“Bolsonaro e a maldição da meia-sola
Por Fernão Lara Mesquita
As piores doenças crônicas do Brasil têm o peronismo no seu
DNA. A socialização da teta insuficiente, cuidadosamente dimensionada para que
não cesse nunca a dependência do agraciado, é a versão benigna da doença
universal do populismo. A cepa peronista é a maligna. Rói darwinianamente, de
geração em geração, a moral das nações onde se instala.
A corrupção das elites pelo acesso ao privilégio através da
riqueza, mesmo a conquistada por mérito, é um processo natural que, em última
instância, promove a mobilidade social e a renovação das sociedades. Mas o
peronismo, que Getúlio Vargas instilou nas veias do Brasil, corrompe a
sociedade a partir da base. A República Sindicalista (“Trabalhista”, na versão
macunaímica) criminaliza o ato de empregar e estatiza a progressão na escala social,
o que é veneno bastante para deixar qualquer economia paraplégica. Mas em
paralelo instala, onipresente nos céus da nação, a mensagem deletéria que tem o
potencial de salgar para todo o sempre a terra arrasada: “Traia, minta, falseie
que o governo garante”.
Graças à prosperidade da indústria nacional de achaque aos
empregadores o Brasil tem hoje mais “escolas de direito” e produz mais
“advogados” de botequim por ano que todo o resto do mundo somado. Nelas não é
preciso ler um livro de direito sequer para, ao fim do percurso, ganhar a
prerrogativa de cabalar trabalhadores (em dificuldade ou não é fator que se vai
tornando irrelevante na medida em que o caráter aviltado passa a ser padrão)
para dividir com eles um dinheiro tão fácil quanto certo de ser arrancado às
vítimas por tribunais que não são de justiça, são “de classe”.
O resultado é a geleia argentina que só se diferencia da do
Brasil pela longevidade e por vir com letra de tango, e não de samba.
A doença, como todas as que matam seus hospedeiros, só se
esgota no seu próprio paroxismo. Mortos todos os empregos, passadas quatro
gerações aqui, cinco lá, com o País tentando desesperadamente livrar-se da
herança maldita, não é na massa dos desempregados e subempregados vivendo sob a
lei do cão no favelão nacional que se instala a resistência. É nessa horda de
caçadores de cúmplices para achaques e nos “sindicatos” e “partidos políticos”
estatizados que exploram o monopólio do comércio de privilégios para fazer
corporações selecionadas por sua força eleitoral saltar sem fazer força para os
diferentes degraus da classe média não meritocrática, ou para guindar seus
patronos à nobreza da privilegiatura que vão instalando em metástase em todos
os órgãos vitais de governança do País.
A fase terminal dá-se com a infestação da imprensa, o
aparelho imunológico das sociedades democráticas. Isolados pela língua que deu
eficiência redobrada ao patrulhamento ideológico, já vamos para a 3.ª geração
dos produtos do modelo gramsciano de censura imposta pela ameaça de assassinato
midiático, exílio social e asfixia econômica dos “hereges”. A imprensa é a voz
da classe média e a classe média que sobra é, cada dia mais, a classe média de
teta. A meritocrática está ameaçada de extinção pela progressiva supressão do
meio ambiente capaz de sustentá-la.
Na semana retrasada festejou-se como “uma vitória” a
“confirmação” da MP da Liberdade Econômica pelo Congresso. A lista dos itens
desbastados dela – todos os que apontavam na direção da meritocracia e da
redução do espaço para o achaque ao trabalho e ao empreendedorismo, assim como
ocorreu com os dispositivos revolucionários (desconstitucionalização dos
privilégios e regime de contribuição) da reforma da previdência – testemunham a
precisão e o zelo religioso com que a guarda pretoriana do status quo afasta de
nós qualquer chance de alforria real. Sem maiores aprofundamentos, no entanto,
a imprensa chama candidamente de “polêmicos” os itens amputados, num quase
endosso à sua evicção, e a MP que sobra segue festejada como o que já não é.
É impossível definir exatamente quanto é por covardia,
quanto por “superação orgânica do senso comum” e “absorção do discurso
ideológico hegemônico” (Gramsci) e quanto é pela ignorância consequente do
sucesso da censura às alternativas possíveis, mas o fato é que, na imprensa ou
fora dela, ninguém mais no Brasil, nem mesmo seus “inimigos declarados”, diz
sobre “O Sistema” a verdade inteira ou propõe qualquer coisa para substituí-lo.
230 anos depois da Bastilha e com o País literalmente se dissolvendo, ninguém
se levanta para exigir Privilégio Zero Já ou plantar no horizonte, ainda que só
como bandeira, a meta de devolver do funcionalismo para a função, vá lá, que
seja a terça parte dos 45% do PIB que hoje os palácios surrupiam ao favelão
nacional sem dar nada em troca.
Num mundo que demanda Margarets Thatchers, tudo o que o
filtro de seleção negativa permite chegar “lá” são Macris e Macrons, cuja
derrota se configura antes de a luta começar pela timidez entre covarde e
cúmplice das “reformas” que encomendam.
A conspiração gramsciana, que vai longe em toda a América,
inclusive a do Norte, é uma aposta na covardia humana, uma das mais formidáveis
forças da natureza. Só a do instinto de sobrevivência é maior que ela. O que
estamos começando a assistir no Brasil e seu entorno é ao duelo final entre as
duas. E começou mal: o México derrapa na direção da volta ao populismo, a
Argentina parece ter fixado o rumo da Venezuela, o resto da América Latina não
bolivariana igualmente balança. E o que faz todos eles voltarem recorrentemente
à estaca zero é a maldição da meia-sola...
Não há como nos darmos ao luxo de hesitações, porque a
alternativa é o compromisso juramentado com o desastre. Mas a pergunta que
todos quantos têm pena do Brasil têm a obrigação de se fazer é até onde poderá
chegar este Jair Bolsonaro “toffolizado”, que, como todos eles, “elegeu-se
vendendo mudanças radicais, mas age como se não as quisesse”, se, em vez de
babar ovo incondicional e acriticamente para ele, não passarem a empurrá-lo com
toda a força que a gravidade extrema da situação exige na direção daquilo que
ele dizia ser.”