“A questão do salário na democracia
Por Fernão Lara Mesquita
Escondidinho no jornal menos lido do ano, o da ressaca do
primeiro dia da década que o País inteiro torce para que venha a ser finalmente
“a ganha”, a Folha de S.Paulo registrou solitariamente estudo da
Controladoria-Geral da União que constata que desde 2003 nem um único
funcionário público brasileiro foi demitido por mau desempenho, veja você!
Houve “expulsões” por flagrante de roubalheira, mas a matéria não esclarecia se
os excluídos perderam também os salários ou se, como acontece com os juízes
ladrões, foram apenas aposentados compulsoriamente com todos os “direitos”
garantidos.
No mesmo período, que coincide com a “Era PT”, triplicou o
gasto com a folha de pagamentos do funcionalismo (0,5% da população), do que
resultou que mais de 92% da quase metade do PIB que o governo toma todo ano ao
País que produz com o pretexto de investir em infraestrutura, educação, saúde e
segurança públicas passou a ser gasto só com a privilegiatura, o que resume
para além da costumeira empulhação a causa da presente miséria nacional.
Estabelecido o fato, entretanto, prosseguia a matéria pelo
padrão geral da imprensa, qual seja, a discussão com “especialistas”, todos
eles também funcionários públicos, sobre qual a “solução” possível excluída a
única efetiva, que é aderir ao regime democrático. E lá vinha: que há 21 anos
está inscrito na Constituição que funcionários podem ser demitidos por “insuficiência
de desempenho”, mas a matéria nunca foi regulamentada; que, embora haja esboços
de “meios para premiar o bom desempenho” (ao qual será sempre interposta a
regra da “isonomia” elevada à condição de intocável “princípio” por édito do
Poder Judiciário, que herdou intactos os poderes do imperador), “faltam
instrumentos de avaliação para punir o mau desempenho”, outra impossibilidade
prática fora da ordem democrática, aliás, pois sem ela serão sempre os próprios
“fornecedores”, e não os “clientes”, que “avaliarão” quando um serviço público
foi bem ou mal prestado...
Na democracia pode variar quem toma a iniciativa de propor
qualquer regra ou mudança de regra – os eleitores ou os eleitos –, mas não
varia nunca quem toma a decisão final. E o campo onde mais evidentemente se
pode constatar o caráter opressivo das decisões impostas fora da ordem
democrática é o da regulamentação dos salários, tanto públicos quanto privados.
A Constituição dos Estados Unidos só menciona salários em
quatro passagens: ao definir que o presidente, os legisladores e os juízes
farão jus a “uma compensação” que não poderá ser aumentada ou diminuída durante
seus mandatos e na 28.ª e última emenda, de 1992, que determina que qualquer
alteração nos salários dos congressistas decidida em plenário só vigorará para
o próximo Congresso eleito.
Nas Constituições estaduais os salários públicos são
definidos com ou sem a mediação de comissões especiais independentes, mas, ou
antes, ou depois da aprovação, a decisão tem de ser ratificada pelos eleitores
ou pode ser desafiada por eles em referendo. Só quatro cargos são definidos
nessas Constituições. Os de governador e vice, o de chefe do Ministério Público
e o de secretário de Estado, o encarregado de organizar todas as “eleições”, as
do calendário e as “especiais”, que incluem as “deseleições” por recall (230
funcionários foram alvo delas em 2019), os referendos de leis dos Legislativos
e outras decisões no voto que vão da aprovação ou não de obras públicas
específicas ao casamento gay. Os quatro são diretamente eleitos pelo povo.
Todas as outras “secretarias” estaduais são opcionais. Cada Estado pode ter as
que quiser e definir se quer seus titulares eleitos ou nomeados. Vai daí, em
2016 o funcionário mais bem pago em todos os 50 Estados era o secretário de
Educação, recebendo por volta de 300 mil dólares/ano, quase o dobro, em média,
do que recebiam os governadores e os demais secretários.
Mais interessante ainda é a definição do salário mínimo. Na
virada do ano 24 Estados mais Washington D.C. já tinham decidido aumentos do
“salário mínimo por hora” de 2020. Os acréscimos vão de 0,10 dólar na Flórida a
1,50 no Novo México, em Washington e Nova York. Em oito desses Estados os
aumentos são determinados por decisões de iniciativa popular anteriores
indexando o salário à inflação, dez por leis votadas em 2019, seis por leis de
iniciativa popular alterando decisões anteriores.
Nova York e Oregon têm três mínimos diferentes: para New
York City, Long Island e Westchester e para o interior, um; para a área
metropolitana de Portland e para o resto do Estado, caso a caso, o outro.
Washington tem mínimos diferentes para quem recebe ou não gorjetas. Nevada
diferencia os que recebem e os que não recebem benefícios de saúde. Há os que
atrelam e os que não atrelam os aumentos à inflação. Há os que decidem ano a
ano e os que fazem acordos de aumentos graduais por um período de vários anos.
A definição “por hora” atende ao requisito de plena
liberdade de horário e tempo de trabalho que cada pessoa pode escolher ter para
si. E as diferenças entre Estados apontam para a melhoria da distribuição da
renda pela oferta de condições mais vantajosas de investimento e emprego para
os Estados em piores condições na disputa por eles.
Assim, na próxima vez que lhe despejarem aquelas explicações
complicadas e cheias de fronteiras indefinidas sobre o que é ou não
“democracia”, feche seus ouvidos e saia bocejando. O que define isso não é o
que está ou não escrito na Constituição ou neste ou naquele texto filosófico. A
questão é absolutamente simples e incontroversa. A revolução democrática é a
que inverte a hierarquia das relações de subordinação entre os membros da
sociedade feudal. Há democracia quando todas as decisões do governo têm de ser
submetidas ao povo. Não há democracia quando o povo é que é submetido a todas
as decisões do governo. E só a ordem democraticamente estabelecida é legítima.
Qualquer coisa fora dela é opressão e você tem não só o direito, como também o
dever moral de não se submeter a ela.”
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