Por José Antonio Taveira Belo / Zetinho
Meu pai era um andarilho. Vivia visitando as casas pobres e ricas, de fazendeiros e lavradores, era o seu serviço como Guarda da Peste do Ministério da Saúde. Entrou para o serviço público em 1944, trabalhando pesado mas nunca demonstrando insatisfação no dia-a-dia, dizia-se satisfeito, pois tinha garantia de um futuro melhor. Era lavrador. Cuidava da roça no sitio Terra Preta, em Bom Conselho. Era semi-analfabeto, tinha somente o curso primário, com uma leitura caseira e um pouco da tabuada. Aprimorou mais seus conhecimentos quando assumiu o trabalho. Casou-se em 1939 com a filha mais nova do casal Manoel Dionísio Vieira Bello (Mestre Véu) e Ana da Silveira Bello, Nedi, de uma prole de oito irmãos Francisco, Expedito, Maria, Conceição, Fernando, Carlinda, Inácia, Vieira Bello, vindo residir na nossa querida Rua do Caborje, 120 em Bom Conselho.
Gostava de contar suas aventuras do seu trabalho cansativo após o café da noite sentado na sala de visita, antes de se recolher ao leito. Não tinha luz elétrica e, sim dois candeeiros com pavios cumpridos acessos que davam para iluminar o recinto, quem desejasse ir para cozinha ou mesmo para o quarto tinham que levar um daquele objeto que iluminava o caminho. Sempre foi um homem respeitador, discreto, e amável com as pessoas mesmo aquelas ignorantes que muitas das vezes relutavam em não o deixar cumprir sua tarefa, ou seja, de entrar em suas casas e “tapar buracos de rato” com barro depois da aplicação do Seno gás, expelido por uma maquina através de uma mangueira existente na casa, ou mesmo, não deixar dedetizar o seu ambiente com DDT.
Numa certa noite, entre tantas outras, com a família reunida, contou-nos as aventuras no trabalho e que achava engraçadas e muito perigosas, precisava de tino e paciência para contornar a situação do momento:
“Certa vez visitando o povoado de Barra do Brejo, onde era a sede para o repouso a noite, quando voltasse do trabalho pelas fazendas e sítios, aconteceu que no sitio Queimadas, neste dia de visita uma família quase o matava. Chegando ao sitio apeou da sua montaria, por volta das onze meia da manhã, abrindo a cancela fui surpreendido pelo vira lata da família que vinha em minha direção. Espantou o cachorro com um chicote e dirigiu-se para pequena casa de taipa, e gritou “Ó de casa! Ó de casa! Batendo palma. Apareceu uma senhora de mais ou menos seus trinta e cinco anos, despenteada, com um surrado avental na barriga e um pequeno menino escachado no seu quadril, outros três agarrados a sua saia e chupando o dedo, desconfiados. Madame sou guarda da peste e estamos trabalhando pela erradicação de ratos, barbeiros e outros insetos prejudiciais a saúde. Posso entrar? Não, respondeu à senhora. O senhor me maltratou querendo me desmoralizar me chamando de MADAME, pois madame é a sua mãe!O Migué vai correndo chamar teu pai, menino. Diz a ele que tem um homem aqui querendo entrar em casa e eu disse que não. O menino de uns dez anos embreou-se pelo roçado em desabalada carreira, pulando uma cerca de arame farpado que estava baixa. Fiquei, estatelado com aquela insinuação e reação daquela pobre mulher. Fiquei de pé naquele sol quente do meio dia, enquanto a mulher não arredou o pé da porta com o menino escanchado no lado do seu quadril. Dentro de pouco tempo lá vem o homem com uma enxada e uma foice roceira na mão. Vinha suado, com o chapéu de palha na cabeça, enxugando o suor com a manga da camisa suja pela terra. Um par de alpercatas com algumas tiras cortadas protegia os pés dos espinhos e do calor da terra. Aproximou-se com o seu filho; E disse; o quê o senhor quer aqui? Aqui é casa de família, viu? Não se pode querer entrar em uma casa sem permissão do dono? É falta de respeito. E o que me diz? A mulher em pé, apontou-me com o dedo riste, esse homem me chamou de MADAME, viu só? Tá me comparando com mulher da Rua do Alto da Cadeia, onde só tem “rapariga”. O homem olhou novamente para mim, e disse se explique: Calmamente e com prudência falei: Olhe seu Moço, como é o seu nome? O meu nome é Hilário, por quê? Por nada! O nome de Madame é um nome respeitador que se dá a toda mulher em consideração e respeito e nunca tentando maltratá-la. O homem olhou para a mulher com desconfiança, pois, ele mesmo não sabia o que significava Madame. Conheceu uma “rapariga” que a chamava de “Madame Zefinha”.
Aos poucos foram se acalmando e eu fui para debaixo de um umbuzeiro fazer uma merenda sentada em um tronco. O homem vendo aquela situação chamou-o para sua mesa onde encontrou fava cozinhada, cuscuz e macaxeira e carne guisada e de galinha pedrês. Foi aquele almoço, bebendo água de um pote encostado na parede. Fiz o meu trabalho a tarde, tapando os buracos de ratos, que eram muitos nos três cômodos da casa, dedetizando em seguida recomendando que só varra a casa no dia seguinte. Sai cumprimentando o Seu Hilário, o qual pediu desculpas pelo acontecido. A mulher ria, pois, dei algumas moedas aqueles garotos para comprar confeito na venda de seu Armando.
Na noite seguinte contou o seguinte:
“Estava almoçando numa Bodega em Caldeirões do Guedes, quando entrou um homem espavorido, com um “cipó de boi” na mão, suado e todo vermelho e os olhos esbugalhados metendo medo em quem se atravessasse na sua frente. Vinha com o diabo no couro. Praguejando contra todos. Foi indo diretamente para o balcão. Seu Zico, espantado, perguntou o que foi que houve Carlinhos?
Não pergunte nada, agora! Enxugou o rosto em um pano de mesa que se encontrava no balcão e disse, bote uma pinga para desobstruir meus gorgomilos. Espantado, Seu Zico colocou num copo e engoliu de uma só vez. Bote outra seu Zico, que hoje estou com a moléstia do cachorro! Mais uma vez bebeu, pigarreou e cuspiu no chão sem nenhuma cerimônia de quem esta almoçando. O que foi que houve home? Não pergunte? Já disse. Calado ficou algum tempo remoendo as palavras. Disse depois dei uma surra na muié prá ela respeitar o home que vive com ela. Perguntou a mim o guarda da Peste, se podia sentar-se à mesa em um tamborete rústico. Sentou mais calmo. Olhando para mim, o Guarda e mais dois ou três pessoas que estavam ali, disse, dei umas lapadas na mulher por que ela me chamou de “Corno”. O sangue me subiu a cabeça. A vista escureceu, pois nunca ninguém me ofendeu desta forma. Se fosse um home eu estrangulava com estas duas mãos que Deus me deu, mas foi a minha veia, pode ser? Todos ficaram olhando e admirado. Pois é, ela me chamou de “corno” depois parir cinco bruguelos, tem jeito uma coisa desta, Eh! Eh! Eh. Dê-me mais uma cachaça, pois estou irado. Mais calmo ainda, perguntou seu guarda o que acha de tudo isso? Eu fiquei apalermado com a pergunta de supetão e mais difícil seria a resposta, pois aprendi desde cedo quando o meu pai Chico Zuza, dizia “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, pois se machuca mais tarde, fazem as pazes e o cara fica mal visto. Mas de qualquer forma dei um conselho que deve ter sido aceito pelo agressor da mulher. Perguntei a queima roupa, o que você fez para merecer este tratamento? Nada seu guarda! Nada seu guarda! Apenas ontem à noite fui com Zezinho, Pedroca e Zé de Quincas tomar uma e outras no barracão de Zé da Luz, no sitio vizinho ao meu. A lua estava convidativa para uma seresta o céu estrelado e aquele vento brando enchendo os nossos pulmões de ar puro do mato. E lá fomos o Zezinho no violão, Pedroca no violão, Zé de Quincas no tambor e eu cantando e tocando ganzá. Cheguei por volta das quatro meia da manhã, já clareando o dia. A vegetação orvalhada pela madrugada. Ela reclamou e eu fui dormir, quando me acordei veio reclamar e soltar os cachorros em cima de mim com este ditado de “Corno” e ai perdi as estribeiras , e disse eu já lhe dei liberdade para isso? Eu disse, é meu jovem as coisas acontecem sem menos esperar. Volte para casa e peça desculpas pelo “pau” que deu em sua mulher, pois no meu entender é o melhor remédio a seguir. Isso não! Respondeu. Não vou me rebaixar a muié nenhuma, ela é que deve pedir perdão pela ofensa que me fez. Bem assim eu não posso lhe ajudar. Tomou mais uma pinga, e saiu já escuro pelas veredas da mata que levava ao seu casebre, deixando todos a comentar este caso.
No dia seguinte, tomei café forte com ovo “estalado” na banha de porco e sai para trabalhar nos sítios. Visitei duas casas e na terceira encontrei o valentão rindo a toa junto com a sua mulher, que lhe pedira perdão e assim estavam em paz. Fiz o serviço na casa, tomei uma xícara de café e sai balançando a cabeça rindo com estes casos entre marido e mulher.
Muita história tinha o velho Antonio Zuza, mesmo na sua velhice em cima de uma cama em Garanhuns, tinha a contar quando o visitávamos sempre com o sorriso e com o cabelo desalinhado e por fazer a barba, mais sabia receber bem todos aqueles que o procuravam. Morreu como “passarinho” dando o último suspiro lendo os jornais do dia, deixando exemplo de boa conduta.