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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Fritura de alta pressão




“Fritura de alta pressão

Por Merval Pereira

O ministro Sergio Moro não acredita que o presidente Bolsonaro vá dividir o Ministério da Justiça e da Segurança Pública. Por isso, considera inútil especular sobre o que acontecerá caso a ideia prospere. Se Bolsonaro quisesse mesmo reforçar a segurança pública, convidaria o próprio Sergio Moro para o novo ministério, e nomearia outro ministro da Justiça. (Nesta sexta-feira, o presidente da República recuou e afirmou que a chance de recriação do Ministério da Segurança é 'zero')

A criação do Ministério da Segurança Pública, como existia no governo Michel Temer, só tem sentido se abaixo dele ficar a Polícia Federal, que sairia então da Justiça. Nesse caso, se Moro aceitasse continuar no governo, ele ficaria sem os dois instrumentos básicos que imaginou quando propôs a Bolsonaro unir Justiça e Segurança Pública.

O Coaf — atual Unidade de Inteligência Financeira — já foi para o Banco Central, e a Polícia Federal iria para a nova pasta. Moro ficaria com os aspectos mais burocráticos do Ministério da Justiça, e com a Funai. Não há razão para retirar do Ministério da Justiça todos os encargos que ele ganhou quando se transformou, por decisão do próprio recém-eleito presidente, em superministério que combateria a corrupção e o crime organizado da mesma forma que teria como objetivo melhorar a segurança pública. Ainda mais com os resultados positivos obtidos, provocando a queda dos índices de criminalidade em todo o país.

O Congresso e o presidente Bolsonaro vêm se encarregando de esvaziar a ação do ministro Moro. Foi o Congresso que tirou o Coaf dele, assim como o juiz de garantias foi criado pelo Congresso, e sancionado pelo presidente Bolsonaro, mesmo com o parecer contrário de Moro.

Bolsonaro, ao mesmo tempo em que anunciou estar estudando reduzir o tamanho do ministério de Moro, deixou vazar informação de que já decidiu trocar o delegado Maurício Valeixo, chefe da Polícia Federal indicado pelo ministro da Justiça. Já tentou ano passado, mas naquela ocasião Moro conseguiu dissuadi-lo.

O fato é que, passado o primeiro ano de seu mandato, Bolsonaro está tendo que ajustar seus interesses pessoais às promessas da campanha. No início do governo, quando apresentou o projeto sobre flexibilização da posse e do porte de armas, estava sendo coerente, não houve surpresas, mesmo de quem criticou. Mas sua coerência não resistiu à irrealidade de suas promessas.

Prometeu que acabaria com a reeleição, e já pensa não apenas num segundo mandato, mas num terceiro. O combate à corrupção não poderia ter sido sua principal bandeira, pelo passado de ligações perigosas e outras atividades ilegais, como estão sendo reveladas pouco a pouco no processo contra seu filho, senador Flávio Bolsonaro.

Foi apenas uma peça de campanha. Começam a aparecer casos dentro do ministério que derrubam a tese de que, até agora, não existe nenhuma denúncia de corrupção no seu governo. Um irmão surge no cenário de Brasília como lobista bem recepcionado nos círculos do poder. O líder do governo, senador Fernando Bezerra, investigado pela Lava-Jato, permanece no cargo, assim como o secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, envolvido em denúncias de conflitos de interesses por ser sócio de uma empresa de comunicação que tem clientes de verbas publicitárias do governo que ele mesmo decide.

A percepção de corrupção no país, índice medido pela ONG Transparência Internacional, manteve a pior média histórica no primeiro ano de governo Bolsonaro. Se o ministro Sergio Moro, como dizem seus amigos, estiver certo, o presidente Bolsonaro está apenas ameaçando dividir o ministério para enfraquecê-lo, dando sequência ao processo de fritura mais violento de que se tem notícia.

Se, no entanto, mudar mesmo a estrutura que deu para Moro, é sinal de que resolveu dar o golpe final, ou por considerar-se forte o bastante para isso, ou porque avalia que se deixar Moro mais tempo com a visibilidade que tem, ele se tornará um candidato à Presidência da República difícil de bater. Cortando-lhe as asas agora, mesmo que ele saia do governo em protesto, o custo a longo prazo seria menor, pois a repercussão negativa não seria suficiente para manter a popularidade de Moro durante os próximos dois anos longe dos holofotes.

Pode estar fazendo um cálculo errado.”

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Ninguém foi censurado




“Ninguém foi censurado

Por Carlos Alberto Sardenberg

O que ameaça a liberdade de imprensa é a censura, sobretudo a censura prévia. Jornalistas apuram suas notícias de diversas formas — pesquisando, vendo os fatos (numa guerra, por exemplo, numa manifestação de rua) ou consultando fontes que consideram confiáveis. E devem ter a liberdade plena de publicar o que apuraram sem pedir autorização a qualquer autoridade.

Tem mais. Nas democracias, a lei garante o sigilo da fonte da informação e não apenas para o jornalista. Médicos, advogados, psicanalistas têm o mesmo direito.

Logo, o jornalista não pode ser punido quando se recusar a revelar sua fonte. Mas o que acontece se a informação publicada for um tremendo erro, uma mentira, uma ofensa aos direitos de terceiros?

Fica por isso mesmo?

É claro que não pode ficar. O jornalista é responsável pelo que publica e pode ser processado pela parte atingida. Isso não é incomum por aqui. Há inclusive vários casos de jornalistas que processaram jornalistas e obtiveram condenações exemplares.

O jornalista processado sempre diz que é vítima de um ataque à liberdade de imprensa. Errado. Ele teve a plena liberdade de publicar — e o que foi publicado lá permaneceu.

Mas tem que ser responsável pelo que publicou. Um engenheiro é responsável se a barreira se desmancha e mata centenas de pessoas. Por que o jornalista não seria responsável por destruir a reputação de uma pessoa que seja?

Essa responsabilidade não desaparece quando o jornalista alega o sigilo da fonte. Um exemplo clássico: a jornalista Judith Miller, que já tinha um Pulitzer, publicou no “New York Times” que Valerie Plame, esposa de um ex-embaixador, era agente secreta da CIA. Obviamente, colocou em risco a vida e destruiu a carreira de Valerie. A jornalista foi processada, recusou-se a revelar a fonte, foi condenada e presa.

Um outro caso clássico também vem dos Estados Unidos. O “New York Times” publicou documentos do Pentágono (sobre a Guerra do Vietnã) que haviam sido subtraídos por um funcionário do órgão. Atenção, o jornal não havia participado do roubo —e isso foi um ponto importante do processo. Apenas recebera os documentos de um funcionário que julgou necessário divulgar aqueles fatos.

O jornal pode seguir publicando os documentos.

Ou seja, o jornalista precisa checar a informação recebida de sua fonte e, sobretudo, não pode participar de nenhum modo na produção da notícia. E muito menos pode participar do roubo de uma informação, quer a financiando, quer ajudando a fonte de algum modo.

Tudo considerado, o jornalista Glenn Greenwald não foi censurado. Publicou e continua publicando suas histórias. Não houve censura nem quando ficou claro que as informações, as conversas entre promotores e juízes da Lava-Jato, haviam sido obtidas criminosamente por hackers.

A Polícia Federal encontrou e prendeu os suspeitos. Não investigou nem indiciou o jornalista americano, que estava protegido por uma decisão do ministro Gilmar Mendes. Discutível. Jornalistas são imunes? Não devem ser.

Mas o Ministério Público resolveu denunciar Greenwald por entender que, investigando outras pessoas, os hackers, encontrara indícios de que o jornalista havia sido cúmplice ou tinha participado de algum modo da operação de roubo das informações.

A denúncia é o começo do processo. Pode ser desclassificada pelo juiz logo de cara.

Sim, é verdade que a Polícia Federal não indiciou o jornalista. Mas o Ministério Público não tem a obrigação de seguir exatamente o caminho da PF. Se não fosse assim, os casos já sairiam direto da PF para o juiz.

Muita gente diz que está claro que Greenwald não participou do processo. Pode ser, mas é o juiz que vai dizer isso. E pode ser assim porque o caso é grave. Se houve conluio entre jornalista e fontes, que cometeram crime, foi o jornalista que colocou em risco a liberdade e a independência da imprensa.

Enquanto isso, ninguém foi censurado. Glenn Greenwald continua publicando seu site e continua livremente se defendendo das acusações e, de sua parte, fazendo suas próprias acusações. E a imprensa continua contando e opinando de um lado e de outro.

A ver o que dizem os tribunais.”

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

É possível blindar a economia?




“É possível blindar a economia?
      
Por Zeina Latif

O presidente Bolsonaro tem rompantes autoritários e seu governo, apesar dos importantes avanços na economia, desfere ataques a valores democráticos. Falta-lhe autocontenção e disposição ao diálogo.

O perfil do presidente vai ao encontro dos anseios de uma parcela da sociedade indignada com a crise econômica e com aquilo que muitos chamam de crise moral. As falhas das instituições reduziram o apreço de muitos pela democracia.

Como já sabido, esse fenômeno é global e não é novo. Crises econômicas costumam ser catalisadoras de governos populistas, nacionalistas e autoritários.

Foi assim na crise de 1930. Getúlio Vargas combatia com repressão e violência seus opositores, impunha uma constituição autoritária, conduzia a propaganda estatal de terror aos comunistas e definia a “cultura popular”. Enquanto isso, a Ação Integralista Brasileira, de pendor fascista, conquistava adeptos.

O contexto histórico atual é outro. A democracia, agora de massas, é mais madura e as instituições mais robustas. Por isso mesmo, há um racha entre analistas na avaliação da ameaça de Bolsonaro à democracia. Alguns acham que os freios e contrapesos funcionam bem e outros acham que, paulatinamente, haverá o esgarçamento das instituições, na linha defendida por Steven Levitsky.

Qualquer que seja a resposta, ambos os lados reconhecem existir o problema. Má notícia, especialmente em um país com tantos desafios para aprimorar as instituições democráticas e promover a igualdade de oportunidades. Como aponta Claudio Couto, a postura do presidente estressa o funcionamento das instituições – Congresso, judiciário, imprensa –, que agem para conter os equívocos do governo, desperdiçando energia que poderia ser utilizada para o avanço de pautas progressistas.

A ideologia também penaliza as políticas públicas, que muitas vezes carecem de embasamento técnico.

Na economia, a dinâmica mais favorável no curto prazo está contratada, por conta de acertos do passado recente que permitiram a queda dos juros pelo Banco Central. Porém, não há como garantir a blindagem da política econômica e da agenda de reformas.

A reforma da Previdência não serve de parâmetro, em que pese o grande mérito do Ministério da Economia. A reforma da Previdência era inevitável, o que foi compreendido por Bolsonaro e pelo Congresso. O presidente, em várias oportunidades, lamentou ter de fazê-la, por falta de opção.

Apesar de utilizar o receituário de Paulo Guedes como cartão de visitas, não é novidade que o presidente impõe restrições à agenda liberal, pois reduz bastante o escopo das privatizações; prestigia corporações e grupos de apoio (como militares); e preserva regras que ferem a agenda liberal (como o tabelamento do frete).

O presidente tem emitido sinais de menor apetite para reformas e, muitas vezes, passa por cima de recomendações técnicas de seus auxiliares, como para a redução do subsídio no uso da rede de transmissão e distribuição pela energia solar (não se trata de “taxar o sol”). Também inviabiliza medidas pelo descuido no seu encaminhamento, como na meritosa proposta de extinção do DPVAT, em que a justificativa técnica foi ignorada.

É possível traçar alguns paralelos com o governo Lula. Bolsonaro deu continuidade a iniciativas do governo anterior, mas sem reconhecer publicamente. Um desavisado acreditaria que ele sucedeu a Dilma, e não a Temer. Lula fez algo parecido. Falava em “herança maldita” de FHC, enquanto Antonio Palocci continuava a obra de Pedro Malan.

Na primeira crise política e surfando a melhora da economia, Lula rasgou os manuais e mergulhou no nacional-desenvolvimentismo. O segundo mandato foi de retrocessos, deixando terrível herança para Dilma, que a aprofundou, sacrificando gerações.

O apreço à democracia é fruto de amadurecimento das sociedades, mas precisa ser estimulado pelos líderes políticos. Os valores democráticos permitem o olhar para o futuro, para as próximas gerações. É disso que trata a agenda de reformas econômicas.”

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Momento Greta




“Momento Greta
       
Por William Waack

Não acreditem em profetas do apocalipse, disse Donald Trump à fina flor do mundo político e empresarial reunido – como todo ano em janeiro – para o World Economic Forum em Davos, Suíça. Não se sabe o quanto a globalizada elite política, empresarial e financeira acredita em visões catastrofistas sobre meio ambiente, mas esse é um de seus temas mais discutidos, goste-se ou não.

E é praticamente o único assunto pelo qual é avaliada hoje a imagem do Brasil no exterior. Bom conhecedor desse público, o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi à Suíça oferecer um argumento que, na sua essência, afirma que não é a busca do lucro o maior inimigo da proteção do meio ambiente em lugares como o Brasil (que precisa de seus recursos naturais para se desenvolver), mas, sim, o desespero de quem passa fome e destrói para sobreviver. Ou seja, pobreza.

A julgar pelos relatos de boa parte da imprensa internacional, o argumento de Guedes não convenceu, não importa se tem méritos. Ao contrário: alguns dos principais banqueiros internacionais sentiram-se obrigados a responder nesse mesmo evento aos gestores de grandes fundos de investimento, que anunciaram recentemente incluir um “fator de risco ambiental” (leia-se compliance por parte de grandes companhias) ao direcionar alocações de recursos.

A resposta foi uma cobrança a governos – banqueiros em momento Greta, talvez? – exigindo mais coordenação de políticas de combate a mudanças climáticas, para evitar que a “culpa” caia sobre o setor privado. Em outras palavras, também o setor financeiro está sentindo a pressão, e foi o chefe do Bank of America quem defendeu em Davos a adoção de um padrão internacional de contabilidade para averiguar como companhias privadas estão cumprindo metas fixadas em conferências sobre clima da ONU, por exemplo.

No que parece ter sido uma tática coordenada, o governo brasileiro ofereceu a apocalípticos ou não reunidos em Davos duas boias para se abraçar. Anunciou a criação de um Conselho da Amazônia chefiado por um general, o vice-presidente Hamilton Mourão, que conhece bem o lugar e também sabe como funciona um Estado-Maior. E a criação de uma Força Nacional Ambiental voltada exclusivamente para a repressão ao desmatamento da Floresta Amazônica.

Além de ser uma resposta óbvia, ainda que tardia, ao tipo de pressão internacional que o governo brasileiro de forma inepta conseguiu acelerar contra si mesmo, o anúncio oferece dois outros reconhecimentos implícitos. O primeiro é o da falta de uma instância de coordenação dos vários ministérios e órgãos do governo vinculados à Amazônia. O tal Conselho parece equivaler a uma “Casa Civil” da questão ambiental.

O segundo reconhecimento, implícito na Força Nacional, refaz o argumento de Guedes. Para qualquer pessoa com um mínimo de vivência na Amazônia, especialmente nas chamadas “zonas de fronteira” (aquelas nas quais se expande rapidamente algum tipo de atividade econômica), a chegada de contingentes populacionais cria realidades incontroláveis que duram já décadas (a degradação de vastas áreas do sul do Pará é um dos grandes exemplos). A destruição “formiguinha” torna-se formidável, e irreparável também, pela ausência do Estado.

É o que está no fundo da questão: a notória incapacidade do Estado brasileiro de dominar o próprio território e impor suas leis. O desastre de comunicação internacional na questão ambiental é marca do governo Bolsonaro, mas os avanços e recuos do desmatamento, a menor ou maior velocidade na ocupação de territórios, a força maior ou menor de atividades predatórias (especialmente extração de madeira e garimpo) parecem seguir ciclos que têm fugido ao controle de qualquer governo central brasileiro.

Pobreza ou não, o problema ambiental sempre foi o de autoridade.”

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

A máscara de Lula cai de novo




“A máscara de Lula cai de novo
     
Por José Nêumanne

Lula foi poupado pelo simpatizante Joaquim Barbosa, relator do chamado mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), pela presunção de que não poderia responder por crimes de subordinados, por não ser diretamente responsável por suas nomeações. A Ação Penal 470 condenou apenas bagrinhos sem mandato e poupou chefões políticos das próprias penas após indulto da companheira “presidenta” Dilma Rousseff e do perdão subsequente da maioria dos ministros da dita Suprema Corte.

Citado em delações premiadas de corruptores e corruptos de vários escalões, o ex-presidente foi condenado em três instâncias por nove a zero e confinado numa sala de hospedagem de agentes da Polícia Federal em Curitiba, até ser liberado dessa privação por seis dos 11 ministros do STF. Desde sempre insistiu, e o faz até hoje – mais preso no próprio apartamento luxuoso de São Bernardo do Campo do que na sala de estado-maior, o chefão dos três mandatos e meio dele próprio e do poste Dilma, que elegeu e reelegeu –, em se dizer inocente. Para tanto recorre ao artifício da presunção de inocência, que perdeu na condenação em segunda instância, depois resgatada pelos amigões das altas instâncias judiciais, e da perseguição política dos inimigos do povo, atribuindo-se a condição de “mais honesto do Brasil”. As investigações da Operação Lava Jato, chefiadas pelo procurador Deltan Dallagnol, e as condenações do ex-juiz Sergio Moro e de sua substituta eventual, Gabriela Hardt, foram jogadas no lixo da mixórdia dos entulhos ideológicos do socialismo de rapina.

A abundância de provas conseguidas por pistas obtidas por ex-executivos das empreiteiras, da petroleira estatal e do Legislativo, que delataram comparsas e chefes em troca de alívio de pena, não abalou a férrea convicção de seus devotos domésticos e de além fronteiras. Mas a história implacável não se cansa de produzir mais evidências, apesar de sua liberdade, de que não se aproveita pela reação popular a seu evidente cinismo e pelo ressurgimento de fatos que o fanatismo não logra enterrar.

Para desmascarar Lula, seus acólitos e seus falsos opositores remunerados pelo propinoduto comum se deparam agora com uma reportagem investigativa que desenterra os primórdios do maior escândalo de corrupção de todos os tempos no Brasil. A mesma revista Piauí, insuspeita de culto ao fascismo, a cujos arreganhos o PT atribui a perseguição ao sacerdote supremo de sua seita, que perdoa o furto da poupança popular pelas pretensas vantagens usufruídas pelo povo em suas gestões, volta à tona para esclarecer de vez a composição química do veneno das ratazanas da República.

Antes da atuação da Operação Lava Jato, a repórter Consuelo Dieguez havia partido do desabafo do chefão do PCdoB da Bahia Haroldo Lima narrando as votações do Conselho da Petrobrás que deram início ao assalto aos cofres da petroleira estatal (Petróleo depois da festa, de 2012). Mesmo um leitor leigo como o autor destas linhas detectou naquele texto profético o ácido que levou a enormes prejuízos produzidos pela compra mais que onerosa da refinaria “ruivinha” da Astra Oil e pelo acordo com acionistas americanos para remunerar seus prejuízos bilionários provocados pela corrupção.

A edição nas bancas da mesma Piauí presenteia os leitores com texto de Malu Gaspar narrando em detalhes a anabolização da sobrevalorização dos contratos da Petrobrás e de outras fontes de despesas públicas ao longo dos dois desgovernos de Lula e do um e meio de sua poste. Conforme o relato, o ex-governador paulista Mário Covas, que conhecera Lula quando ambos atuavam em favor da candidatura ao Senado de Fernando Henrique pelo MDB, apresentou-o ao patriarca da Odebrecht, Emílio. Essa seria a oportunidade que o magnata baiano teria para fugir de uma situação próxima da bancarrota da empresa que herdara do pai, Norberto. Manifestada à época em que PT e PSDB fingiam ser adversários (e até inimigos), essa cordialidade figura na pré-história da aliança secreta que tornaria os tucanos beneficiários de propinas distribuídas fartamente entre aliados, como PMDB, PP, PCdoB, PSB e muitos outros.

A narrativa prossegue com a remoção de adversários do empenho do PT em quebrar a Petrobrás para salvar o patrimônio da família do “amigo do meu pai”, como tentou um antigo executivo da petroleira, Rodrigo Manso, substituído por Paulo Roberto Costa, espécie de delator premiado símbolo da devassa da Lava Jato.

Conforme o relato da Piauí, este foi introduzido no roteiro pelo deputado paranaense José Janene, do PP de Paulo Maluf, que morreu no transcurso da devassa, mas deixou indelével sua marca registrada. Quem o introduziu nas tratativas foi José Dirceu, que não foi perdoado pelo STF, assim como Pedro Corrêa, por terem delinquido, cumprindo pena na Papuda. Dirceu hoje goza os benefícios patrocinados pelo presidente do STF, Dias Toffoli, empregado da vida toda do PT e, segundo Marcelo, filho de Emílio, cognominado “amigo do amigo de meu pai” no propinoduto.

A mesma reportagem registra o emprego do ex-sindicalista Frei Chico, irmão do papa do PT, de assessor para desmobilizar greves, do que Lula foi acusado por Emílio em delação premiada. E também a adoção desavergonhada da propina, por decisão de um lobista da Odebrecht, Márcio Faria, ao autorizar pagamento de R$ 8 milhões “não contabilizados” a Pedro Barusco, gerente da área de Renato Duque, tido como homem de Dirceu na diretoria da Petrobrás e falso “durão”, como mais tarde o comprovaria a Lava Jato.

A história é absurda e porca. É a milésima vez que falsos heróis do povo, como Lula e Dirceu, são desmascarados em relatos históricos isentos, que põem por terra versões fantasiosas cretinas, como as postas em circulação pela Vaza Jato do ianque Glenn Greenwald, a serviço do PT. Mas dificilmente produzirá os punitivos efeitos necessários. Infelizmente.”

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Os Farias Briters




“Os Farias Briters
      
Por Pedro Fernando Nery

Quanto ganham, como é o seu jeito de viver? Um terço deles ganha o Bolsa Família. Mais da metade vive sem esgoto, mais de 20% vive sem coleta de lixo, cerca de 10% vive sem banheiro. Eles são os moradores de Farias Brito, município de 19 mil habitantes no Ceará. Ou os Farias Briters, para fazer um paralelo com os famosos Faria Limers.

Os Faria Limers são os que povoam a Faria Lima. O conglomerado ao redor da avenida reuniria uma população um pouco inferior à do município cearense, 16 mil. Os Faria Limers foram capa da Veja São Paulo: são os profissionais bem remunerados, até superstars, que trabalham nas empresas altamente produtivas do local.

Vão dos grandes bancos nacionais e estrangeiros às Big Tech (Google, Facebook), passando por escritórios de advocacia e assets do mercado financeiro. A reportagem viralizou na internet, que aproveitou para fazer memes com os hábitos de trabalho e de consumo dos invejados Faria Limers, early adopters e entusiastas de itens como patinetes elétricos, coletes de náilon e meias coloridas. A expressão se difundiu: o próprio Estado a usou para se referir a Guedes e Doria indo para Davos.

O contraste dos Faria Limers − os mais bem incluídos no mercado de trabalho e na sociedade de consumo – e os Farias Briters, os excluídos, é para se ter em mente no momento em que o País ensaia uma recuperação mais forte. A desigualdade continuará um gigantesco desafio na retomada, e a agenda não pode ser pautada somente por um dos extremos.

O Caged registra novas vagas formais criadas em Farias Brito no ano que passou: 30, puxadas pelos serventes de obra. Não recuperou, portanto, as 73 carteiras assinadas perdidas entre 2015 e 2018. Os números podem parecer muito baixos, e é porque são: no ano do Pibão de 2010, a informalidade alcançava 80% dos Farias Briters com ocupação. Aquele censo registrava ainda 70% da população vulnerável à pobreza.

O PIB per capita está abaixo do salário mínimo: o Farias Briter vive em média com R$ 30 por dia (o tíquete de almoço na Faria Lima chega a R$ 110 segundo a Abrasel). A mortalidade infantil em Farias Brito é igual à da Suécia, há 50 anos. O IDH equivale ao da Botswana. A maior cidade vizinha, Juazeiro do Norte, tem taxa de homicídio quatro vezes maior que a de São Paulo: 55 por 100 mil habitantes, assídua na lista do Mapa da Violência.

As crianças são um quarto da população do município cearense (o dobro da proporção na subprefeitura de Pinheiros, que abriga a Faria Lima). As transferências da Seguridade Social, concentradas nos mais velhos e no mercado de trabalho formal, pouco chegam ali. Os benefícios do INSS são predominantemente os rurais (72%) e o BPC (12%). Por isso, Farias Brito não é afetada pela reforma da Previdência (somente 6% são aposentadorias por tempo de contribuição). Com a reforma, porém, o espaço fiscal para benefícios como o Bolsa Família será menos limitado.

A reforma tributária também seria importante. Por conta de um sistema regressivo que tributa pesadamente o consumo, o Farias Briter paga mais imposto que o Faria Limer – em proporção à sua renda.

Há esperança. Se estudos como os de Alexandre Rands mostram que a raiz da desigualdade regional brasileira é a desigualdade na educação, é ótimo perceber que Farias Brito segue o exemplo de Sobral e da excelente escola cearense de políticas públicas.

Embora esteja entre os 30% municípios mais pobres do Brasil, Farias Brito é top 10% no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). O progresso aparece ano a ano: na década que passou todos os índices passaram a superar os da rede pública do município de São Paulo.

O Congresso se movimenta. Duas propostas poderiam elevar substancialmente as transferências às crianças pobres de Farias Brito, com baixo ou nenhum impacto fiscal. O Senado já aprovou no fim do ano o Benefício Universal Infantil, e a Câmara discute a Agenda para o Desenvolvimento Social, que fortalece o Bolsa Família. Os dois projetos são focados nas crianças na primeira infância e na extrema pobreza. Elas não escolheram onde nascer: poderiam ter sido filhas de Faria Limers, mas a loteria da vida as colocou em famílias Farias Briters.”

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Impostura




“Impostura
     
Por Denis Lerrer Rosenfield

É bem verdade que o atual governo tem dado ensejo a um pendor autoritário, como quando o próprio presidente mostra intolerância no tratamento com a imprensa ou seus filhos investem nas mídias sociais tratando todos os que deles discordam como inimigos. A crítica não é bem vista, apesar de constituir um elemento central de qualquer sociedade democrática, baseada no diálogo, seja com os Poderes republicanos, seja com a opinião pública em geral. Contudo a reação de setores da esquerda a essa atitude bolsonarista, colocando o PT, seus grupos e partidos assemelhados como defensores da democracia, é claramente uma impostura. Que essa esquerda queira se colocar como polo democrático só serve para enganar incautos. Pretende borrar o seu próprio passado.

O presidente Jair Bolsonaro, apesar de seus arroubos, não tomou nenhuma medida autoritária no encaminhamento de leis ou no exercício do Poder Executivo. Uma coisa é a sua narrativa, que obedece a uma lógica eleitoral, outra, muito diferente, é sua não apresentação de medidas concretas que coíbam a liberdade de pensamento ou empreendam a perseguição social ou policial de seus adversários. Algo inverso fazia o PT no governo. Sua narrativa era supostamente democrática e suas medidas práticas na arte de governar eram frequentemente autoritárias, embora procurassem se legitimar “socialmente”. Aqui “socialmente” significa o controle petista da sociedade.

No governo Lula, mais que no governo Dilma, várias foram as iniciativas de criação de conselhos ditos populares, visando, no discurso, a “democratizar” a sociedade. Várias foram as iniciativas, nesse sentido, de controle dos meios de comunicação, além do financiamento das mídias “amigas”, irrigadas com dinheiro público, o que, aliás, hoje criticam no atual governo. “Conselhos populares” foram constituídos pretensamente enquanto órgãos de interlocução com a sociedade, quando, na verdade, eram instrumentos de controle do próprio partido, seja atuando diretamente ou por intermédio de seus “movimentos sociais”. O governo Bolsonaro não só não tomou nenhuma iniciativa desse tipo, como aboliu os ditos conselhos, ferramentas autoritárias.

Quando começou a governar cidades e Estados, o PT “inventou” o orçamento participativo, que pessoas e políticos imprudentes compraram por seu valor de face, como se estivéssemos diante de uma reelaboração da democracia. Na verdade, o que aconteceu foi que o partido, por meio de seus militantes, tomava conta dessas assembleias, criando uma clientela cativa que se tornava, dessa maneira, um poderoso instrumento eleitoral. De democráticas essas assembleias não tinham nada senão a narrativa, sendo decisões autoritárias e preestabelecidas o seu modo de funcionar.

É analiticamente estabelecido que a corrupção corrói as instituições democráticas, minando-as de dentro. A representação política se enfraquece ao ser comprada, como quando era usual comprar deputados e senadores para os petistas se apoderarem ainda mais do Estado. O resultado, hoje bem conhecido, foi o mensalão, que deu origem à Lava Jato enquanto instrumento estatal de controle dessa chaga, que alcançava patamares perigosos, até mesmo de destruição dos Poderes republicanos. Se, agora, o ex-presidente Lula da Silva é alguém condenado, tendo passado vários meses preso, é por que cometeu crimes, cuja repercussão não foi somente penal, mas também política. Que hoje se coloque como defensor da democracia contra o atual presidente é literalmente hilário.

Em sua trajetória rumo ao poder, nos municípios, o PT também dizia defender uma nova forma de democracia e a ética na política. A narrativa era persuasiva, embora sua prática a contradissesse. Várias foram as denúncias de prática de corrupção na coleta de lixo e nas empresas municipais de ônibus, houve até o assassinato de prefeitos petistas, até hoje não esclarecidos, como o de Celso Daniel, cuja família clama por justiça. Será que tudo isso deve ser varrido para debaixo do tapete em nome da “luta democrática” contra o presidente Bolsonaro? Qual é a sua moral?

O campo brasileiro, nos governos petistas, mais no governo Lula que no de Dilma, foi controlado pelo MST, com apoio político e financeiro desses governos. Invasões de propriedade eram a regra. Produtores e trabalhadores rurais eram vítimas sistemáticas de violência, embora o discurso petista fosse o de “ocupações pacíficas”. De pacíficas não tinham nada, pois a lei era simplesmente desrespeitada, armas brancas eram brandidas e armas de fogo eram empregadas em missões percussoras nas madrugadas das invasões, galpões e tratores eram queimados, fogo era posto nas casas e nos alojamentos, além de animais terem seus tendões cortados, morrendo logo depois. Onde estava a lei? Talvez nos bonés do MST usados com entusiasmo pelo então presidente Lula, cercado por militantes desse “movimento” e do PT. O que acontece hoje no campo, sob o governo Bolsonaro? A ordem pública e o respeito à lei e às instituições.

No que se refere às narrativas, o PT foi e é um ardoroso sustentáculo das ditaduras de esquerda, em nome, evidentemente, da “democracia popular”. Durma-se com uma contradição dessas! Sempre defendeu o “socialismo do século 21”, bolivariano, em que as piores atrocidades são cometidas, com as instituições democráticas destruídas, o povo venezuelano vivendo na miséria e a violência no modo de governar sendo a regra. Hugo Chávez foi, para os petistas, um “democrata” e Nicolás Maduro é um símbolo da luta anti-imperialista. A ditadura comunista em Cuba, além de defendida, é tratada com mimos pela esquerda. Até o porto de Mariel foi objeto das benesses petistas! É um paraíso de onde ninguém consegue fugir. A população é mantida sob rigoroso controle pelo aparato policial e pelos comitês “populares” de bairro. São esses os modelos democráticos?

A impostura parece não ter limites!”

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

A meta de inflação de 2023




“A meta de inflação de 2023
     
Por Fabio Giambiagi

Vou tratar aqui de um assunto que, em condições normais, deveria ser objeto das colunas de economia. Entretanto, penso que o contexto em que o tema está inserido justifica tratar dele nesta página, por ser algo emblemático, que transcende a dimensão técnica.

Quero antes, porém, fazer uma digressão. Aos 57 anos de idade, eu me tornei, se é que cabe a expressão, um “incrementalista”. Ao contrário da visão natural que muitos têm na juventude – e eu me incluía nisso há 30 ou 35 anos –, quando se acredita na possibilidade de as sociedades sofrerem grandes rupturas transformadoras, hoje estou convencido de que os avanços se dão gradualmente, por etapas. Nesse sentido e com alguma boa vontade, creio que se pode fazer uma leitura favorável da maioria dos nossos governos depois de encerrado o ciclo militar: José Sarney soube conduzir uma transição complexa, quando o País recuperou plenamente as liberdades democráticas; Fernando Henrique Cardoso foi um estadista que criou as condições para que o sucesso do Plano Real fosse um divisor de águas na História do Brasil; e a gestão de Lula da Silva foi marcada por avanços sociais que nem seus críticos – e eu fui um deles – ousariam negar. Não considero as gestões de Fernando Collor, Itamar Franco e Michel Temer nesse balanço porque cada um deles ficou pouco tempo no poder, embora os três tenham tido sua parcela de mérito – Collor pela mudança de modelo econômico, Itamar pelo lançamento do Plano Real e Temer pelas reformas econômicas. E, definitivamente, eu não colocaria a presidente Dilma Rousseff no mesmo grupo dos anteriores, pelo fato de que o seu governo foi um absoluto desastre, sob qualquer ângulo que se olhe – social, econômica ou politicamente – e ficará como um traço esquecível nos livros de História, perdido nas brumas do tempo.

Por maiores que tenham sido os progressos naqueles governos, eles foram parciais. Sarney avançou na política, mas seu governo acabou num pesadelo hiperinflacionário; Fernando Henrique mudou o Brasil, mas a economia em 2001/2002 era ainda extremamente vulnerável; e Lula “surfou” uma onda favorável, mas sem ter feito maiores investimentos e deixar uma economia sólida para depois da sua gestão – ao contrário, em 2010 todo tipo de desequilíbrio foi se acumulando, para estourar posteriormente.

Nessa perspectiva, entendo que a grande tarefa da equipe econômica chefiada pelo ministro Paulo Guedes, na minha modesta opinião, é deixar o País “tinindo” para crescer bem ao longo da próxima década. A situação externa é razoável – ainda que o aumento do déficit em conta corrente inspire cuidados; o Brasil está com uma taxa de juros que apenas dois anos atrás seria considera inacreditável; e com a reforma previdenciária aprovada abre-se, pela primeira vez em bastante tempo, a possibilidade de pôr ordem nas contas fiscais e, daqui a algum tempo, a relação dívida pública/produto interno bruto (PIB) passar a declinar. Poderemos ter então “regras do jogo” bastante parecidas com as de economias estáveis. Em tais condições, o Brasil poderá ter pela frente uma década próspera.

É nesse contexto que se insere o que vem a seguir.

A meta de inflação para 2019 foi de 4,25% e o Conselho Monetário Nacional (CMN) já definiu as metas de 2020 a 2022, com quedas graduais de 25 pontos por ano até 3,5% em 2022. Pelo andar da carruagem, a lógica seria reduzir outros 25 pontos na decisão a ser tomada em junho acerca da meta de 2023. A proposta aqui feita busca ir um passo além: propor uma meta permanente de 3% já a partir de 2023. Os indicadores de inflação, vale ressaltar, têm sido, de modo geral, excelentes há bastante tempo: a inflação vem tendo uma trajetória benigna desde 2017, a média dos núcleos também tem sido muito bem comportada e a expectativa Focus para 2020 é de uma taxa inferior à meta.

Embora eu tenha sido um defensor do gradualismo da postura do CMN no processo de redução da meta de inflação na forma de “escadinha”, penso que, à luz dos números observados nos últimos anos, não há mais razões para que essa estratégia se mantenha. Assim, na sua decisão de junho, sugiro que o CMN avalie seriamente a possibilidade de definir já a meta de 3% para 2023, tornando-a permanente a partir de então. Considerando que o Banco Central toma as suas decisões olhando para um período de 18 a 24 meses à frente, na prática o País teria uma transição de alguns meses e, a partir do começo de 2021, as decisões do Comitê de Política Monetária (Copom) teriam como referência um alvo de inflação de 3%, como ocorre na maioria dos países emergentes com metas de inflação. Com expectativas ancoradas, uma taxa Selic em torno de 4% a 5% e a ajuda de novas medidas fiscais para tornar viável uma trajetória favorável da dívida pública, o Brasil teria todas as condições de sinalizar para os investidores que nunca as chances desse estado de coisas se prolongar indefinidamente terão sido tão elevadas. Assim, a meta de inflação seria de 3,5% para 2022 e de 3% para 2023. E a partir de então não haveria mais o ritual de definir a meta todo mês de junho, porque ela já seria dada.

Quase três décadas depois do lançamento do Plano Real, em junho de 1994, poderemos dizer, então, que a transição até a estabilidade terá sido completada. FHC fez um governo admirável sob muitos aspectos, mas no seu último ano a inflação foi de 13%. Lula avançou nesse campo, mas tendo tido tudo ao seu alcance para dar um passo decisivo na matéria, contentou-se em conviver seis anos com uma meta de 4,5%. E Dilma Rousseff nos legou uma inflação de 11%, que caiu para 4% com Temer. Agora, chegou o momento de colocar o “último prego no caixão” dessa assombração brasileira e “cravar” uma meta final de 3%. No continente da inflação da ordem de 50% da Argentina e da hiperinflação da Venezuela, seria um feito notável.”

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

A vida é só um programa




“A vida é só um programa

 Por Silvio Meira

Cientistas acabam de anunciar a criação dos primeiros robôs vivos, feitos com a ajuda de algoritmos evolucionários e supercomputadores, a partir de células tronco de sapos. “Eles” têm algo que poderia ser chamado de “coração”, andam e nadam, podem trabalhar em grupos, sobreviver semanas sem comida, se curar sozinhos até mesmo quando seccionados em duas partes. São pequenos o suficiente para navegar em artérias.

Parece ficção científica, mas não é. A parte da imaginação, ainda, é que eles poderiam trabalhar como limpadores e livrar uma boa parte da população dos efeitos colaterais dos remédios para controle de placas de gordura... e da fatalidade de não tomá-los.

Geneticamente, as “coisas” são sapos, porque foram construídas a partir deles, mas isso é só um detalhe; poderiam ter sido feitas a partir de DNA sintético, tecnologia que em breve será parte do repertório básico de laboratórios e empresas mundo afora. Apesar de terem sido construídas como arranjos celulares de certa complexidade, dizer que são “robôs vivos” exige uma reinterpretação do que é a vida, já que estes sistemas são incapazes de evoluir, não têm órgãos reprodutores e não se multiplicam. Ainda bem. Mas morrem, se privados de nutrientes. E, como são “vivos”... são biodegradáveis, ao contrário de robôs de plástico.

Os robôs foram criados em universidades dos EUA. Sua pesquisa, publicada no início de 2020, serve para descortinar a década. São mais um exemplo de que talvez tenhamos que tratar sistemas vivos complexos – humanos, por exemplo – também como código de programas de computador. Nas coisas vivas, no lugar do silício, entra o carbono. As implicações serão imensas, seja do ponto de vista prático, filosófico ou ético.

Isso sem falar nos riscos biológicos que estes sistemas devem representar. Quando se considera o imenso potencial de inovação da biologia sintética, também há que se avaliar os riscos que a síntese de DNA representa para a biossegurança do planeta. Porque já está demonstrado que é possível escrever novos vírus a partir do zero. Talvez pior: até recriar vírus hoje extintos a partir de fragmentos de DNA que podem ser adquiridos no mercado.

Os anos 2020 se abrem, auspiciosamente, com os “robôs vivos” anunciando um universo de inovação que pode mudar, para sempre, o conceito de “vida”. Ao mesmo tempo, e justamente por causa disso, cria-se todo um espectro de possibilidades de manipular agentes e sistemas biológicos para criar riscos inimagináveis até agora.

Será que dá para ter o só o lado bom e evitar o que há de ruim da onda de bioinovação? É quase certo que não. São episódios paralelos da série de mudanças relacionadas à vida que veremos neste século. Um programa que, literalmente... quem viver, verá.”

segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Em favor da utopia que o Brasil esqueceu




Em favor da utopia que o Brasil esqueceu
     
Por Fernão Lara Mesquita

De 2014 até aqui a produtividade do trabalho no Brasil recuou 4,3% (Ibre-GV). De 1995 a 2018 a da indústria caiu 5% e a dos serviços avançou raquíticos 6%. A exceção que nos tem mantido à tona é o setor que, durante boa parte desse período, esteve mais longe do toque paralisante do Estado. A produtividade na agricultura nestes 23 anos ao longo dos quais a China houve por bem abrir mão da fome politicamente induzida subiu fulminantes 359%. Mas no resto do País a “retomada” arrasta-se pela “economia dos aplicativos”. Uber, iFood, Rappi são as grandes empreitadas do Brasil urbano de hoje...

Empurrados por essas formas de subemprego começa a haver, da interrupção da corrida para a Venezuela com Temer em diante, sinais de uma aceleração capaz de nos levar desse quase nada ao dobro desse quase nada. É tudo o que é possível esperar obter por enquanto, graças aos esforços ingentes da equipe técnica que estudou fora do Brasil enxertada neste governo. Mas ainda que a privilegiatura permita que ela faça tudo de que é capaz, o que tem estado longe de ser o caso, a sombra que persiste adiante, nesta véspera do fim do trabalho ignorante em todo o planeta Terra, é o que vimos colhendo da destruição quase completa do que havia de educação de qualidade no Brasil da “Era PT”.

Mas desgraça pouca é bobagem. Diante da crise mundial do emprego, muito pior que o problema do Brasil que nunca aprendeu é como superar o Brasil “formado” nesse entretempo, que é o que, perpassando todas as ideologias, está no poder nos quatro costados do Estado brasileiro, na academia, na mídia... No Brasil com voz, enfim.

O ex-presidente Fernando Henrique dizia em edição recente do Manhattan Connection que “esta é uma geração sem utopias” e que sem elas é impossível disputar eleições com boa chance de vitória. E, na falta delas, propõe uma celebridade para a candidatura à Presidência em 2022...

De fato, pela esquerda tem sido osso. A “utopia de gênero”, se é que se pode chamá-la assim, só se realiza plenamente na criminalização do amor e implica, no extremo, a mutilação de uma parte do organismo pela qual a esmagadora maioria do eleitorado tem especial predileção. Não há João Santana que consiga torná-la eleitoralmente atraente. E quanto à questão ambiental, a bandeira de que se quer apropriar da social-democracia até a esquerda mais radical, esta não é uma utopia, é um trabalho. Uma questão de sobrevivência que implica coisas tão chatas quanto persistir indefinidamente em lutas contra o que nos pedem aqueles velhíssimos hábitos pautados pelo prazer que custam tanto para morrer.

“A reinvenção dos modos de habitar a Terra” passa por uma capacidade de concertação que a humanidade ainda não tem. “A lógica das negociações multilaterais, como são as conferências da ONU sobre mudanças climáticas, por sua própria natureza e dimensão, na prática estão na contramão de qualquer ideia de urgência”, lembrou na semana passada Paulo Hartung, outro prócer da social-democracia brasileira nesta página. E o eleitor nacional, assim como o de qualquer nacionalidade, quer mudar sua sorte nos próximos quatro anos.

Sim, as exigências cambiantes da sobrevivência é que empurram a inovação e o progresso e estão aí a biotecnologia e a bioeconomia para prová-lo, como argumentava o ex-governador do Espírito Santo. Mas têm tanto charme quanto qualquer regime para emagrecer. E levada ao extremo passa a oscilar entre a anorexia e a “solução final” para um mundo sem o seu “único animal defeituoso”, o homem (também dito sua excelência o eleitor). Longe de se parecer com o eldorado da remissão da servidão que tanto empolga nas utopias.

Já para ser coerente ao negar a existência da crise ambiental debaixo dos incêndios e tempestades cada vez mais furiosos que castigam um mundo agredido é preciso, no extremo, aderir às ideias de que o Planeta Azul girando em torno do Sol num universo infinito não passa de uma invenção de Walt Disney e que homem e macaco não têm nem nunca tiveram nada a ver, tudo está aí como deus quer e nos parece a olho nu.

Casa de ferreiro, espeto de pau!

A China evoluiu do fundo do poço socialista para o “capitalismo de Estado” num movimento que só pode ser reproduzido se se aceitar a ideia de conviver com o partido único, os campos de concentração, agora urbanos, e o “argumento final” do tiro na nuca para resolver as questões controvertidas. Não é receita capaz de mudar o que quer que seja sem sangue. Mas o que o Brasil tem de comum com ela é a profundidade da miséria em que nos deixou o nosso “feudalismo de Estado”. A extensão do nosso desastre é o nosso maior trunfo. Cá, como já esteve lá, tudo está por fazer num mundo em rápido processo de estagnação. Não ha espaço maior de upside num planeta de juros negativos do que a terra arrasada brasileira. Tudo o que falta para realizá-lo é implantar a utopia democrática que nos tem sido barrada pela censura.

Os políticos brasileiros dispõem de um enorme volume de sonhos para vender que boa parte do resto da humanidade já comprou, com a vantagem de poder mostrar o fantástico resultado que ela colhe disso, em vez de acenar com meras projeções quiméricas como tinham de fazer para vendê-la os propagandistas da democracia quando ela ainda não existia no mundo. Nós continuamos mais distantes da utopia democrática nestes tempos em que a privilegiatura consome sozinha 92% dos quase 40% do PIB que o Estado toma todo ano ao país que trabalha do que estávamos na manhã da execução de Tiradentes por rebelar-se contra a elevação da carga de impostos para “irrisórios” 20% para sustentar a corte corrupta que explora a colônia.

“O povo no poder”!

Voto distrital puro, recall, referendo, iniciativa. Que outra mensagem pode ser mais sedutora e eficiente para levar até “lá” quem for capaz de revelar ao povo brasileiro o funcionamento simples das ferramentas que diferenciam a realização desse sonho da fraude por trás da versão lulopetista desse slogan?”

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Oremos




“Oremos
      
Por Ana Carla Abrão

Há alguns anos, ainda como secretária de Fazenda do Estado de Goiás, ouvi de um empresário uma afirmação que vale repetir aqui. No meio de uma reunião em que se discutia o custo Brasil, o aumento da carga tributária ao longo dos anos e as dificuldades fiscais dos Estados, ele me olhou e disse: ‘Secretária, nossa carga tributária é de fato elevada, mas quem me dera se os tributos no Brasil só me custassem a carga tributária. Eles me custam muito mais do que isso’.

Essa afirmação diz muito sobre a esquizofrenia tributária que vivemos no Brasil e sobre as dificuldades e ineficiências de um sistema complexo e disfuncional. Uma infinidade de regras e normas dão conta de tributos e contribuições que se sobrepõem e que se entrelaçam com alíquotas distintas, numa miríade de regimes especiais, isenções setoriais e incentivos fiscais regionais. O resultado, além das distorções alocativas e da regressividade conhecidas, é um enorme contencioso tributário, que corre em instâncias administrativas e judiciais Brasil afora. Isso significa incorrer em custos para reduzir o custo das regras, mas também mais custo para conseguir cumpri-las e depois muito mais custo em caso de descumprimento (ou suspeita), seja ele proposital ou não, devido ou não.

Além disso, um sistema complexo e oneroso como o nosso tem outros desdobramentos, sendo o mais perverso deles a possibilidade de alguns – aqueles com maior poder de pressão – obterem um tratamento diferenciado. Afinal, a carga elevada, o número crescente de impostos e contribuições e a dificuldade em se manter em conformidade com tantas regras, são argumentos legítimos para se defender uma exceção, via isenção ou a redução de carga tributária. Os motivos são sempre nobres: proteção dos empregos, desenvolvimento de um determinado setor, o exercício de uma função social relevante, etc.

Mas o Brasil de hoje vive de exceções, não de regras. Todos querem ser diferentes perante a lei, ignorando que i) alguém vai pagar por isso; ii) um tratamento fiscal diferenciado só se justifica mediante uma rigorosa avaliação de impacto que comprove sua adequação (econômica e social), dê transparência à origem de recursos que vão financiá-lo e demonstre as especificidades e diferenças que justificam um tratamento distinto frente a outros potenciais beneficiários. Afinal, leis e normas são feitas para todos e as exceções devem ser claramente documentadas, explicadas e as contrapartidas para a coletividade – principalmente nos custos – precisam ser divulgadas.

Pois o ano mal começou e já temos de lidar com a defesa de mais uma exceção. Trata-se da ampliação de privilégios para templos religiosos, já amplamente beneficiados por isenções fiscais. Desde a Constituição de 1988, a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios são proibidos de instituir impostos sobre templos de qualquer culto. Ou seja, já gozam de imunidade tributária graças a uma previsão constitucional que proíbe a cobrança de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), Imposto de Renda sobre o que arrecadam em dízimo, IPVA (Imposto Sobre Propriedade de Veículos Automotores) sobre os veículos que possuem e ISS (Imposto Sobre Serviços). Nos casos de isenção, é necessário que haja aprovação de lei complementar. Foi o caso do PLP 55/2019, aprovado em dezembro do ano passado pelo Senado Federal, autorizando os Estados a isentarem templos religiosos e entidades beneficentes de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) até 2032.

A ampliação das benesses, apoiada pelo presidente que tem nos evangélicos uma das suas principais bases de apoio, viria agora por meio de subsídios nas contas de luz dos templos religiosos de grande porte. Não surpreende o pleito que, como vimos acima, se tornou uma prática comum nos últimos anos. O que surpreende é que os que o defendem não se sintam constrangidos ao fazê-lo. Repassar para a população mais um pedaço da conta daqueles que já são privilegiados, é pedir mais uma parcela de sacrifício a quem já vem pagando muita conta que não é sua.

Além disso, aprofundam-se as distorções em um setor que deveria estar na direção contrária, diminuindo os subsídios que hoje chegam à casa dos muitos bilhões e que tornam a conta dos simples mortais muito mais cara do que deveria ser. Mas, à esta altura, com partes do governo e do Congresso defendendo mais uma vez o indefensável, só o que nos cabe é gritar e, para os que creem, orar (sem subsídios adicionais) para que a racionalidade impere sobre o clientelismo.”

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

'Presidencialização' da política?




‘Presidencialização’ da política?
     
Por Pedro S. Malan

“Poderão as democracias sobreviver quando são as crenças pessoais e não os fatos que sustentam nossa visão de mundo? Esta é a pergunta que deverá marcar não apenas 2020, mas os anos seguintes.” Ela foi feita neste jornal (27/12) por Pedro Doria e é especialmente relevante no Brasil de hoje, marcado por uma certa presidencialização da política.

Não se trata, está claro, de peculiaridade de nosso país. Em seu último número de 2019, a revista The Economist comenta (pág. 125) o resultado de amplo mapeamento feito pela empresa Chartbeat, que mede audiências para jornalismo online. O universo inclui 5 mil sites e 4 milhões de artigos, divididos em 34 tópicos (pessoas e temas). Assim como no ano anterior, em 2018 o presidente Donald Trump dominou as atenções: foram 112 milhões de horas diárias na leitura de peças jornalísticas, em média mais de 300 mil horas por dia e picos de mais de 600 mil ou 700 mil. Nenhuma outra palavra ou tema rivalizou ao longo do ano, em termos de interesse sustentado, com Trump. Pudera, em apenas um dia de dezembro o presidente dos EUA emitiu nada menos que 123 tuítes. (O evento recordista, mas apenas por um dia, foi o incêndio na Catedral de Notre-Dame, em Paris.)

Trata-se da presidencialização da política, versão EUA. O presidente é fonte inesgotável de notícias e de sua multiplicação através das redes sociais – por seguidores, pelos que discordam, por robôs de ambos os lados. O que importa é estar em evidência e ocupar sempre espaços na mídia, a favor ou contra; é manter permanentemente mobilizado o eleitorado.

É natural, compreensível, que o poder incumbente esteja no centro das atenções. Em regimes presidencialistas, o chefe do Poder Executivo ocupa lugar privilegiado. Não é surpresa que Jair Bolsonaro – que, como sabido, tem Trump como modelo – tenha visibilidade na mídia muito superior à de outras lideranças políticas. A Folha de S.Paulo (31/12/2019) listou suas próprias manchetes do ano, 365. Bolsonaro ocupa posição mais de duas vezes superior à do segundo colocado (governo); e está mais de três vezes e meia à frente do terceiro colocado – Lava Jato e Previdência, empatadas.

E quais os traços centrais dessa política presidencializada que caracteriza o Brasil de hoje e tende a predominar ao longo do próximo triênio? Decididamente, o presidencialismo à brasileira não é, desde a eleição de Bolsonaro, o conhecido presidencialismo de coalizão. Além de rejeitar coligações partidárias no Congresso, nosso presidente implodiu o próprio partido pelo qual foi eleito. (As liberações para emendas parlamentares, no entanto, bateram recorde em 2019.) Tampouco tem sido um presidencialismo de cooptação, de animação ou de isolação, como já os tivemos.

O nosso é um caso de presidencialismo de confrontação, à moda de Trump, para manter um eleitorado fiel permanentemente mobilizado. Para quê? Para 2022, decerto; talvez já para 2020, se o novo partido estiver regularizado até lá. E para mais também, talvez. O principal mentor intelectual de Bolsonaro, filhos e alguns ministros assim se expressou em vídeo recente(outubro de 2019): “A política não é uma luta de ideias, é uma luta de pessoas e de grupos. Tem que parar com essas concepções ideológicas gerais que não levam a parte alguma. O que você tem que saber é exatamente o que fazer no momento decisivo”. Ainda em outubro de 2019, via tuíte, já havia postado que “só uma coisa pode salvar o Brasil: a união indissolúvel de povo, presidente e Forças Armadas”. O que seria o mencionado momento decisivo? Ainda cumpre esclarecer.

A pergunta feita por Pedro Doria, relembrada acima, faz pensar em Aldous Huxley: “A sobrevivência da democracia depende da capacidade de um grande número de pessoas de fazer escolhas realistas à luz de informação adequada”. A observação, feita em 1958 (Admirável Mundo Novo Revisitado), permanece tão atual quanto relevante. Raymond Aron sempre apontou o fato de que, no mundo da política, crenças prevalecentes numa sociedade podem e devem ser vistas como parte integrante de teias de fatos, percepções e circunstâncias que configuram aquilo que chamamos realidade. Keynes, a seu turno, atribuía grande importância ao que denominou degrees of belief (graus do acreditar) prevalecentes em determinada sociedade. Entre nós, o tema foi tratado com brilhantismo por Eduardo Giannetti em seu livro O Mercado das Crenças, que antecipou os estudos do Prêmio Nobel Jean Tirole sobre produção, consumo e investimento em crenças. São todas, segundo penso, observações mais que relevantes para o Brasil de hoje.

Em Diários Intermitentes (póstumo, recém-lançado), Celso Furtado reflete sobre os políticos profissionais que conheceu de perto: “... um político puro, em última instância, decide em função das chances pessoais que tem para continuar ocupando espaço”. A observação é verdadeira, mas pode ser ampliada: não existe vácuo na política, espaços estão sempre a ser disputados. A estratégia voltada para a sua conquista, manutenção ou ampliação é constantemente revisitada à luz de fatos novos, crenças pessoais e, espera-se, alguns valores, lealdades, princípios e espírito público.

O papel de lideranças políticas responsáveis, em particular do presidente da República e seus principais colaboradores, é o de contribuir para reduzir – e não aumentar – os graus de incerteza sobre o futuro. Não com promessas, bravatas e discursos contra inimigos do País e do povo, internos ou externos. Mas com propostas de políticas públicas, o que exige exercício consistente de abertura ao diálogo, com base em moderação, serenidade, postura e compostura; exercício apto a inspirar um mínimo de confiança e cooperação na busca de (compartilhados) objetivos maiores. Árdua tarefa.”

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

A questão do salário na democracia




“A questão do salário na democracia
     
Por Fernão Lara Mesquita

Escondidinho no jornal menos lido do ano, o da ressaca do primeiro dia da década que o País inteiro torce para que venha a ser finalmente “a ganha”, a Folha de S.Paulo registrou solitariamente estudo da Controladoria-Geral da União que constata que desde 2003 nem um único funcionário público brasileiro foi demitido por mau desempenho, veja você! Houve “expulsões” por flagrante de roubalheira, mas a matéria não esclarecia se os excluídos perderam também os salários ou se, como acontece com os juízes ladrões, foram apenas aposentados compulsoriamente com todos os “direitos” garantidos.

No mesmo período, que coincide com a “Era PT”, triplicou o gasto com a folha de pagamentos do funcionalismo (0,5% da população), do que resultou que mais de 92% da quase metade do PIB que o governo toma todo ano ao País que produz com o pretexto de investir em infraestrutura, educação, saúde e segurança públicas passou a ser gasto só com a privilegiatura, o que resume para além da costumeira empulhação a causa da presente miséria nacional.

Estabelecido o fato, entretanto, prosseguia a matéria pelo padrão geral da imprensa, qual seja, a discussão com “especialistas”, todos eles também funcionários públicos, sobre qual a “solução” possível excluída a única efetiva, que é aderir ao regime democrático. E lá vinha: que há 21 anos está inscrito na Constituição que funcionários podem ser demitidos por “insuficiência de desempenho”, mas a matéria nunca foi regulamentada; que, embora haja esboços de “meios para premiar o bom desempenho” (ao qual será sempre interposta a regra da “isonomia” elevada à condição de intocável “princípio” por édito do Poder Judiciário, que herdou intactos os poderes do imperador), “faltam instrumentos de avaliação para punir o mau desempenho”, outra impossibilidade prática fora da ordem democrática, aliás, pois sem ela serão sempre os próprios “fornecedores”, e não os “clientes”, que “avaliarão” quando um serviço público foi bem ou mal prestado...

Na democracia pode variar quem toma a iniciativa de propor qualquer regra ou mudança de regra – os eleitores ou os eleitos –, mas não varia nunca quem toma a decisão final. E o campo onde mais evidentemente se pode constatar o caráter opressivo das decisões impostas fora da ordem democrática é o da regulamentação dos salários, tanto públicos quanto privados.

A Constituição dos Estados Unidos só menciona salários em quatro passagens: ao definir que o presidente, os legisladores e os juízes farão jus a “uma compensação” que não poderá ser aumentada ou diminuída durante seus mandatos e na 28.ª e última emenda, de 1992, que determina que qualquer alteração nos salários dos congressistas decidida em plenário só vigorará para o próximo Congresso eleito.

Nas Constituições estaduais os salários públicos são definidos com ou sem a mediação de comissões especiais independentes, mas, ou antes, ou depois da aprovação, a decisão tem de ser ratificada pelos eleitores ou pode ser desafiada por eles em referendo. Só quatro cargos são definidos nessas Constituições. Os de governador e vice, o de chefe do Ministério Público e o de secretário de Estado, o encarregado de organizar todas as “eleições”, as do calendário e as “especiais”, que incluem as “deseleições” por recall (230 funcionários foram alvo delas em 2019), os referendos de leis dos Legislativos e outras decisões no voto que vão da aprovação ou não de obras públicas específicas ao casamento gay. Os quatro são diretamente eleitos pelo povo. Todas as outras “secretarias” estaduais são opcionais. Cada Estado pode ter as que quiser e definir se quer seus titulares eleitos ou nomeados. Vai daí, em 2016 o funcionário mais bem pago em todos os 50 Estados era o secretário de Educação, recebendo por volta de 300 mil dólares/ano, quase o dobro, em média, do que recebiam os governadores e os demais secretários.

Mais interessante ainda é a definição do salário mínimo. Na virada do ano 24 Estados mais Washington D.C. já tinham decidido aumentos do “salário mínimo por hora” de 2020. Os acréscimos vão de 0,10 dólar na Flórida a 1,50 no Novo México, em Washington e Nova York. Em oito desses Estados os aumentos são determinados por decisões de iniciativa popular anteriores indexando o salário à inflação, dez por leis votadas em 2019, seis por leis de iniciativa popular alterando decisões anteriores.

Nova York e Oregon têm três mínimos diferentes: para New York City, Long Island e Westchester e para o interior, um; para a área metropolitana de Portland e para o resto do Estado, caso a caso, o outro. Washington tem mínimos diferentes para quem recebe ou não gorjetas. Nevada diferencia os que recebem e os que não recebem benefícios de saúde. Há os que atrelam e os que não atrelam os aumentos à inflação. Há os que decidem ano a ano e os que fazem acordos de aumentos graduais por um período de vários anos.

A definição “por hora” atende ao requisito de plena liberdade de horário e tempo de trabalho que cada pessoa pode escolher ter para si. E as diferenças entre Estados apontam para a melhoria da distribuição da renda pela oferta de condições mais vantajosas de investimento e emprego para os Estados em piores condições na disputa por eles.

Assim, na próxima vez que lhe despejarem aquelas explicações complicadas e cheias de fronteiras indefinidas sobre o que é ou não “democracia”, feche seus ouvidos e saia bocejando. O que define isso não é o que está ou não escrito na Constituição ou neste ou naquele texto filosófico. A questão é absolutamente simples e incontroversa. A revolução democrática é a que inverte a hierarquia das relações de subordinação entre os membros da sociedade feudal. Há democracia quando todas as decisões do governo têm de ser submetidas ao povo. Não há democracia quando o povo é que é submetido a todas as decisões do governo. E só a ordem democraticamente estabelecida é legítima. Qualquer coisa fora dela é opressão e você tem não só o direito, como também o dever moral de não se submeter a ela.”

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

O arquiteto do imprevisível




O arquiteto do imprevisível
     
Por Fernando Gabeira

Tantos votos no fim de 2019 de que o ano novo fosse leve, e ele praticamente começou com as bombas sobre o carro do general Suleimani, no Iraque. De novo a tensão, o medo da guerra e tonitruantes ameaças.

Com a humildade de quem não conhece os meandros da política no Oriente Médio, meu primeiro impulso foi entender a estratégia de Trump. Recorri aos especialistas, mas não foram poucos os que admitiram incompreensão diante dos passos do presidente dos EUA. O que ele quer adiante, como vai desdobrar esta crise por ele agravada?

O próprio Trump afirmou que não estava começando uma guerra, e sim tentando acabar com um conflito. Dois tipos de debate surgiram: os que valorizam ou condenam a ação do Trump e os que, simplesmente, se limitam a perguntar se foi sábia a sua decisão.

Há uma longa história de atritos entre EUA e Irã, mortes, sequestros, derrubada de aviões. Por que agora Trump deu um passo que nem Bush nem Obama ousaram arriscar?

Havia uma tensão crescente, morte de um americano, bombardeio das guerrilhas xiitas no Iraque, invasão da embaixada americana. Era uma sucessão de escaramuças, mas não completamente estranha às relações dos dois países.

Assim como é difícil entender por que Trump decidiu isso agora, também é difícil prever todas as consequências.

Não creio que o Irã, apesar da pressão popular, vá retaliar cegamente ou mesmo abrir várias frentes de luta contra os EUA. Seus líderes são experientes, embora alguma resposta tenham de dar imediatamente.

Suleimani era um dos artífices da repressão interna aos manifestantes contra o regime iraniano. Sua morte uniu o país e, certamente, esvaziou, no momento, os anseios democráticos de uma parte da população. Sua influência se estendia às milícias do Iêmen e do Iraque, aos governos na Faixa de Gaza, na Síria e no Líbano, onde o Hezbollah também é forte.

No entanto, até agora houve apenas duas reações políticas consideráveis. No Iraque, houve a decisão da retirada das tropas americanas, decisão cujo modo de realizar ainda é incógnito. Por seu lado, Teerã anunciou que deixaria o acordo nuclear costurado por Obama com a participação da Europa. Trump já se desligou dele em 2018, abrindo o caminho para seu fracasso.

Não só pela clássica hostilidade entre EUA e Irã, a política norte-americana na região não é fácil de ser formulada. Obama tentou um caminho conciliatório, baseado em negociação. Mas dois importantes aliados, Israel e Arábia Saudita, não aprovavam esse enfoque. O próprio Obama ordenou a execução de muitos oponentes usando drones. No seu governo, Osama bin Laden foi despachado deste mundo. Mas os executados por Obama eram considerados terroristas e, sobretudo, não tinham cargos em governo, como Suleimani, nem eram tratados como heróis nacionais.

É essa linha que Trump ultrapassou, linha que, submetida ao Congresso, talvez tivesse enormes dificuldades de aprovação.

Ainda não conhecemos as consequências. Mas Trump arriscou um passo perigoso quando ameaçou destruir os bens culturais do Irã. Apesar da simpatia que desperta entre seus adeptos e admiradores, incluído o governo brasileiro, Trump isolaria dramaticamente os EUA se rebaixasse o país ao nível dos taleban ou do Isis, que destruíam, sorrindo, obras caríssimas à humanidade.

Em primeiro lugar, romperia com a própria posição americana, que respaldou em 2017 a condenação ao bombardeio do legado cultural dos países em guerra. Mesmo dentro dos EUA, não sei se seria respaldado nessa decisão. Vi uma entrevista de fonte do Pentágono dizendo que não tinham planos de atacar alvos culturais. Não deixa de ser um apelo do tipo: não nos meta nessa empreitada.

Se um simples articulista tem de estudar e tomar certas precauções diante de um quadro complexo e dinâmico, imaginem um país. Se me lembro bem dos tempos da política, a fórmula clássica é estimular a distensão e reforçar os votos pela paz e pela solução pacífica dos problemas. Mesmo sem entender bem o quadro, é uma declaração que não tem como comprometer o País.

É compreensível que Bolsonaro e seu ministro tenham tomado uma posição de apoio a Trump, se levamos em conta suas ideias. Entra aí uma questão que cansei de criticar no PT: a política externa não é uma decorrência direta das ideias de um presidente ou de um partido. Ela se move de forma mais cautelosa, porque representa uma política nacional, certo tipo de consenso que tem um passado e, certamente, um futuro.

Na cabeça de Bolsonaro, as coisas funcionam assim: o PT apoiava Cuba e Venezuela, ganhamos as eleições, temos o direito de apoiar os EUA de forma irrestrita. Essa é a dificuldade, supor que uma vez ganha as eleições o vencedor impõe ilimitadamente sua vontade.

A suposição de que a política externa seja apenas uma decorrência da visão partidária se estende a outras áreas, com o mesmo potencial corrosivo. A produção artística, por exemplo. A ideia é a mesma: se o PT apoiou um determinado tipo de produção cultural, a hora é de mudar radicalmente e apoiar um campo simetricamente oposto. Em ambos os casos – política externa e produção cultural – uma visão desse tipo é perigosa.

No campo internacional, desfigura uma construção simbólica que o País levou décadas para afirmar. No campo cultural, simplesmente anula o estatuto independente da arte e a considera apenas petista ou bolsonarista, na realidade, uma extensão do populismo de esquerda ou de direita.

É esse tipo de equívoco que talvez leve Trump a afirmar tão naturalmente que pode bombardear os bens culturais do Irã. A mesma ilusão dos aiatolás, que tentaram remover as ruínas de Persépolis por acharem ser símbolo de uma cultura decadente.

Não conseguiram, mas a ideia é sempre a mesma: ou a cultura é uma propaganda ou merece ser destruída.”

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Diplomacia ideológica




“Diplomacia ideológica

Por Merval Pereira

Na sua ilógica atuação internacional, o governo brasileiro vem colhendo situações inusitadas, como a que fez com que o presidente Bolsonaro afirmasse que o Brasil continua interessado nos acordos comerciais com o Irã, momentos depois de ter emitido uma nota oficial em que apoiou o ataque dos Estados Unidos.

Ontem, no entanto, o Itamaraty adiou uma reunião, agendada antes dos ataques, que a embaixada do Brasil em Teerã teria para discutir questões culturais, alegadamente porque não teria sentido discutir acordos com o Irã tendo apoiado a ação dos americanos.

O que parecia ter sido um recuo do Brasil movido pelo bom-senso, em relação ao conflito EUA x Irã, quando Bolsonaro mandou todos ficarem em silêncio depois que o Irã chamou nosso embaixador para uma conversa, vê-se agora que foi um surto que já passou.

Embevecido com a imagem de Trump na televisão, dirigindo-se à nação respaldado por militares de alta patente, Bolsonaro passou a defender a posição brasileira inicial e a atacar o governo do ex-presidente Lula com afirmações equivocadas. Não precisava inventar críticas, elas são muitas nesse relacionamento com o Irã e com outras autocracias e ditaduras pelo mundo.

O acordo que Lula assinou com a Turquia e o Irã em 2010 não permitia que o urânio fosse enriquecido a 20%, como acusou Bolsonaro. Simplesmente não foi levado em conta na Europa e nem nos Estados Unidos porque não tinha credibilidade. Foi uma tentativa do governo Lula de dar-se uma importância que não tinha nas negociações geopolíticas internacionais.

Três anos depois, os membros do Conselho de Segurança da ONU que têm direito a veto (Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, Franca e China) e mais a Alemanha, após quatro dias de negociações em Genebra, chegaram a um acordo que foi considerado histórico.

O compromisso, que estava em vigor mesmo Trump tendo retirado os Estados Unidos dele, previa que o Irã parasse a produção de urânio enriquecido a mais de 5% e impedia a instalação de novas centrífugas. A lição é que não se pode tratar a política externa da maneira como vem sendo tratada pelo presidente Bolsonaro e pelo chanceler Ernesto Araújo, que reagem com o fígado, antes de ter estratégia e visão geopolítica e econômica.

Não se pode dizer o mesmo do governo de Lula, que tinha estratégia clara e megalômana, que levou o país a assumir posições contrárias às nossas tradições diplomáticas e acima de nossa capacidade de atuação.

No caso de Honduras, chegou a ser escandalosa a intromissão do governo brasileiro nos assuntos internos daquele país, a ponto de ter tentado, com a cumplicidade de Hugo Chávez, criar um fato consumado com o retorno do presidente deposto Manuel Zelaya, abrigando-o na embaixada brasileira.

Da mesma forma, o Brasil foi dos países mais ativos, ao lado da Venezuela de Chávez, na condenação das bases militares dos Estados Unidos na Colômbia, mas nunca fez um comentário sobre os acordos militares que o mesmo Chávez andou assinando com a Rússia e o Irã.

O Brasil tem definições de política externa na Constituição que o colocam contra qualquer tipo de terrorismo, e foi nisso que o chanceler se baseou para a nota apoiando o ataque americano no Irã. Bolsonaro usou o mesmo argumento ontem, para defender a primeira reação brasileira.

Mas também na Constituição há outros aspectos, como o da não intervenção em assuntos de outros países, o da tentativa de buscar sempre a paz, e este é o caminho que temos que tomar. O Brasil não tem que ser parte de uma crise no Oriente Médio, e não tem condições geopolíticas para ser intermediário de nenhum acordo internacional fora de sua região.

As ideologias não podem impedir que se tenha uma política externa que atenda aos interesses do país. Na ditadura militar, o Brasil reatou laços de amizade com a China no governo Geisel, assim como, no mesmo governo, cujo chanceler era o embaixador Azeredo da Silveira, reconheceu a independência das colônias portuguesas na África.”

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Trump impõe regras do jogo e reação do Irã é cautelosa




“Trump impõe regras do jogo e reação do Irã é cautelosa

Por Guga Chacra

Donald Trump sai fortalecido da crise com Irã ao menos no curto e médio prazo. Talvez o suficiente para chegar com tranquilidade às eleições presidenciais em novembro sem um conflito armado no Oriente Médio. O presidente conseguiu impor as regras do jogo, deixando o regime iraniano mais cauteloso em relação aos interesses americanos na região. A reação ao ataque que matou Qassem Soleimani, maior comandante militar do Irã, buscou ao máximo evitar baixas americanas, deixando claro o temor iraniano de provocar o líder dos Estados Unidos.

Quando tomou a ousada decisão de assassinar Soleimani, a avaliação era de que a resposta iraniana definiria se Trump sairia como vencedor ou perdedor do episódio. Não em relação ao Irã, mas para a sua imagem dentro dos EUA. Eleito com um discurso isolacionista e crítico de aventuras militares fracassadas de seus antecessores no Afeganistão, Iraque e Líbia, o presidente corria o risco de envolver os americanos em uma nova guerra, contra o regime de Teerã. Neste caso, seria perdedor. Se a retaliação iraniana fosse amena e convencional, sairia como vitorioso. Foi o que ocorreu.

Os iranianos agiram de maneira racional e dentro da expectativa. Levaram em conta a imprevisibilidade de Trump. Realizaram um ataque convencional, de escala pequena, contra um alvo óbvio, dentro do teatro de operações onde ocorria a recente escalada de tensão, no Iraque. Sabiam, ou ao menos temiam, que o presidente americano poderia ordenar fortes bombardeios contra a infraestrutura de petróleo do país.

No curto e médio prazo, o Irã deve evitar provocações diretas aos EUA. Entendeu que, pelas novas regras do jogo, pode combater aliados americanos na região, como é acusado de ter feito no ataque contra refinarias da Arábia Saudita – os houthis, aliados iranianos, reivindicam a ação, mas serviços de inteligência da região atribuem ao regime de Teerã. O limite, porém, são os americanos. A morte de um cidadão americano foi respondida com uma série de bombardeios a uma milícia xiita. A invasão do complexo onde está a embaixada americana, com a eliminação da segunda figura mais poderosa do Irã.

Sem dúvida, em termos geopolíticos estratégicos, no longo prazo, pode haver alguns efeitos negativos para os interesses americanos. A permanência das tropas dos EUA no Iraque está em xeque após voto simbólico no Parlamento em Bagdá pedindo a remoção delas. Sem estas forças, a tendência será um aumento ainda maior da influência iraniana em Bagdá. Há ainda o risco de um renascimento do grupo Estado Islâmico.

Para um presidente isolacionista, estes efeitos colaterais não serão um problema grave. Poderá falar para a sua base eleitoral que a "América está em primeiro lugar" e defenderá os interesses americanos quando for necessário, como ficou claro na ação contra Soleimani e, antes dele, de Al Baghdadi, líder do grupo Estado Islâmico. Sem a necessidade de enviar centenas de jovens americanos para uma ocupação, como fazia George W. Bush. Um isolacionismo com firmeza.

O resultado final desta crise, caso não haja mais volatilidade, também abre espaço para o regime iraniano vender como vitória internamente, embora este não tenha sido caso. Pode dizer que bombardeou as forças dos EUA, o que é fato, e assim teria se vingado da morte de Suleimani. Também está próximo de atingir o objetivo do comandante militar, mesmo depois de sua morte, de conseguir forçar a retirada americana do Iraque. Por outro lado, a economia do país segue em ruínas e não há a menor possibilidade de eliminação das sanções ao menos ao longo deste ano.

O mundo agora também entende as regras do jogo entre os EUA e o Irã, que devem seguir mais ou menos os termos das do Hezbollah e Israel. O grupo xiita libanês realiza suas atividades e busca exercer a sua influência, mas sempre tomando o cuidado de não bater de frente com os israelenses porque sabe que sofrerá uma dura pancada. Israel não se importa se o Hezbollah luta contra o Grupo Estado Estado Islâmico ou jihadistas da oposição síria para defender o regime de Bashar al-Assad, além de integrar uma coalizão política com cristãos no Líbano. Mas a organização, considerada terrorista por muitos países do mundo, sabe que não pode sonhar em atingir Haifa ou Tel Aviv.

Com Teerã e Washington, será igual. Graças a Trump, goste dele ou não. Tenho enormes críticas ao presidente. Neste caso, ele acertou.”