolucionários (desconstitucionalização dos privilégios e regime de contribuição) da reforma da previdência – testemunham a precisão e o zelo religioso com que a guarda pretoriana do status quo afasta de nós qualquer chance de alforria real. Sem maiores aprofundamentos, no entanto, a imprensa chama candidamente de “polêmicos” os itens amputados, num quase endosso à sua evicção, e a MP que sobra segue festejada como o que já não é.

É impossível definir exatamente quanto é por covardia, quanto por “superação orgânica do senso comum” e “absorção do discurso ideológico hegemônico” (Gramsci) e quanto é pela ignorância consequente do sucesso da censura às alternativas possíveis, mas o fato é que, na imprensa ou fora dela, ninguém mais no Brasil, nem mesmo seus “inimigos declarados”, diz sobre “O Sistema” a verdade inteira ou propõe qualquer coisa para substituí-lo. 230 anos depois da Bastilha e com o País literalmente se dissolvendo, ninguém se levanta para exigir Privilégio Zero Já ou plantar no horizonte, ainda que só como bandeira, a meta de devolver do funcionalismo para a função, vá lá, que seja a terça parte dos 45% do PIB que hoje os palácios surrupiam ao favelão nacional sem dar nada em troca.

Num mundo que demanda Margarets Thatchers, tudo o que o filtro de seleção negativa permite chegar “lá” são Macris e Macrons, cuja derrota se configura antes de a luta começar pela timidez entre covarde e cúmplice das “reformas” que encomendam.

A conspiração gramsciana, que vai longe em toda a América, inclusive a do Norte, é uma aposta na covardia humana, uma das mais formidáveis forças da natureza. Só a do instinto de sobrevivência é maior que ela. O que estamos começando a assistir no Brasil e seu entorno é ao duelo final entre as duas. E começou mal: o México derrapa na direção da volta ao populismo, a Argentina parece ter fixado o rumo da Venezuela, o resto da América Latina não bolivariana igualmente balança. E o que faz todos eles voltarem recorrentemente à estaca zero é a maldição da meia-sola...

Não há como nos darmos ao luxo de hesitações, porque a alternativa é o compromisso juramentado com o desastre. Mas a pergunta que todos quantos têm pena do Brasil têm a obrigação de se fazer é até onde poderá chegar este Jair Bolsonaro “toffolizado”, que, como todos eles, “elegeu-se vendendo mudanças radicais, mas age como se não as quisesse”, se, em vez de babar ovo incondicional e acriticamente para ele, não passarem a empurrá-lo com toda a força que a gravidade extrema da situação exige na direção daquilo que ele dizia ser.”

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Bolsonaro e os dentes da Lava Jato





“Bolsonaro e os dentes da Lava Jato
      
Por William Waack

O instinto de Bolsonaro de proteger a família e a prole o está levando a ajudar um lado na formidável briga sobre quem vai controlar as decisões das esferas políticas. No caso, atuando contra os pedidos explícitos de organização que foi tão importante na eleição dele, a Lava Jato.

A ira inicial do presidente é voltada contra órgãos como Receita ou Coaf que ele mesmo colocou sob a suspeita de motivação política ao investigar familiares dele. É isso mesmo, dizem ministros do Supremo. Sob o ímpeto investigatório (jacobinista, inquisitorial, autoritário ou ilegal, dependendo do ministro do Supremo) da Lava Jato, órgãos de fiscalização e controle excederam seus limites constitucionais.

Diálogos hackeados de expoentes da Lava Jato reforçam ainda mais essas percepções sobre a atuação política da força-tarefa – não importa mais se os diálogos são autênticos, se servem como provas, se configuram ou não abusos ou mesmo crimes por parte dos investigadores. Eles são percebidos como a cereja no bolo quando se afirma que juízes, procuradores e delegados se converteram numa espécie de “partido político” com o intuito declarado de influenciar os rumos gerais da política brasileira (seja qual for a justificativa deles).

Partes relevantes do Supremo e do Legislativo se reorganizaram para enfrentar o que consideram ser uma ação política, por parte da Lava Jato, que estava levando (na visão desses atores) ao “emparedamento” dessas instituições, controladas desde fora pela campanha anticorrupção. É muito relevante o fato de o Legislativo ter chamado a si a tarefa de coibir a atividade dos investigadores, por meio do PL do Abuso de Autoridade, e o STF está sentado no material com que pretende (as conversas hackeadas) encurralar seus críticos entre os aguerridos procuradores.

Bolsonaro tem de sancionar ou vetar itens da lei do abuso de autoridade, descrita pela Lava Jato como uma reação das “forças das trevas” que querem escapar incólumes de investigações. Lei que, de outro lado, é caracterizada por nutrido grupo de políticos e juristas como necessária “freada de arrumação” para recompor um mínimo de respeito à norma jurídica ao se combater crimes. A situação coloca o presidente como árbitro de assunto que o interessa diretamente do ponto de vista pessoal (ele acusa a Receita e o Coaf, por exemplo, de abuso), mas também dono de uma poderosa ferramenta política para enfraquecer a única sombra no momento sobre a própria popularidade, a do ex-juiz Sérgio Moro, herói da Lava Jato.

É uma situação de precário e perigoso equilíbrio. Os órgãos de Estado de fiscalização e investigação acham que a lei do abuso contraria o combate ao crime organizado, que depende da troca de informações sigilosas protegidas por lei ou que só podem ser acessadas por ordem judicial (que procuradores se esmeraram em driblar). Legislativo e parte do STF acham que os instrumentos para combater ilícitos são suficientes, e o resto é abuso.

Neste exato momento Bolsonaro está conseguindo simpatias do Legislativo e da classe política, da qual depende para a aprovação de qualquer legislação relevante, sem que o público o perceba ainda como uma figura da qual a Lava Jato já está exigindo postura decisiva em seu sentido. Moro já formulou quais vetos gostaria que o presidente exercesse ao apreciar a lei do abuso de autoridade, ou seja, o prestígio do ministro da Justiça está em jogo. Bolsonaro não tem como agradar a todos.

Está criado um interessante paradoxo na política brasileira: eleito em boa parte como efeito da Lava Jato, Bolsonaro se sente hoje tão mais forte quanto menos dentes afiados ela tiver.”

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Não há deuses nesta tragédia





“Não há deuses nesta tragédia
      
Por José Nêumanne

O presidente Jair Bolsonaro acaba de levar um pito do decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, por ter devolvido ao Congresso cópia de medida provisória (MP) ali antes derrubada. Ele próprio reconheceu que havia errado, embora tenha atribuído a iniciativa a um assessor do qual não declinou o nome. Antes disso havia encaminhado ao mesmo destinatário outra MP, transferindo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) do Ministério da Economia para o da Justiça. E os parlamentares o derrotaram, mantendo a inteligência financeira subordinada ao primeiro. Agora resolveu desviar aquele órgão para o Banco Central (BC). Um vaivém descabido, dirá qualquer brasileiro sensato. Mas o chefão não terá violado a Constituição. O Congresso é que poderá alegar que não há urgência, já que a subordinação do Coaf foi decidida faz muito pouco tempo.

O que motiva o chefe do governo a nunca se satisfazer com a subordinação do Coaf? Quando a MP foi para o Senado, o capitão dissuadiu a bancada de seu partido, o PSL, de derrubar a decisão da Câmara, passando o órgão para a jurisdição de Paulo Guedes. Para tanto argumentou que Economia e Justiça são pastas do mesmo governo. Governo, aliás, no qual ele diz que manda e não admite dúvidas quanto a isso, não sendo, portanto, um “presidente banana”. Mas sem fazer muita questão de parecer, como a muitos parece, um chefe abacaxi. De qualquer maneira, seu argumento foi abatido em poucos dias. Moro tinha nomeado Roberto Leonel presidente do Coaf. Paulo Guedes o manteve. Mas o incauto burocrata criticou o presidente do STF, Dias Toffoli, pelo decreto infame de proibir partilha de informações do órgão, do BC e da Receita Federal com o Ministério Público em investigações. Leonel caiu em desgraça não por Toffoli ser a mais nova flor do orquidário de Jair. Mas por este não admitir pôr em risco a interrupção do inquérito do filho no Ministério Público sobre eventuais maracutaias contábeis na Assembleia Legislativa do Rio.

Qualquer pai agiria no limite para proteger um filho? No caso, é possível argumentar que um bom progenitor, em vez de comprometer a própria reputação no exercício de um cargo público de altíssimo poder, exigiria do descendente que provasse a inocência que alega ter no decorrer do processo jurídico, com defesa baseada em fatos. Recorrer ao rábula reprovado em dois concursos para juiz a fim de paralisar uma investigação, providência a que o primogênito havia recorrido insistentemente, é, na prática, reconhecer a culpa dando uma carteirada. E pior ainda: dever um favor desses não favorece a quem deve nem a quem se deve. Este, aliás, aproveitou o ensejo para beneficiar sua consorte em idêntica martelada.

Não se deve, contudo, esperar do Congresso reação altiva e apropriada a essa inútil tentativa de tergiversar. Até porque, nesse quesito, o Poder Legislativo está muito distante de qualquer condição que lhe permita fazê-lo, como em momentos pretéritos, caso da histórica recusa a punir o deputado Márcio Moreira Alves, que o levou ao fechamento das portas manu militari na época tão venerada pelo capitão-em-chefe. Antes de se porem diante dessa possibilidade, os senhores que se dizem representantes da cidadania a achincalharam ao aprovarem com a pressa de quem foge do flagrante um projeto para enjaular o xerife e soltar o bandido. A vilania da tal lei contra o abuso da autoridade começa na autoria do amoral senador Renan Calheiros. E continua no desprezo ao regimento interno, numa votação simbólica de líderes de partidos sem expressão de um texto que terá graves consequências sobre o combate ao crime organizado e à corrupção, que afligem a Nação desprotegida.

O chefão da Câmara, Rodrigo Maia, eleito na bacia das almas e levado à chefia da Mesa por um acordão que reúne suspeitos, acusados e condenados do Centrão e da esquerda, fugiu da votação nominal.

Filho e cúmplice do ex-prefeito do Rio Cesar Maia, herdou do pai o amor pelo Botafogo, que inspirou seu codinome aos pagadores de propinas da Odebrecht, e enxovalhou a boa imagem de Ulysses Guimarães, pois houve quem tivesse a coragem de equipará-los. As chaves do céu por um átimo também estiveram nas mãos do chefe do plenário da cumbuca emborcada, Davi Alcolumbre, o Batoré. Liberado pela presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Rosa Weber, do apodo de investigado, por ter sido arquivado o inquérito do Ministério Público Eleitoral sobre suas contas de campanha, o amapaense não se sentiu confortável no papel de herói da eleição para presidência do Senado. Para começar, em cumplicidade com o relator da investigação sobre a fraude eleitoral de uma disputa com 81 votantes e 82 votos, Roberto Rocha (PSDB-MA), cancelou-a, por não ser capaz de ver provas em fato filmado e transmitido pela TV Senado.

Assim como Toffoli, que trocou a fidelidade ao PT por um lugar perto do sol Jair, o novo Davi parece bater às portas que levam ao velho Renan com a mesma sem-cerimônia com que atende aos cochichos do presidente, servindo aos dois senhores, como execra a fábula bíblica. Ensaboa as mãos sujas pela morte da CPI da Lava Toga com a mesma cortesia com que manobra nos bastidores para a Casa autorizar o caçula do clã Bolsonaro a ocupar a embaixada em Washington.

Paulo Melo, assistente de Walter Lima Jr. no filme Menino de Engenho, citou Coriolano, de Shakespeare, para resumir a cena: “Estais tão seguros quanto um carvão em brasa sobre o gelo ou o granizo exposto ao sol. Vossa virtude se resume em exaltar aquele que foi derrubado pelos próprios delitos e em maldizer a justiça que o puniu. Quem merece a glória merece vosso ódio; e vossas afeições são os apetites de um doente que deseja principalmente o que lhe possa piorar a doença. Aquele que depender de vosso favor nada com nadadeiras de chumbo e com juncos derruba carvalhos”.”

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Sabotagem





“Sabotagem
      
Por Pedro Fernando Nery

A juíza de Porto Alegre decidiu que a lei não vale, não porque fosse inconstitucional, mas porque a Lei é “ilegítima”. Assim, não deve valer a Lei aprovada pelos representantes da população na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, e sancionada pela Presidência da República. O poder do Congresso foi substituído por o de um seminário organizado por um sindicato de classe, com a presença de advogados e estudantes, que aprovou tese de que a lei é formalmente e materialmente “ilegítima”. A lei é a reforma trabalhista de 2017.

O seminário foi a Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, encontro organizado por uma associação de juízes trabalhistas, realizado durante dois dias em uma faculdade particular de Brasília. O leitor se lembra quem elegeu para representá-lo na Jornada? É porque não elegeu ninguém. Mas a juíza explica quem eram os poderosos votantes: juízes, advogados, sindicalistas, professores e estudantes.

Sim, a reforma que reduziu o número de ações trabalhistas e acabou com o imposto sindical obrigatório foi considerada ilegítima justamente por advogados trabalhistas e sindicalistas. E a juíza do processo 0020441-27.2018.5.04.0004 logo no primeiro parágrafo da sua decisão explica que a lei não se aplica, porque os presentes na tal jornada decidiram que as mais de cem mudanças na CLT são ilegítimas. 

Caso o leitor seja antipático à reforma trabalhista, vale extrapolar. A Jornada de Juízes de Direita pode decidir que o código penal é “ilegítimo”? A Jornada de Juízes Céticos da Mudança Climática pode ignorar totalmente o código florestal?

Aliás, o que era tão formal e materialmente legítimo na CLT anterior, originária de um decreto de um ditador, líder de um regime que torturava e de notórias inclinações xenófobas, racistas e antissemitas?

Piora

Além da ilegitimidade, a magistrada expõe outros argumentos para desconsiderar a nova lei. Alguns são Ctrl C + Ctrl V de um texto de sua autoria, publicado no site da Carta Capital antes da reforma entrar em vigor. O artigo elenca razões para não aplicar a reforma trabalhista. A razão mais interessante, porém, não foi transplantada do artigo para a decisão.

Em um impressionante exercício de sinceridade, a juíza diz que a Justiça do Trabalho não deve aplicar a reforma trabalhista porque precisa compreender que isso seria autofagia. Da reforma decorreria a redução do número de processos na Justiça Trabalhista, que seria “o caminho mais rápido para a sua própria extinção”. Arremata, ainda comentando que a aplicação da lei pelos juízes trabalhistas provoca racionalização das ações: “Não há como justificar a existência de uma estrutura própria de poder”.

O caso da juíza de Porto Alegre é isolado? Ou a Justiça é contra a lei? Passados dois anos da sanção da reforma trabalhista, é urgente discutir a sua sabotagem. Uma miríade de ações pede que o Supremo Tribunal Federal (STF) se posicione sobre a constitucionalidade de seus muitos trechos. Seja qual for o resultado, decisões heterodoxas – e perigosamente corporativistas – tenderiam a perder espaço.

A urgência se explica pelo quadro grave do mercado de trabalho, que alimenta a pobreza. Por exemplo, inovações da reforma voltadas à contratação formal de trabalhadores mais vulneráveis, nos moldes da exitosa experiência alemã da década passada, demorarão a florescer diante do medo fundado de judicialização. Vai que um juiz com preocupações corporativistas resolve anular o contrato com base em uma reunião obscura de sindicalistas e advogados com estudantes?

Se o saldo de empregos formais gerados no 1.º semestre foi o melhor em cinco anos, desemprego e desalento permanecem elevados.

Se o 2.º trimestre terminou com recorde de pessoas ocupadas – 3,5 milhões a mais do que o mesmo período de 2017, quando o Senado concluía a reforma –, é puxado pelos autônomos.

Soluções para a emergência no mercado de trabalho precisam ocupar espaço mais central no STF. Se é ao Poder Executivo e ao Legislativo a quem cabe tocar as reformas, é o Judiciário que as referenda, podendo corrigir seus equívocos e disciplinar os inconformados que tentam derrotá-las no tapetão.

A Constituição não é indiferente a esse drama humano: inscreveu como princípio da ordem econômica a busca pelo pleno emprego, e estabelece como objetivo da República a erradicação da pobreza.

Como lembra o ministro Ives Gandra Filho, nos países europeus que fizeram reformas trabalhistas a taxa de desemprego só caiu de forma mais palpável quando as Cortes constitucionais apitaram o fim do terceiro tempo.”

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Os onze - poder e soberba





“Os onze – poder e soberba
      
Por Almir Pazzianotto Pinto

“No Supremo, não se faz justiça quando se quer, se faz justiça quando se pode”, Ministro Moreira Alves

“De todas as nossas paixões e apetites, o amor ao poder é o de natureza mais imperiosa e insociável, pois a soberba de um homem exige a submissão da multidão.” A frase é do historiador Edward Gibbon (1737-1794), autor da monumental obra Declínio e Queda do Império Romano (Ed. Companhia das Letras, SP, pág. 93). Na doutrina da Igreja Católica, soberba, ira, luxúria, gula, avareza, inveja e preguiça são pecados capitais, manifestações de revolta contra Deus que provocam a destruição moral do homem e a condenação ao inferno. Segundo o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, Michaelis, por soberba entende-se a manifestação ridícula e arrogante de orgulho ilegítimo, que tem como sinônimos perfeitos orgulho, presunção.

Conquanto presente na vida privada, na qual se manifesta em ridículas demonstrações de vaidade combinadas com mediocridade, a soberba é encontrada mais frequentemente na vida pública, quando se projeta de forma agressiva, sem disfarces, sob a proteção do espírito de corpo, da vitaliciedade, do mandato, da toga.

A Praça dos Três Poderes é cenário ideal para manifestações de soberba. Poucos que a habitam conseguem escapar à atração do pecado. Por lá também passaram homens e mulheres despidos de vaidade. No período em que residi em Brasília, conheci exemplos de humildade e modéstia no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Não eram muitos. A fútil sensação de estar investido do exercício do poder, e de que este é infinito no tempo e no espaço, põe a perder boas vocações para a vida pública, esquecidas de que do êxito ao exílio a distância é diminuta.

O Supremo Tribunal Federal (STF) permaneceu décadas protegido pelo manto da discrição. Enquanto esteve sediado no Rio de Janeiro (1829-1960), raros eram os brasileiros, alheios ao reduzido círculo das profissões jurídicas, que o conheciam. Nomes de ministros permaneciam ignorados pela maioria da população. Exceção feita a decisões de repercussão histórica, como as encontradas na obra do ministro Edgard Costa Os Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal (Ed. Civilização Brasileira, RJ, 1964), debates entre ministros e intervenções dos grandes advogados ficavam confinados às páginas do Diário da Justiça e a repertórios de jurisprudência, não reverberando entre pessoas do povo.

Livros jurídicos sobre o STF proporcionavam limitadas edições, jamais alçando à categoria dos mais vendidos. O regimento interno do tribunal era assunto de pouco interesse, sendo raros os advogados interessados em consultá-lo. O ministro Celso de Mello, decano da Corte, é autor do opúsculo Notas sobre o Supremo Tribunal (Império e República), radiografia gráfica que dá a conhecer as alterações de denominação do órgão de cúpula da Justiça brasileira. O STF já se chamou Casa de Suplicação do Brasil, instalada pelo príncipe regente dom João em 15/5/1808; Supremo Tribunal de Justiça, denominação adotada pela Constituição de 1891; Corte Suprema, nome que lhe deu a Constituição de 1934; e, finalmente, Supremo Tribunal Federal a partir da Carta Constitucional de 1937.

A vida recatada do STF sofreu brusca alteração após a promulgação da Constituição de 1988, com o advento da TV Justiça e a transmissão ao vivo das sessões. Não existem armas tão perigosas quanto o microfone e a câmera de televisão. São mais letais do que o fuzil. Presidi o Tribunal Superior do Trabalho (TST) antes da TV e da mudança para o prédio projetado por Oscar Niemeyer, destinado a disputar com o Superior Tribunal de Justiça (STJ) em área construída e magnificência, como são as obras do célebre arquiteto. Reconheço as diferenças.

Desde as greves de São Bernardo valorizo o poder da mídia. No exercício da liberdade de que está investida, constrói e destrói reputações no espaço de minutos. Já aposentado, foi-me concedida a oportunidade de acompanhar as transmissões dos julgamentos pelo STF e de constatar como senhoras e senhores que se deveriam resguardar sob a proteção da toga aceitaram se envolver em exibições de poder e erudição e não vacilaram nas manifestações de orgulho, rivalidade e ira.

Não sou eu quem o diz. Valho-me do livro Os Onze – O STF, seus Bastidores e suas crises (Ed. Companhia das Letras), escrito pelos jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber, que põe a nu as entranhas do Supremo Tribunal com impiedosa revelação da realidade camuflada por expressões do tipo “eminente ministro” e “vossa excelência”. Reveladora é a passagem em que o ministro Edson Fachin declara que, entre advogado, professor e ministro, a diferença é “aquele paninho” ele tem “em cima das costas” (pág. 129).

Mesmo para o cético observador é cruel saber que a guarda da Constituição, promulgada sob a proteção de Deus para instituir um Estado democrático destinado a assegurar a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, como diz o Preâmbulo, está nas mãos de ministras e ministros conduzidos pela soberba.

“A vitaliciedade do cargo transforma os ambientes em cápsulas da personalidade de cada ministro, os quais também impõem suas normas de estilo ao gabinete” (pág. 50). Na visão dos autores de Os Onze, o STF dos nossos dias se transformou em arquipélago de 11 ilhas incomunicáveis, ou Estados autônomos e independentes, cada um deles capaz de declarar guerra ao Estado inimigo – o colega ao lado –, fazer sua própria política externa – com os outros Poderes – e pautar-se por um regramento próprio (pág. 44).

Não é esse o Supremo a que o povo aspira e a Constituição prescreve. A continuar assim, acabará por dar razão ao impetuoso deputado Eduardo Bolsonaro, que ameaçou fechá-lo com um soldado e um cabo.”

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Da ilegitimidade das nossas leis





“Da ilegitimidade das nossas leis
      
Por Fernão Lara Mesquita

Não é abuso de poder os representantes sabe-se lá de quem aprovarem anonimamente na madrugada, quase como gatunos usando máscaras, uma lei contra o abuso de poder?

O problema do Brasil vocal é ignorar olimpicamente a realidade e discutir as mazelas institucionais do País como se ele fosse uma democracia representativa. Não é. Nunca foi. Tem a chance de vir a ser se passar a encarar-se como o que é e tirar seus políticos e juristas do conforto de serem tomados pelo que não são.

Não se trata de defender que fique impune o abuso de autoridade. Mas é, no mínimo, farisaísmo fazê-lo sem mencionar que cumprir as leis que nos ditam implica, em primeiro lugar, a impunidade absoluta de quem as dita e da guarda pretoriana dos servidores que eles subornam com a dispensa de serem responsabilizados pelo que fazem e sofrer os efeitos da crise crônica que isso nos custa e, em segundo lugar, a impunidade de todo bandido não estatizado que puder pagar advogados para guiá-lo pelo infinito labirinto recursal desenhado para que nenhum julgado transite até o fim.

Encaremos a realidade, portanto. 1) Esta lei não foi feita para proteger o cidadão. Nunca ninguém se preocupou com o abuso dos três “pês”. As “excelências” só se moveram quando, pela primeira vez em nossa história, os ricos e os poderosos começaram a ser presos. 2) Também não é uma lei para disciplinar os três Poderes, é uma lei do Poder que tem sido preso contra o Poder que prende, sua polícia e o Ministério Público. 3) Tudo o mais nela está absolutamente desfocado, pois, sendo o seu principal detonador o “prejuízo” do “abusado”, fica sem resposta a pergunta: quando é que prender alguém, do chefe do PCC para baixo, deixa de prejudicá-lo?

Atribui-se a Rui Barbosa a frase: “A pior ditadura é a do Judiciário. Contra ela não há a quem recorrer”.

Há, sim! O que a revolução democrática fez, essencialmente, foi definir um novo “controlador mais alto do sistema”, sua majestade o povo, do qual passa a emanar todo poder. No Brasil, que de democracia nunca teve mais que a casca, o povo acostumou-se ao papel de “Geni” da privilegiatura, que pode “montá-lo” como bem entender. Mas a questão que, desde o primeiro dia, configurou-se como o maior desafio enfrentado pelos inventores da nova ordem não era “se” o Poder Judiciário deveria ser submetido ao povo, essa coletividade cujos elementos constitutivos ele tem por função julgar individualmente, mas “como” fazê-lo sem que ficasse prejudicada a isenção possível às instituições humanas que ele deveria manter ao fazê-lo.

Quando os governos das 13 colônias que aderiam à União foram formados nos Estados Unidos, seguiu-se, para a constituição do Judiciário, o padrão do absolutismo europeu, em que permanece encalhado o Brasil até hoje, no qual os chefes do Executivo nomeavam os juízes que teriam por função vigiá-los e julgá-los. Mas a contradição com o fundamento básico da democracia era evidente. Em 1830 já as 13 colônias, depois de muitas idas e vindas, tinham aderido ao novo modelo de eleição direta dos juízes pelo povo. Para se elegerem, no entanto, os juízes tinham de fazer campanha e, portanto, de conseguir dinheiro para isso, o que os tornava vulneráveis ao poder econômico, diziam os “contra”. Vulneráveis ao poder econômico todos nós, mortais, sempre somos, respondiam os “a favor”, e, sendo assim, preferimos que o nosso juiz vulnerável ao poder econômico possa ser destituído por quem o elegeu se não honrar seu mandato com um bom comportamento.

A norma mais sagrada do novo regime, que, não por acaso, chama-se “democracia representativa”, é a da fidelidade da representação do verdadeiro dono do poder – o povo –, que deve estar institucionalmente armado para fazer valer esse seu poder hegemônico. Por isso mesmo todos os cargos do funcionalismo público que têm por função fiscalizar o governo (Ministério Público e outros) ou prestar serviços diretos ao público (a polícia, entre outros) são, desde o início, diretamente eleitos pelo povo.

Como a maior preocupação inicial dos fundadores era, porém, evitar a volta da monarquia, os mandatos desses representantes, no desenho original, foram excessivamente blindados pelo tempo que durassem. Essa incolumidade logo mostrou seus dentes. Intocáveis por quatro anos, os políticos e funcionários corrompidos tinham tempo para se locupletar antes que os seus representados pudessem alcançá-los na eleição seguinte. Resultado: pelo final do século 19, o sistema estava apodrecido dos pés à cabeça, fazendo lembrar em tudo o Brasil de hoje.

A resposta, dada nas reformas iniciadas na virada para o século 20 que tomaram por base o remédio que a Suíça encontrara 40 anos antes para o mesmo problema, foi rearmar os cidadãos para atuarem diretamente contra os maus representantes. Eleições distritais puras para tornar transparente a relação entre cada representante e os seus representados, direito à retomada dos mandatos (recall) e referendo das leis vindas dos Legislativos, direito à iniciativa de propor leis que os Legislativos ficam obrigados a processar, eleições periódicas “de retenção” de juízes nos seus poderes a cada quatro anos. Eles podem ser indicados pelo Executivo, dentro de regras estritas, mas o povo os julga a cada quatro anos, o que tira o controle popular da porta de entrada, que tinha os inconvenientes acima descritos, e o reposiciona na porta de saída.

No Brasil, onde o sistema eleitoral não permite saber quem representa quem e o povo deixa de ter qualquer poder sobre o seu representante no momento em que deposita o voto na urna, as leis são feitas para os legisladores e contra os legislados, que têm de engoli-las do jeitinho que vierem. No mundo que funciona, toda lei pode ser desafiada e tem de ser chancelada por quem vai ter de cumpri-la antes de entrar em vigor. Por isso todo mundo, lá, respeita a lei e o povo todo zela pelo seu cumprimento e, aqui, todo mundo acoberta o desrespeito às leis porque elas são fundamentalmente ilegítimas.”

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

A preservação da Amazônia




“A preservação da Amazônia
      
Por Denis Lerrer Rosenfield

O Brasil é figurante do desmatamento em nível planetário como se os problemas do mundo estivessem concentrados na falta de controle do desmatamento em nosso país. Segundo essa opinião, a agricultura e a pecuária nacional são as grandes responsáveis. Grandes poluidores desaparecem de cena e aparece o Brasil como culpado dos males ambientais. Parece a hipocrisia não ter limites, quanto mais não seja também pelos interesses do agronegócio em outros países, que querem prejudicar nossa competitividade.

Comecemos pelo nosso alto grau de preservação ambiental. Toda propriedade no Brasil, ao contrário de outros países do mundo, é obrigada a preservar a vegetação nativa, segundo a região em que estiver localizada. Na Amazônia, por exemplo, a reserva legal é de 80% da propriedade. Na área de Cerrado o porcentual chega a 35% e nos Campos Gerais, como no Sul, 20%. Note-se que o direito de propriedade é relativizado em função da preservação, fazendo os agricultores andar de mãos dadas com o meio ambiente.

Se pensarmos em termos gerais, 25,6% da área do território nacional é preservada pelos próprios agricultores. Isso equivale a 218 milhões de hectares, o que corresponderia, para efeitos de comparação, segundo a Embrapa Territorial, a dez países europeus, dentre os quais os maiores, como França, Alemanha, Reino Unido, Itália e Espanha. Observe-se ainda que nenhum outro país, mormente os que mais acusam o Brasil de destruição ambiental, tem um instituto semelhante. Por que não começar, se são tão responsáveis ambientalmente, por introduzir a reserva legal? Poderiam iniciar por um módico índice de 20%. Porque, muito provavelmente, a grita seria geral: “Atentado ao direito de propriedade”, “redução da competitividade”, “mudança da cultura rural” e assim por diante. Será que tudo isso não lhes antepõe um problema de ordem moral? De onde vem essa arrogância, essa posição de superioridade?

Ainda conforme a Embrapa Territorial, validada pela Nasa, em termos de preservação ambiental, somem-se a isso 13,8% de terras indígenas, 10,4% de unidades de conservação integral, as duas ascendendo a 206 milhões de hectares, correspondentes a 24,2% do território nacional. Ou seja, a preservação ambiental somaria já aqui 49,8% do Brasil. Deve-se ainda acrescentar a esse número as terras devolutas, militares e ainda não cadastradas, chegando, então, ao impressionante número de conservação da vegetação nativa em 66,3% do território nacional. Qual é a autoridade moral dos que nos criticam? Os detratores do País têm algum índice equivalente? Por que não seguem esse exemplo?

As ONGs, boa parte financiada pelos países mais desenvolvidos, poderiam fazer um trabalho equivalente nos Estados Unidos e na Europa, além dos países asiáticos, numa prova de sua imparcialidade e genuína preocupação com o planeta. Se não o fazem, terminam por trazer à tona a questão da parcialidade na sua atuação. Acabam corroborando a máxima da maior instituição patronal americana do agronegócio: farms here, forests there! O Brasil seria um parque ecológico, os outros países produziriam alimentos sem a concorrência brasileira.

O pano de fundo consiste em que o País se tornou o terceiro maior produtor de alimentos do mundo, devendo logo ocupar a segunda posição e rumando para a primeira se as condições logísticas (estradas, portos, navegação pluvial, entre outras) forem equacionadas. Trata-se de uma guerra comercial travestida de luta pela preservação ambiental. Poderiam preocupar-se em preservar lá, conforme os critérios estabelecidos aqui!

Os países mais poluidores do mundo são China, Estados Unidos, Índia, Rússia e Japão; alguns europeus vêm logo a seguir. Suas fábricas, seus automóveis, seu modo de vida e suas fontes de energia emitem gases o tempo todo. Apesar de algumas promessas recentes de redução da emissão, consubstanciadas em acordos internacionais, o progresso é lento e em alguns desses países, praticamente inexistente. Pretendem fazer hoje o que os países de Primeiro Mundo fizeram antes. O problema é que o planeta é finito e não comporta uma competição desenfreada desse tipo. Agora, quererem culpar o Brasil por aquilo que fazem não faz o menor sentido. Acontece que os países europeus e os desenvolvidos em geral não pretendem abdicar minimamente do seu padrão de vida - que é, sim, poluente -, preferindo transferir a outros uma responsabilidade sua. E tudo isso sob a máscara de uma “consciência moral”.

As consequências políticas começam a aparecer. A Amazônia já passa a ser considerada “patrimônio da humanidade”, como se não estivesse submetida à nossa soberania. Outros falam de um parque ecológico nacional, porém, na verdade, internacional, que seria financiado pelas maiores potências do mundo. Quem paga, contudo, termina por decidir. Seria o início da renúncia à soberania. O fato é que os problemas ambientais não cessam de se multiplicar, seja pela ação dos países mais poluidores, seja pela explosão demográfica, e os Estados evitam conter esta última por motivos religiosos e outros. Em décadas o problema poderá ser explosivo. O lema “patrimônio da humanidade” poderia vir a ser a justificação militar de uma intervenção em nosso país, em nome precisamente da “humanidade”. Seria a “guerra justa”!

Por que não se pensa, inversamente, numa intervenção militar internacional nos países mais poluidores? Por uma razão simples: eles possuem a força militar, econômica e diplomática para se opor a quaisquer iniciativas desse tipo. O Brasil, por sua vez, não tem uma força militar correspondente ao seu tamanho e à sua posição no mundo. Precisará, certamente, estar pronto para se defender. Exibir capacidade de dissuasão torna-se uma questão central. Ela nos colocaria numa posição de negociação e respeito.

O mundo não é constituído por anjos!”

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Voltas que o mundo dá





“Voltas que o mundo dá

Por Fernando Gabeira

Apesar do intenso zum-zum nacional, com leis marotas votadas na madrugada, duas notícias de fora marcaram a semana: o risco de estagnação econômica mundial e a volta do peronismo na Argentina. O interesse por política externa nunca foi muito grande no Brasil. Mas tem crescido nos últimos anos. Senti isso na Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Estudantes a frequentavam com interesse para ouvir os debates.

Bolsonaro fez parte dela, por alguns anos. Naquele momento, ainda não era um líder popular nacional. Tornou-se presidente, e discutir com líderes populares é mais áspero: os seguidores são hipersensíveis à imparcialidade ou ao preconceito.

Mas fatos são fatos. A política externa conduzida por Bolsonaro precisa ser criticada, pois pode nos levar a um isolamento perigoso no momento de uma crise mundial.

Bolsonaro aproximou-se dos Estados Unidos. Nada a reparar. A aproximação com os Estados Unidos estava no seu programa e, creio, é apoiada pela maioria dos eleitores brasileiros.

Bolsonaro aproximou-se dos Estados Unidos e está se afastando de outras partes do mundo. Isto não estava no programa. Muito menos reduzir o movimento a uma proximidade com a família Trump, como se política externa fosse tocada por amizades familiares, e não interesses nacionais.

Bolsonaro aproximou-se de Israel. Nada a reparar. Mas se afastou do mundo árabe ao anunciar que levaria a Embaixada do Brasil para Jerusalém. Não completou o plano, mas o desgaste ficou no ar.

Bolsonaro assinou um acordo comercial com a Europa, condicionado ao respeito ao meio ambiente. Nos últimos tempos, tem se dedicado a criticar a Europa, afirmando, injustamente, que a Alemanha quer comprar a Amazônia a prestação.

O acordo com a Europa ficou mais difícil, pois Alberto Fernández, vitorioso nas prévias argentinas, não o quer agora. Acha, como o ex-chanceler Celso Amorim, que o momento não é adequado para o Mercosul. Isso não impediria o Brasil de ir adiante. O próprio acordo prevê que os países entrem de acordo com seu ritmo. Quem aprovar a entrada não precisa esperar o outro.

Com as declarações de Bolsonaro, dificilmente avançaremos. Ele cancelou uma reunião com o chanceler francês para cortar o cabelo. Os franceses não entenderam essa emergência capilar.

Bolsonaro já abriu uma guerra contra os peronistas que devem voltar ao poder. Teme que os argentinos invadam o Sul, fora do verão, como os venezuelanos em Roraima.

A Argentina estava aí antes de Bolsonaro e continuará depois dele. São relações de Estado que precisam ser desenvolvidas, e não uma troca de insultos ideológicos.

Para completar as trapalhadas no Sul, o governo Bolsonaro quase derruba seu aliado paraguaio, com o acordo sobre Itaipu. Além dos problemas criados e do ressentimento nacionalista que reavivou, apareceu na negociação uma empresa brasileira ligada a um suplente do senador Major Olimpio.

Gostar de grana é realmente suprapartidário, mas torna-se algo muito sério quando envolve uma negociação delicada como a de Itaipu.

O novo embaixador do Brasil nos Estados Unidos pode ser um filho de Bolsonaro. Ele já fez referência à necessidade de bomba atômica e afirma que diplomacia sem armas é ineficaz.

Já tínhamos resolvido essa questão com os argentinos, não há mais dúvida quanto à nossa política nuclear. Se somarmos a reação agressiva à eleição do que chama de bandidos de esquerda na Argentina, Bolsonaro, através do filho, pode nos afastar ainda mais de uma vizinhança tranquila, apesar das diferenças.

Quando deputado, Bolsonaro às vezes ficava bravo, mas discutia. Como presidente, sente-se um herói poderoso: ganhei as eleições.

Se Bolsonaro se fixasse numa relação apenas com os Estados Unidos, já seria extremamente perigoso. Mas o embaixador que pretender enviar aos EUA andava com um boné de propaganda da reeleição de Trump. A verdade é que Trump nos aproximou da OCDE. Mas o próprio Bolsonaro boicota essa aproximação ao apoiar a medida de Tofolli que neutraliza investigações da Receita.

O Brasil corre o risco de ficar apenas com Trump. Em termos pessoais, nada a declarar, pois a química humana é de fato surpreendente. Em termos nacionais, é um grande equívoco.”

terça-feira, 20 de agosto de 2019

A presença do fígado na vida pública





“A presença do fígado na vida pública
      
Por Bolívar Lamounier

Por mais que nos desagrade reconhecê-lo, a raiva é um fator comum na vida pública de muitos países. Suas causas variam – crises econômicas, racismo, imigração, corrupção, autoridades irresponsáveis –, mas o fato é inegável. O fígado é o órgão que processa e transforma tais fatores em pura estupidez.

Reconheçamos, porém, que não se trata de uma constante. A política biliosa diminui em certos períodos e aumenta em outros, e varia muito de um país a outro. Veja-se o caso do antissemitismo. Na Europa central e oriental, ele tem uma longa história. Mas hoje o vemos em preocupante ascensão na França – o farol da humanidade –, a ponto de forçar numerosas famílias judias de longa tradição a deixarem o país. A reação à imigração é a causa mais visível, mas não a única. E não nos esqueçamos de que algum antissemitismo sempre existiu na França, basta lembrar o affair Dreifuss, no final do século 19.

Na presente década, a política raivosa espraiou-se por numerosos países, turbinada por dois componentes novos. Primeiro, a internet, cujo caráter “impessoal” parece estimular milhões de pessoas a vocalizar uma agressividade que não teriam coragem de exprimir cara a cara com seus interlocutores, ou mesmo numa assembleia. Segundo, numerosos líderes políticos, vários deles ocupando posições públicas de relevo, têm patrocinado atitudes biliosas, seja por acreditarem sinceramente nelas, seja para capitalizá-las eleitoralmente, numa tentativa nada sutil de transformar a democracia em fascismo. Um exemplo egrégio é o sr. Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, cujo mote é o estapafúrdio conceito de “democracia iliberal”, como se o substantivo e o adjetivo não se repelissem mutuamente.

Nos Estados Unidos, somente neste ano já se registraram dezenas de ataques a imigrantes de origem hispano-americana. A loucura subjacente a tais atentados é o que denominam “nacionalismo branco”, ou “supremacia branca”, vale dizer, a crença irracional de que imigrantes “não brancos” tomarão conta do país e subjugarão a parcela “legitimamente ariana” da sociedade. Essa forma de racismo, mais frequente entre as camadas de renda média e baixa, vem de longe, mas é atualmente fomentada por atitudes e interesses que vêm de cima. Do próprio presidente da República, para ser exato. Em sua edição de junho, a respeitada revista The Atlantic estampou uma matéria de 12 páginas intitulada O racismo de Donald Trump – uma história oral. É uma compilação de declarações e ações perpetradas pelo presidente americano ao longo de 40 anos, com meticulosa atenção a fontes e datas.

Gravações liberadas poucos anos atrás evidenciaram o linguajar rombudamente racista do presidente Richard Nixon e de Ronald Reagan, este à época governador da Califórnia. Mas Donald Trump deixa os dois no chinelo. Dou um exemplo. No dia 19 de abril de 1989, um grupo de adolescentes pretos e latinos foram acusados de estuprar uma mulher branca que praticava jogging no Central Park. Rápido no gatilho, Trump só precisou de 12 dias para publicar nos quatro principais jornais de Nova York um anúncio no qual afirmava que era mister “fazê-los sofrer” e levá-los à cadeira elétrica. E persistiu em sua campanha até que, em 1990, os rapazes foram condenados por diversas ofensas violentas, inclusive tentativa de homicídio. Finalmente, em 2002, a Justiça inocentou-os com base na prova de DNA e na confissão do verdadeiro estuprador.

Claro, o “fator fígado” não é só racismo. E racismo não é só um sentimento de hostilidade motivado por características físicas das minorias contra as quais se volta. Tem em seu bojo uma insegurança quase inexplicável, uma necessidade profunda de pertencimento a um grupo, e por um anseio de “mesmismo” (sameness, em inglês) e, reciprocamente, por uma rejeição de toda diferença e toda diversidade.

As determinantes do mal-estar global desta década são, como se vê, variadas. E a atmosfera raivosa que hoje se manifesta na sociedade brasileira, como devemos tentar compreendê-la? A reflexão tem de começar pelo bolsonarismo, no qual, porém, não vejo um componente racista. O ponto de partida do bolsonarismo foi a reação suscitada pelas lambanças (recessão, corrupção) perpetradas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) durante três décadas, associada à inapetência política dos partidos de centro. Ele ganhou corpo com o estilo ferrabrás do personagem Jair Bolsonaro, uma macheza em parte genuína e em parte calculada para manter a fidelidade de seu rebanho. Mas decorreu também de fatores objetivos, muito mais sérios e relevantes, entre os quais é imperativo destacar a propensão da casta patrimonialista que habita Brasília a tratar as esferas pública e privada como uma coisa só, privatizando benefícios e socializando prejuízos. É a “velha política” do linguajar bolsonarista, sem esquecer, porém, que o clã Bolsonaro vê o nepotismo como a coisa mais normal do mundo e que o próprio Supremo Tribunal Federal, que não é um órgão “político” no sentido banal do termo, tem se notabilizado por comportamentos igualmente desprovidos de substância republicana.

Sabemos todos que o controle do Estado pela casta patrimonialista é a causa principal de nossa estagnação econômica e de suas sequelas, entre as quais o vertiginoso aumento da violência. Se Bolsonaro der por encerrada a campanha eleitoral e compreender os requisitos do cargo que ocupa, contendo suas inclinações figadais, é possível que o ministro Sergio Moro consiga minorar os males decorrentes da criminalidade e Paulo Guedes possa robustecer a recuperação econômica, cujos sinais são por enquanto tênues. Se não, oremos.”

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Não alimente o Leviatã





“Não alimente o Leviatã
      
Por Zeina Latif

O Brasil está diante de uma riqueza imensa de petróleo da camada do pré-sal a ser explorada nos próximos anos. O especialista Adriano Pires estima uma receita na casa de US$ 750 bilhões em 15 anos. O ministro Paulo Guedes apontou algo nessa mesma magnitude: entre US$500 bilhões e US$ 1 trilhão no mesmo período. A intenção do governo federal é garantir a repartição desses recursos com Estados e municípios.

É crucial evitar que os recursos sejam gastos com despesas correntes. Utilizar uma riqueza finita (um recurso nãorenovável que já vem sendo paulatinamente substituído por outras fontes de energia mais sustentáveis) com despesas que não geram crescimento econômico futuro é receita para o desastre.

O Estado do Rio de Janeiro é exemplo de fracasso nesse quesito: tem usado há anos os recursos dos royalties de petróleo para cobrir o rombo na Previdência estadual, em vez de fazer reformas. 

Exemplos semelhantes não faltam entre municípios. Muitos tornaram-se mais dependentes desses recursos e não colheram avanços nos indicadores econômicos e sociais.

Segundo a imprensa, o Ministério da Economia pretende enviar uma proposta ao Congresso vedando o uso dos royalties para o pagamento da folha, devendo ser usados para investimentos e para pagar dívidas com a União e precatórios judiciais. A motivação é clara: a tentação para usar os royalties para pagar as despesas crescentes com a folha é elevada.

Na bonança, Estados e municípios elevaram bastante o número de funcionários públicos e promoveram aumento generoso de salários. Com o envelhecimento populacional, os gastos com inativos crescem rapidamente, pressionando os orçamentos públicos. Segundo o Tesouro Nacional, o déficit previdenciário dos Estados atingiu R$ 101,3 bilhões em 2018.

O Brasil deveria seguir a experiência mundial e criar um fundo de estabilização soberano para evitar o mau uso da receita do petróleo. Países vizinhos já o fizeram: o Chile em 1985 e a Colômbia em 2011.

A ideia é poupar a receita da exploração (riqueza explorada que ganha liquidez) e gastar apenas a renda decorrente (rendimento do fundo). Na década passada, houve proposta de criar um fundo soberano com recursos do pré-sal aplicados no exterior, que é o que fazem os demais países. Infelizmente a ideia não prosperou.

São várias as motivações para um fundo soberano:

Primeiro, por uma questão de justiça intergeracional. Não é justo as gerações atuais se beneficiarem de uma riqueza natural que deveria ser de todos.

Segundo, para evitar que os gastos públicos tenham caráter pro-cíclico, conforme a oscilação de preços do recurso natural, com repercussões sobre o equilíbrio fiscal e a oferta de serviços públicos nas fases de baixa na receita. Na mesma linha, para afastar o risco de elevada dependência do orçamento público no recurso não-renovável.

Terceiro, para preservar um ambiente macroeconômico estável, afastando o risco de excessos e bolhas nos mercados. Vale pontuar que a economia brasileira já é bastante sensível ao ciclo de preços de commodities. A desaceleração mundial em curso e seu impacto no Brasil servem de alerta.

Quarto, para afastar a chamada doença holandesa, que traz dificuldades para os demais setores, particularmente os mais sensíveis à concorrência externa. O termo se refere ao efeito da descoberta de gás natural na Holanda na década de 1960 e da escalada posterior de seu preço sobre o influxo de recursos externos e a cotação do florim, cujo fortalecimento contribuiu para a desindustrialização daquele país.

Finalmente, seria desejável reduzir a dívida pública para níveis mais próximos dos registrados em países parecidos, visando à reconquista do grau de investimento.

Em tempos de grave crise fiscal e da constante tentação para a busca de atalhos e artifícios que aliviem as contas públicas, como agora na discussão do “Pacto Federativo”, convém evitar promessas de recursos sem estabelecer contrapartidas ou regras para os gastos. O Leviatã é perigoso.”

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

A semelhança entre Brasil e Argentina





A semelhança entre Brasil e Argentina

Por William Waack

É quase irresistível a tentação de dizer que Argentina e Brasil são espelhos de si mesmos. Os dois vizinhos tiveram seus populistas históricos cujas sombras políticas se projetam até hoje (Peron e Vargas). Desenvolveram Estados balofos que extraem desproporcional parte da riqueza gerada nos respectivos territórios – sem terem sido capazes de conduzir as respectivas economias para crescimento em bases sustentáveis. A Argentina era rica e ficou pobre, e o Brasil não conseguiu ficar rico.

Há notórias diferenças, até anedóticas. O argentino tende a assumir que o melhor ficou no passado, enquanto o brasileiro acha que o melhor estará no futuro. Ainda assim há grandes paralelos na linha do tempo entre os dois países. Brasil e Argentina experimentaram rupturas políticas em épocas muito próximas, passaram por ditaduras militares e “guerras sujas” de feições similares (ainda que de diferentes intensidades de trauma e violência), voltaram a regimes civis em períodos simultâneos, arcaram com graves crises de endividamento, recessão e, mais recentemente, com regimes de grotesca irresponsabilidade fiscal, em boa parte culpados diretos pelas dificuldades econômicas que ambos enfrentam.

Significa que o fracasso do governo argentino em implementar reformas econômicas estruturantes e, como consequência, a provável derrota eleitoral de uma proposta de liberalização da economia – e a volta pela urna ao descalabro de um regime populista de “esquerda” – é o espectro que ronda o Brasil? Claro que jamais se pode excluir o que ainda não aconteceu, assim como não se pode confiar na inevitabilidade do que virá, mas há algo que torna os destinos de Brasil e Argentina tão parecidos: é um desafio comum que não conseguiram resolver.

O ciclo que enfrentam os dois gigantes sul-americanos, abundantemente dotados de recursos naturais e em confortável posição geográfica, é de como driblar o que economistas chamam de “falta de convergência” da grande maioria dos países emergentes em relação aos países mais avançados. Por “falta de convergência” entende-se a incapacidade de economias de renda média de reduzir a diferença que as separa há décadas do rendimento per capita de países avançados.

Quando os Brics surgiram, há quase 20 anos, parecia que os emergentes iriam, finalmente, alcançar os países do topo. Mas hoje se afirma que a “convergência” era sobretudo o efeito China (e Índia também) e do superciclo das commodities – dois fatores que não se repetem em prazos históricos curtos. Números cruéis estão aí para indicar que Brasil e Argentina continuam tão distantes dos mais ricos como estavam há uma geração, e pior: estão sendo alcançados por vizinhos, como Peru e Colômbia, que sempre foram consideravelmente mais pobres.

É vastíssima a literatura que se ocupa dessa questão, a da superação da pobreza. Tirando o submarxismo típico de baixa produção intelectual que atribuía o atraso relativo de Argentina e Brasil a alguma malvada “imposição” de interesses externos, consolidou-se nos últimos anos o consenso de que escolhas políticas, travas internas, problemas domésticos e, principalmente, ausência de líderes comprometidos com um horizonte de longo prazo é que ajudam a entender as dificuldades de ambos para sair da presente estagnação econômica e resolver problemas tão básicos como pobreza e gritante desigualdade – as mesmas mazelas de sempre, agora agravadas por índices inéditos de violência.

A história recente demonstra que governos da chamada “esquerda” na Argentina e no Brasil não resolveram nenhum dos problemas fundamentais desses países – ao contrário, contribuíram para piorá-los. Os de “direita” precisam provar que conseguem.”

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Passado maior que futuro





“Passado maior que futuro
      
Por Pedro Fernando Nery

É maior do que o orçamento da Saúde. É maior do que o orçamento da Educação. É quase seis vezes o Bolsa Família. Equivale à soma do gasto orçamentário com segurança pública, seguro-desemprego, políticas de emprego, transportes, energia, ciência e tecnologia, meio ambiente, habitação, saneamento, agricultura, indústria, comércio, cultura e relações exteriores. Cresceu nesta década anualmente 4% acima da inflação.

Do que se trata? É o gasto com pensão por morte: da ordem de R$ 170 bilhões por ano na União. A maior parte está no regime operado pelo INSS, mas pesam também as pensões dos regimes de servidores e militares.

A pensão por morte é tipicamente discutida por narrativas sentimentais, não por números. O falso estereótipo da viúva desamparada com filhos para criar interdita o debate. Mas gastar mais de 10% do Orçamento federal com pensões por morte não parece uma escolha consciente da sociedade. Se criássemos o Ministério das Pensões, ele seria o 2.º mais caro da Esplanada. 

Essa despesa cresce, em parte, porque tal qual a aposentadoria a duração da pensão também é afetada pelo envelhecimento da população (a grande maioria delas é vitalícia para o viúvo). E o seu nível é alto porque o Brasil fez escolhas que seus pares não fizeram, seja na comparação com vizinhos sul-americanos ou com países desenvolvidos e emergentes do G-20 (maiores economias do globo).

Quando um segurado do INSS falece, a renda per capita da família aumenta, porque a reposição ao cônjuge é de 100% do salário. Não é assim na América do Sul: a reposição mínima tem média de 50%. Colômbia, Equador, Venezuela, Chile e Paraguai ficam abaixo dessa média, chegando a 25% neste último caso.

No G-20, países também não conseguiram seguir o modelo brasileiro. Mesmo os ricos e tidos como modelo de Previdência generosa garantem reposição mínima muito menor: a França repõe ao redor de 50%, o Canadá menos de 40%, a Alemanha menos de 30%. Na China, Índia e Indonésia a pensão nem existe, mas apenas uma prestação de alguns meses. Nesse grupo, principalmente no G-20, é comum que a pensão só seja paga total ou parcialmente na ausência de outras rendas. Muitos também fazem restrições quando há novo casamento.

Nos cálculos de Paulo Tafner, 30% dos pensionistas no Brasil acumulam a pensão com uma aposentadoria, recebendo dois benefícios do INSS. Outros 15% acumulam pensão com salário. Entre os pensionistas aposentados, a maioria está no quintil mais rico da população como mostra estudo de Rogério Nagamine Costanzi e Graziela Ansiliero, do Ipea. Ainda nas contas de Tafner, baseadas na Pnad, 20% estão em outro casamento. O mais impressionante: menos de 10% são viúvas sós morando com filhos menores de 14 anos.

Por isso que seria falso o estereótipo de viúva sem renda com filhos pequenos para criar, que domina essa conversa. Poucas moram com crianças, muitas têm outras rendas (inclusive do INSS) e várias estão em nova união.

Daí que desde 2014, Dilma, Temer e Bolsonaro enviaram propostas ao Congresso para manter a reposição de 100% quando houver quatro dependentes, mas reduzindo a reposição de novas pensões a 60% quando houver só o cônjuge. Como vimos, ainda é regra mais generosa que a de outros países, em desenvolvimento ou desenvolvidos. Contrasta com o polêmico Bolsa Família, em que famílias sem crianças não recebem mais que 30% do benefício máximo.

A proposta de Dilma foi parcialmente aprovada, ainda que a mudança nos 100% tenha sido rejeitada. Novas pensões deixaram de ser vitalícias a depender da idade do cônjuge, passou-se a exigir tempo mínimo de contribuição e de casamento e adotou-se outras alterações moralizadoras. Entre elas, o “artigo von Richtofen”: a proibição de que o assassino receba a pensão do assassinado (sim, até 2015 podia).

Ainda quanto ao estereótipo, vale outra ressalva: por ser benefício de quem tinha carteira assinada, a pensão chega pouco aos mais pobres da sociedade. A viúva do desempregado ou do informal nada recebe, mesmo se houver crianças. O idoso pobre que recebe o Benefício de Prestação Continuada, assistencial, também não deixa pensão.

Não à toa, o INSS movimenta muito mais em pensão nas regiões mais ricas do País. O valor transferido por habitante é maior do que R$ 700 em Santa Catarina, São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. É menor que R$ 300 per capita no Acre, Roraima, Amazonas e Amapá.

R$ 170 bilhões: regras que não existem no resto do mundo criaram um custo gigantesco e crescente. Que não é focado em famílias com crianças. Que é várias vezes maior que o investimento, que o gasto com ciência e tecnologia ou com educação básica. No Brasil, o orçamento do passado é maior que o orçamento do futuro.”

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Fique rico com democracia





“Fique rico com democracia
      
Por Fernão Lara Mesquita

Nem mais nem menos corrupto que o resto. O brasileiro é só humanidade. O poder – que corrompe sempre e corrompe absolutamente quando é absoluto – é que é absoluto por aqui. Quanto a isso, aliás, seguimos evoluindo para trás. Tratar o problema exclusivamente com polícia resultou em que o círculo se fechasse ainda mais. De 513 mais estaduais e municipais que nós elegemos pusemo-nos nas mãos de 11 nomeados dos quais, para nos arrancar a pele, bastam 6. Isso se ninguém recorrer à “monocracia”!

Em um único dia de primeiras páginas foi possível colecionar o seguinte. “Gasto com funcionalismo sobe na crise e bate recorde”. “Condenados do mensalão não pagam (nem) multas”. “Verba pública para partidos cresceu 2400% em 24 anos”. “Mortandade de indústrias chega a 2.300 de janeiro a maio”. “Com 42 ações com base em dados do Coaf Toffoli só reagiu à de Flávio Bolsonaro”. “STF impede que Lula seja transferido para cela comum”. “STF impede investigação de Glenn Greenwald”. “STF barra investigações contra o crime organizado”. “STF afasta fiscais e para investigação de ministros e parentes”. “STF quer censura para quem falar mal do STF”...

Acreditar que trocando poderes desse calibre de dono vamos acabar com essa corrupção é acreditar que é possível fazer a humanidade deixar de ser a humanidade. O caso não é de polícia, é de política. De instituições políticas, melhor dizendo. Político, aqui, tem existência própria, independente do povo. Mas eles não foram feitos para “ser”, foram feitos para “representar”. Para ser comandados, não para comandar.

Na democracia, o sistema que o Brasil copiou antes de saber do que se tratava, o povo tem os poderes todos, maiores até que os dos reis, e os seus representantes individualmente nenhuns. Tudo em Pindorama sai pelo avesso porque mesmo com a República o poder, agora aumentado, continuou nas mãos dos poucos, não passou para as dos muitos. É ilusão de noiva esperar que funcione sem o comando do povo uma máquina de governar que foi desenhada para funcionar estritamente sob a batuta dele. O povo, só o povo e ninguém mais que o povo pode ter poderes absolutos. Só dividido pela totalidade da população esse excesso de poder se converte de vício em virtude. E como o povo mora é na cidade, no bairro, a hierarquia, na democracia, exerce-se da periferia, que é a realidade, sobre o centro, que é a ficção política.

Não no Brasil. Aqui a ficção é que manda na realidade. O pouco de federalismo que houve, lá nos primeiros dias da República, Getúlio Vargas matou e nunca mais reviveu. Mas o que vai por escrito é que democracia seguimos sendo e as instituições (não importa quais) “estão funcionando”. E como “todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido”, temos, sim, leis e dinheiros “contingenciáveis” empurrados pela periferia que vão todos na direção de garantir educação, saúde e segurança. Só que têm precedência sobre elas as leis e os dinheiros “incontingenciáveis” que regem a vida do centro – a própria Constituição que a isso está reduzida – e desviam tudo o que o outro lado tenta fazer da função para o funcionário, assinando embaixo: “Povo”. Passa então a ser “o brasileiro” – assim difuso – que paga mal ao professor, não cuida da saúde, é violento e irresponsável de um tanto que só não anda matando pelas ruas quem não tem uma arma pra chamar de sua. Liberdade condicional. Vão por aí abaixo as “verdades estabelecidas” que a mídia traga e, sem nenhum filtro, traduz...

E, no entanto, é tão simples. 99% da literatura política do mundo é ininteligível porque não passa de tapeação. Não existe isso de “entender de política”. Meu pai sempre dizia que, quando você lê alguma coisa e não entende, o burro (ou o sacana) é “o outro”. Democracia é coisa de somenos. Como todo bom remédio, exigiu muy especial ilustração para inventar, mas não requer nenhuma para usar. Até o morador de rua analfabeto, lá na cidadezinha dele, sabe se o prefeito asfaltou aquela via pública porque é o que a cidade estava precisando ou porque tinha comprado os terrenos todos. Se o vereador fez aquela lei pra fazer a vida de todo mundo mais fácil ou pra vender a isenção a ela. Se o preço de uma obra está justo ou obeso de roubalheira. Se a dosagem de repressão prescrita é ou não é suficiente para desincentivar o crime. Se o que é exigido do funcionário público deve ou não ser o mesmo que é exigido de todo mundo. Se o salário do político está obsceno de pouco ou de demasia. Se é ou não razoável ele pagar suando o dobro pelo “direito adquirido” a pagar metade dado por um político ao seu vizinho. Se as leis devem ou não ser mudadas assim que se provarem superadas. Quais normas, para além da regra do jogo feita para impedir trapaça na mudança, devem ou não ser “petrificadas” por um complicador adicional de alteração.

Democracia, onde tudo isso se vota, não é mais que isso. E como quem manda é quem demite, para tê-la tudo o que é preciso é inverter a relação hierárquica entre o País Real e o País Oficial. A ligação entre representantes e representados tem de ser concreta para que a marcação se possa dar homem a homem. Só o voto distrital puro com retomada de mandato (recall) permite isso. Qualquer outro entrega o ouro aos bandidos. As regras do jogo têm de ser consensuadas, e não impostas, o que só os direitos de iniciativa e referendo legislativos proporcionam. A Justiça tem de ser tão isenta quanto pode ser a humana, o que requer liberdade absoluta do juiz “enquanto se comportar bem”, critério cuja aferição eleições periódicas de reconfirmação dos seus poderes pelo voto direto do povo tira do céu e traz de volta à Terra. Os poderes do eleitor têm de ser tanto mais absolutos quanto mais próximo se estiver do bairro, a periferia do sistema, e mais contrabalançados na medida em que se aproximarem do centro que muda de lugar com 50% + 1.

A natureza humana não se altera sob a democracia. Mas nela você só paga pelos erros que insistir em perseverar. Dá pra ficar rico!”

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Falsa esperança





“Falsa esperança
      
Por William Waack

Todo mundo com razoável ideia do que precisa acontecer para a economia brasileira sair da estagnação repete que a reforma da Previdência é necessária, mas não suficiente. Com ela quase aprovada, cresce em vários setores a esperança na repetição do quadro que, mesmo aos trancos e barrancos, mesmo sem base sólida do governo no Congresso, acabou conduzindo à tramitação no Legislativo de medida impopular de ajuste fiscal.

A lista represada do que se pretende aprovar é imensa. Apenas no que se refere diretamente à atividade econômica, começa com a reforma tributária, prossegue pela MP da liberdade econômica (vai caducar dia 27), passa pelo programa de parceria de investimentos, recuperação fiscal dos Estados, autonomia do Banco Central, cobrança de dívidas previdenciárias, marco legal do saneamento. Para não falar em itens como posse de armas de fogo, educação infantil em casa, cadastro ambiental rural, pacote anticrime, previdência militar...

Tudo isso está no colo do Legislativo ao mesmo tempo em que os deputados terão de estabelecer neste mês as linhas para o orçamento do ano que vem. É a hora na qual suas excelências costumam pedir, por exemplo, mais recursos federais para empresas públicas regionais em que elas mantêm grande influência, ou namoram furar o teto de gastos públicos aprovado por Temer para permitir investimentos – coisa que não deixa de ter seu encanto quando um governo acha que terá de voltar a gastar (Bolsonaro vai chegar logo a essa situação). Eventuais atrasos na aprovação da reforma da Previdência empurram para adiante algumas destas medidas acima, ou todas elas.

O grau de complexidade dessas diversas negociações é altíssimo. Tome-se por exemplo a reforma mais desejada do momento, a tributária. Ela envolve todos os entes da Federação. Em princípio os Estados concordam em unificar cinco diferentes impostos em um só, contanto que haja mecanismos de compensação para os que vão perder arrecadação com a simplificação de tributos (haja negociação). Quem vai fixar as alíquotas? A proposta que mais avançou no Legislativo é conhecida como PEC 45, mas o Executivo anunciou que viria com outro projeto. Qualquer que seja, sem uma bem organizada e disciplinada coligação política (isto é mais ainda do que base no Congresso) vai ser muito árduo superar a inevitável oposição de setores que se sentirão mais atingidos pela nova tributação.

Em outras palavras, e levando em consideração o ambicioso conjunto de nova tributação, as privatizações, a desregulamentação e os novos marcos legais – a tal melhoria do péssimo ambiente de negócios no Brasil – cresceu exponencialmente a necessidade do governo de buscar uma base eficaz e sólida no Congresso. Tarefa à qual se dedicou até aqui de maneira errática, para se dizer o mínimo, ou mesmo desprezou.

Porém, pergunta-se, se mesmo sem essa base, vai sair a reforma da Previdência, não é razoável a esperança de que o mesmo quadro atual permita a tramitação de todo o resto? Dificilmente, por um motivo político simples. Os deputados votaram na reforma da Previdência e decidiram enfrentar eventuais protestos (que não ocorreram) em suas bases eleitorais motivados em grande parte pelo medo de uma crise econômica ainda maior. O tamanho da bomba fiscal e seu potencial de destruição foram poderoso incentivo.

É diferente a classe de incentivos necessários agora para se dedicar à agenda do aumento da produtividade e da competitividade – aquela que o Brasil tem de implementar já, e sem a qual não foge da armadilha da renda média da qual é prisioneiro há três décadas pelo menos. Neste momento, o fator-chave é uma bem organizada, conduzida, coordenada e aguerrida sólida base de votações no Congresso. Quando ela vai existir?”

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

'Austericídio'?





“‘Austericídio’?
      
Por Fabio Giambiagi

Na lógica aceita por parte dos analistas e do meio político, controlar as finanças públicas é “ortodoxo” e “contrário aos interesses da população”. No sentido oposto, políticas expansionistas seriam positivas. Foi com base nessa filosofia que, em 2016, chegamos a uma situação dramática e a dívida bruta acabou escalando até, na época, 70% do produto interno bruto (PIB), sendo hoje ainda maior (79 %). É revelador de nosso atraso que seja preciso voltar a tratar de questões que deveriam ter sido superadas há décadas. Como dizia Nelson Rodrigues, “não há nada mais difícil e cansativo do que demonstrar o óbvio”.

Em 1998 o Brasil bateu na “marca do pênalti” da moratória da dívida pública. Em 1999 o País fez um ajuste primário de 2,8% do PIB e, superado o tumulto inicial da desvalorização, entre o primeiro trimestre de 1999 e o mesmo período de 2001 – antes de São Pedro provocar a necessidade do racionamento de energia elétrica – o País cresceu ao ritmo anualizado de 4%, na base da recuperação da confiança. Em 2001-2002 a confiança desapareceu, depois Lula assumiu, aumentou o superávit fiscal primário e entre 2003 e 2010 o Brasil cresceu a uma taxa média de 4,5% ao ano, com superávit primário médio de 3,1% do PIB. Quando o desleixo fiscal e a crise política causaram nova crise e mergulhamos numa espiral de encolhimento de 3,5% anualizados nos oito trimestres consecutivos entre 2014 IV e 2016 IV, o governo teve de aprovar o teto do gasto público para o período 2017-2026, e na esteira dessa promessa a economia se acalmou depois de 2016. Diante disso, quem assiste ao debate em que a nossa heterodoxia clama contra o “austericídio”, dando a entender que o rigor fiscal equivale a um suicídio nacional, tem o direito de perguntar: qual é o problema com a austeridade?

Se a ideia de que a austeridade foi um fracasso no Brasil se revela divorciada dos fatos, o mesmo pode ser dito acerca do debate referente a movimentos similares em outros países. Em 2008 estourou uma grave crise nos mercados internacionais, após a quebra da Lehman Brothers, em setembro daquele ano. Em 2009 o PIB dos EUA caiu 3% e o da zona do euro, a uma taxa da ordem de 5%. Se nos EUA uma série de medidas permitiu uma recuperação que, embora lenta, não demorou muito a se iniciar, na Europa os efeitos colaterais revelaram-se mais profundos. De qualquer forma, as iniciativas, de modo geral, foram bem-sucedidas, ainda que não no caso da Grécia, que, em razão do acúmulo de distorções e das insuficiências da sua economia, conservou a estabilidade de preços e se manteve na zona do euro, mas demorou muito a se recuperar. No caso dos outros países, porém, a recuperação foi visível após o esforço inicial. Tanto na Irlanda como nos países da Península Ibérica, os resultados econômicos de 2014-2018 foram substancialmente melhores que os dos anos anteriores. Em especial na Espanha, que implementou um ajustamento clássico by the book, com reforma trabalhista que flexibilizou o mercado de trabalho e um ajustamento fiscal particularmente forte, o crescimento dos últimos cinco anos foi superior ao da Alemanha.

Se considerarmos o nível de produção (PIB) como sendo 100 em 2007, seis anos depois, em 2013, ele alcançou 104 na Alemanha e 106 nos Estados Unidos, mas caiu para 92 na Espanha e em Portugal. Em 2018, porém, para aquela mesma base inicial de 2007, o índice do PIB, que na Alemanha atingiu 115, foi de 101 em Portugal e de 106 na Espanha.

A imputação ao “outro” de todo tipo de acusação é um recurso da retórica acerca do qual Schopenhauer, nas suas estratégias para vencer um debate, discorreu com precisão ao tratar da desqualificação do adversário. Fiéis a esses ensinamentos, os responsáveis pelas políticas equivocadas do passado apressaram-se a lançar ao programa posto em prática desde meados de 2016 a crítica de que consistiria num “austerícídio”. Foi a mesma crítica feita às medidas de “aperto de cintos” na Espanha e que, não por acaso, permitiram a recuperação da economia naquele país.

Na guerra de narrativas, é preciso que fique claro: políticas baseadas num forte expansionismo estatal causaram um aumento da inflação, um déficit elevado nas contas externas, a retração dos investimentos e a queda da economia e deixaram o setor público à beira do “calote”. Isso vem de longe: Otto Lara Resende dizia que Brasília foi o produto de uma conjunção de quatro loucuras: a de Juscelino, a de Israel Pinheiro, a de Oscar Niemeyer e a de Lúcio Costa. O gênio conjunto deles nos legou um País com uma imagem muito mais grandiosa de si mesmo que no passado, mas também um legado caracterizado por aumento da inflação, descontrole das contas fiscais e crescimento da dívida pública.

Há que lembrar um dado – e provavelmente deverei repetir essa informação muitas vezes, neste meu encontro mensal com os leitores. A despesa primária do governo federal, que havia sido de apenas 14% do PIB em 1991, alcançou 24% do PIB em 2016, quando foi aprovado o teto de gastos. O País marchava rumo a uma situação de descontrole das contas públicas. Foi nesse contexto que se adotou a citada limitação para o gasto público, naquele ano, para pôr fim a esse processo.

Devemos separar o joio do trigo. O País está muito polarizado e é natural que, na dinâmica política, quem se opõe ao governo queira mudar tudo. Discordar do presidente, de alguns ministros ou de algumas políticas do governo, porém, é uma coisa. Já querer ir contra alguns pilares da política econômica é algo muito diferente. Uma hora, na ausência de controle fiscal, a conta estoura. Consertar situações como a que foi exposta causa problemas; medidas incidentes sobre o gasto nunca são populares, mas a austeridade, com o tempo, se paga e rende frutos.

“Austericídio” é um termo politicamente esperto, mas não combina com os fatos.”