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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Mais do mesmo





“Mais do mesmo
      
Por William Waack

É um dos movimentos mais “naturais” na política alguém ocupar o lugar que um outro deixou. No fundo, é o que está acontecendo na mais recente manifestação de queda de braço entre o presidente Jair Bolsonaro e o Legislativo em torno da manutenção ou não do veto do chefe do Executivo a itens da peça orçamentária votada pelos parlamentares.

Traduzido: o que está em disputa é quem manda quanto no Orçamento. E, se Jair não percebeu antes, nesse ano e pouco de seu mandato, o Legislativo encurtou bastante a capacidade do Executivo de dispor da alocação de verbas por meio do Orçamento – além de limitar consideravelmente a utilização de medidas provisórias.

Trata-se de pura e simples redução de poder do presidente. Que se pode aplaudir ou detestar, mas não ignorar que esse fato resulta em boa parte do que se aponta há meses: a incapacidade ou o desinteresse (ou ambos) do governo em montar no Legislativo uma tropa bem coordenada. Bolsonaro não se livrou da regra do jogo do sistema de governo brasileiro, que opõe a um chefe de Executivo forte um Legislativo cheio e cada vez mais cheio de prerrogativas.

Sem ter nunca contado com uma articulação política eficaz, Bolsonaro agora escalou militares de cabeça bem organizada e acostumados a método e disciplina (além de hierarquia) para cuidar de acordos políticos que o próprio presidente propõe, depois se arrepende. É o caso nesta mais recente disputa: Bolsonaro achou que podia deixar o Congresso derrubar seu veto (ou seja, entregaria mais uns R$ 30 bilhões do Orçamento aos parlamentares), num grande “acordo” do qual foi convencido a se arrepender.

O que neste momento o move a peitar o Congresso é a exasperação da equipe econômica e mais o general Heleno, cansados das chantagens da política e das dificuldades para seguir adiante com uma ampla ação de reformas que dependem do Legislativo. O ministro Paulo Guedes está com sangue nos olhos, e promete não liberar dinheiro para deputados se eles seguirem no propósito de tolher o Executivo em questões orçamentárias. Para efeitos práticos, colocou Bolsonaro diante de “ou eles ou eu”.

Ocorre que a efervescência do teatro político brasileiro “estabilizou-se” e não surpreende nem comove mais ninguém. Virou normal. Um exemplo: por vários motivos, sendo o principal deles obter vantagens eleitoreiras das mais imediatas, o presidente abriu conflito com os governadores quando depende em boa medida deles para a grande articulação política de um projeto de enorme peso, que é o da reforma tributária. Para que mais uma briga, boceja-se.

E a cafajestice, injustificável sob qualquer ponto de vista, proferida contra uma profissional da imprensa (frente à qual obviamente ele tem o direito de manifestar todas as queixas, críticas e reclamações que quiser), reafirma que o estilo é o homem, e não vai mudar. Não está no seu horizonte ser chefe da Nação. É uma das sólidas constantes no nosso teatro político (a outra é a força do lavajatismo), e esse tipo de atuação será considerado a causa do seu êxito ou fracasso, dependendo fundamentalmente de como a economia se comportar.

Neste contexto vale a pena conferir como plateias de investidores estrangeiros estão apreciando nosso espetáculo. Tal como reportado por diversas instituições financeiras, visto de fora, o Brasil se tornou monótono. Não se consegue discernir, depois da aprovação da reforma da Previdência, qual é, afinal, o ponto prioritário para o governo. Considera-se que o País (em contraste com alguns emergentes, como a Argentina) está no “caminho certo”, mas não se disfarça certo ceticismo quanto à capacidade de “entrega” no necessário ritmo mais acelerado por parte da equipe econômica.

Diante de um país que teria tanto para oferecer, e para crescer, e para resolver, os estrangeiros estão dizendo que estamos nos esforçando para sermos um pouco mais do mesmo.”

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

As memórias assassinadas de um ex-capitão de milícias





“As memórias assassinadas de um ex-capitão de milícias
     
Por José Nêumanne

O presidente da República, Jair Bolsonaro, tem feito das tripas coração para evitar que o primogênito, Flávio, responda por seus atos quando deputado estadual no Rio de Janeiro. Conseguiu dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli, presidente, e Gilmar Mendes a interrupção do inquérito do Ministério Publico sobre movimentação atípica de verbas de seu gabinete pelo ex-assessor Fabrício Queiroz. Como a decisão foi tomada ao arrepio da lei, o plenário paralisou-a por 9 a 2, tendo Gilmar e Toffoli mudado seus votos. Agora resolver assumir publicamente que mandou o filho condecorar o miliciano Adriano da Nóbrega com a Medalha Tiradentes, a mais importante do Legislativo do Estado fluminense.

“Para que não haja dúvida. Eu determinei. Manda pra cima de mim”, disse, sábado 15, na inauguração da alça que liga a ponte Rio-Niterói à Linha Vermelha, no Rio. O fato data de 2005, quando o atual chefe do governo era deputado federal e seu filho senador, deputado estadual. Ou seja, não havia subordinação oficial deste ao pai, que, na ocasião, criticou da tribuna da Câmara a condenação do então tenente PM por homicídio do guardador de carros Leandro dos Santos Silva, 24 anos. “Naquele ano (2005) era herói da Polícia Militar. Como é muito comum, um PM quando está em operação mata vagabundo, traficante”, disse. De fato, Adriano comandou a operação em que o flanelinha foi morto, mas não atirou na vítima. Solto em 2006, foi absolvido em 2007. Havemos de convir que daí a ser herói da PM distam muitos séculos-luz.

Sábado ele fez referência ao fato de o suspeito de ter participado da execução de Marielle Franco não ter passado pelo trânsito em julgado para ser considerado culpado. E assim o exige o STF em nova jurisprudência, que tornou inútil a condenação em segunda instância para permitir que um condenado comece a cumprir pena.

O Bope, como é público e notório, tornou-se uma espécie de ai-jesus da repressão policial ao banditismo mercê do sucesso de público e crítica do filme Tropa de Elite, de José Padilha. A ironia do episódio é que o herói na tela é o capitão Nascimento, interpretado por Wagner Moura, astro máximo da esquerda estelar, que execra a violência de qualquer ação policial e justifica o crime contra inocentes como resultado de injustiça social.

A ironia atinge o paroxismo ao se acrescentar que Moura é baiano como Rui Costa, governador de seu Estado. Foi lá que o herói que virou chefe de milícia, atividade criminal similar, mas oponente do tráfico de droga nos morros cariocas, foi cercado e fuzilado por 70 policiais locais e fluminenses (chefiados por Wilson Witzel).

O tiroteio foi evitado no domingo 9 de fevereiro em Esplanada (BA), cujo cemitério fora construído pelo beato Conselheiro a caminho de Canudos. Duas balas certeiras eliminaram o risco, temido pelos “bravos” que o cercaram pela habilidade no manejo do gatilho de arma capaz de produzir rajadas de tiros, de o assediado atirar. Setenta contra um, no caso, seria covardia, mas foi só cálculo. Pois a adoção num cerco de execução sob a inspiração do lema dos néscios – “bandido bom é bandido morto” –, de fato, serviu mesmo foi para emudecer um arquivo capaz de sujar a reputação de muitos meliantes vivos e poderosos.

A guerra suja da política expôs estupidez similar. Bolsonaro apontou o dedo em riste para o mando do PT de Costa. Este também adotou um tom falangista: policiais têm direito de salvar sua própria vida quando atacados, “mesmo que os marginais tenham laços de amizade com a Presidência”.

O eco dos disparos verbais com o passar dos dias deverá ser depositado nos paióis para a guerra já declarada entre os protagonistas deste faroeste caboclo até que o campo de batalha mude do roteiro do beato massacrado há mais de cem anos para os palanques em 2022. O silêncio forçado do ex-falso herói abatido produzirá o conforto e o consolo de bandidos secretos que operam por trás do palco na encenação diária da gestão pública sobre os inocentes explorados pelos maus costumes políticos.

Este artigo é publicado a 23 dias do segundo aniversário da execução da vereadora Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes. Pressionada pela cobranças internacionais, a polícia de Witzel, o mais novo inimigo jurado da reeleição de Bolsonaro, dificilmente terá chegado ao que realmente interessa: quem mandou matá-los. Afinal, executantes do crime, apontados na investigação, são gafanhotos cujo estrago não se compara ao poder mortal dos mandantes que os contrataram para eliminá-los. A impossibilidade de contar com informações que poderiam ser dadas pelas memórias do ex-capitão de milícias certamente contribuirá – e muito – para adiar essa identificação para as calendas gregas.

Pouco mais de um ano depois desse assassinato, dois prédios desabaram, matando 24 pessoas em Muzema, no Itanhangá, no Rio, onde Marielle atuava. Além do saldo fatal, ecoa a frase infeliz do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, a respeito do tema deste texto: “A milícia começou numa intenção de proteger as comunidades. Na boa intenção. Começou com uma intenção de ajudar, mas desvirtuou e são bandos armados”.

Adriano tinha informações que foram apagadas perto do cemitério construído pelo Conselheiro: um bandido morreu para livrar muitos outros .”

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

A irritação de Guedes





“A irritação de Guedes

Por Carlos Andreazza

Fato: Paulo Guedes está irritado. Constatação: irrita-se com frequência crescente. Sugestão: que se atente à periodicidade dessas erupções. Tese: a irritação, que o ministro expressa em falas desastrosas, corresponde a picos de descontentamento com o governo que integra; suas declarações como transbordamentos de quando o fervo não se pode conter intramuros.

Algo não flui naquele rio; talvez em decorrência do encontro das águas do liberalismo econômico com as do reacionarismo. Numa mistura em que o liberal — porque convicto de prestar um serviço maior ao país — aceita relativizar valores democráticos e supõe ser possível prescindir, ainda que momentaneamente, do liberalismo político, o esgoto sempre se impõe, escraviza e descarta. As declarações de Guedes seriam o alarme de quando a geosmina rompe — vence — o tratamento.

O ministro, porém, não é vítima. É agente. Ninguém pode aceitar que um homem experiente desconhecesse o Guandu em que aceitou nadar. Todo mundo, pois, deve se perguntar: como explicar o descarrilamento entre a propaganda de crescimento otimista para 2020 e doravante, a afirmação constante de que a economia vai bem, e os piques de mau humor de Guedes?

Há um padrão para seus arroubos de franqueza: as piores manifestações do ministro ocorrem sempre que a sua agenda de reformas é travada — deliberadamente prejudicada — pelo presidente da República. É possível também identificar o tema que mais dá concretude a esse desalinho. As três últimas vezes em que explodiu derivaram de Jair Bolsonaro boicotar a reforma administrativa.

A primeira da série remonta à virada de novembro para dezembro de 2019. Aquela fala autoritária sobre AI-5 coincidiu com o presidente trair compromisso firmado. O texto estava pronto. Avalizado pelo ministro. Havia um acordo com o Parlamento para seu encaminhamento. Tudo costurado, fiado na palavra de Guedes. Mas Bolsonaro mandou parar; falou em ajustes. Armou uma crise, instrumentalizou auxiliares, sempre Onyx Lorenzoni, para desautorizar o Posto Ipiranga e brecar o avanço do projeto — e o fez com aquela desculpa de o seu tramitar ser gatilho para a deflagração de revolta popular como a havida no Chile.

Guedes sabia se tratar de balela, não desconhecia a natureza do chefe, líder sindical cuja carreira se constituíra por meio da defesa dos interesses corporativos de servidores públicos; mas não deixou de estourar se valendo da linguagem bolsonarista, a de um pretenso clima de desordem que pudesse desaguar em atos de exceção como resposta. O andamento da reforma, portanto, ficaria para 2020. Aquela desculpa lhe servia.

Há mesmo quem creia que a radicalização do discurso de Guedes — a surfada na onda do AI-5, por exemplo — tenha método; que o ministro, assim, buscaria se aproximar da ala ideológica do governo para ganhar algum fôlego. Talvez. Mas isso somente se intuísse — ao menos intuísse — o destino que os reacionários reservam aos liberais. Intuirá? Há, por outro lado, quem veja o ministro mais à vontade entre os primeiros.

O ano novo chegou. Bolsonaro deixou que circulasse a notícia de que o texto seria remetido ao Congresso na segunda semana de fevereiro, Guedes teve de se engajar nessa promessa; mas logo se soube que era falsa, conforme exprimia a mensagem presidencial ao Legislativo, na qual a reforma administrativa, que fora — para o Ministério da Economia — a mais importante depois de aprovada a da Previdência, nem sequer constava entre as prioridades.

O ministro ficara novamente exposto. Veio, então, a disparada de irritação materializada na fala sobre “parasitas”, com a qual, de resto, atacando o funcionalismo público, subsidiaria a campanha dos que militavam contra seus planos, os que entraram na cabeça de Bolsonaro para lhe fornecer nova desculpa: como mexer agora com aquela categoria?

Com a reforma administrativa adiada e esvaziada, a ser enviada ao Parlamento (se for) decerto muito enfraquecida, não tardaria até que o ministro — ademais tendo de lidar com a perda de Rogério Marinho, sua Casa Civil informal — explodisse de novo, pouquíssimo depois, dessa vez para propor a reflexão sobre real desvalorizado e o fim da festa de empregadas domésticas na Disney.

Outra tese: a irritação de Guedes também como mostra de uma noção particular de tempo; de tempo curto. De quem tem pressa, tanto mais em ciclo eleitoral. De alguém que sabe, conhecendo a pouca convicção do presidente, que precisa entregar logo; que tem consciência de que é a projeção — a esperança —de crescimento, de geração de empregos, o que o mantém protegido. Até quando?

O estrilar de Guedes, afinal, é o apito — o instinto de sobrevivência — que nos informa sobre a impossibilidade de se reformar estruturalmente o Estado sobre um solo de instabilidade, tanto mais se a imprevisibilidade é forjada por aquele que lhe garante o emprego.

Bolsonaro é o limite. O ministro não se poderá dizer surpreendido.”

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Revolução por revolução, melhor a sem sangue





“Revolução por revolução, melhor a sem sangue
     
Por Fernão Lara Mesquita

Estão aí os episódios dos “parasitas” do ministro Guedes e do ICMS dos governadores sobre os combustíveis do Bolsonaro para resumir a situação. É proibido até falar no assunto!

Na verdade, descartado o jogo de cena, nem a esquerda, nem a direita da privilegiatura admitem que toquem nos privilégios dela. Não há nada a estranhar no fato de um país naufragado continuar sendo estuprado por aumentos automáticos nos salários do funcionalismo público indemissível. Como todo mundo na vida como ela é, os políticos também só “entregam serviço” para quem tem o poder de “demiti-los”. E o funcionalismo é o único corte da população que tem não só um canal direto de cobrança, como também o poder de retaliar esses “patrões” eventuais sabotando os mandatos deles. Para o resto de nós eles são inatingíveis uma vez eleitos.

O político padrão não formula políticas. Isso é coisa de estadista. São apenas oportunistas úteis que atendem a demandas do mercado eleitoral para chegar ao poder e continuam a fazê-lo apenas e tão somente para permanecer no poder. A quem amarrar o destino deles é, portanto, a questão que decide tudo. Enquanto a política continuar fechada em si mesma, toda ação dos políticos, malgrado todos os esforços dos eventuais estranhos nos ninhos dos Legislativos e dos Executivos, continuará respondendo exclusivamente à única força em condições de submetê-los.

Deu pra levar enquanto havia o bastante para que o País Real se mantivesse em ascensão mesmo sangrado sem parar pelo País Oficial. Mas em alguma altura do percurso do tsunami arrecadatório que FHC pôs para rolar e o lulismo acresceu da roubalheira e do empreguismo público desenfreados, foi contornada a “curva de Laffer” que assinala o ponto onde o custo do Estado e a carga de impostos matam a economia e a arrecadação diminui mesmo aumentando as alíquotas. Hoje, entre ativos, aposentados e hereditários, eles são por volta de 10 milhões de pessoas. Menos de 0,5% da população, mas que come 97% do trilhão e meio de reais, mais de 40% do PIB, que os governos nos arrancam na forma de impostos todo ano. Seus privilégios podem ser vistos até lá do Banco Mundial, que mede a distância entre os ricos e os pobres do mundo. E o buraco do Brasil, onde excluídos os muito ricos e alguns outros espécimes raros em via de extinção existem os funcionários públicos e os pobres, é recorde no planeta.

Quanto às reformas tributária e administrativa e às outras tentativas do ministro Guedes de modular a despesa pela receita, a questão é simples. A única solução eficiente é também a única solução decente: flexibilidade absoluta. Qualquer outra não funciona. Qualquer outra é indecente. Só se explica pela preservação de privilégios odiosos.

Não adianta discutir a cada 50 anos a alteração de regras que não serão cumpridas nem gerarão consequências para quem as desrespeitar porque tudo continuará sendo uma ação entre amigos. Enquanto não ligar o fio terra do País Oficial no País Real e fizer toda decisão política começar e acabar no povo, continuaremos assistindo a essa briga de foice no escuro entre grupos de interesse pelos pedaços do orçamento público. Uma hora está mais pra sindicalista de ladrão, outra mais pra sindicalista de polícia, mas tudo o que sobra para o povo é sempre aparar as foiçadas à mão nua.

Só o que resolve é mudar quem tem o poder de punir o descumprimento da regra.

“Eleições” como essas que temos por aqui não chegam nem a arranhar a pele do “Sistema”. O eleitor só é chamado para a disputa de pênaltis de um jogo jogado à sua revelia para chancelar com seu voto os plenos poderes vitalícios e hereditários entregues a mais uma fornada de representantes de si mesmos que nunca vão saber quem foi que os elegeu, antes de ser expulso de campo de novo.

A “petrificação constitucional” do privilégio por “direito adquirido” – que torna exigível à mão armada de lei a repetição ad infinitum de qualquer assalto da privilegiatura ao bolso da escravatura que tiver sido perpetrado uma vez – é o substituto da “vontade de deus” na velha ordem absolutista. “Cola” exclusivamente porque tem por trás a ameaça da “fogueira”, da morte econômica, da paralisia burocraticamente imposta, da devassa permanente, do processo sem fim, do “esculacho” policial e da cadeia. O castigo depende da casta a que o indivíduo pertence, mas é absolutamente certo.

Mas certo também como a História mostra que é, isso acaba inevitavelmente em revolução. E revolução por revolução, a melhor é a sem sangue. Chama-se “democracia representativa”.

O primeiro passo deve ser, portanto, instalar na “pátria amada” a condição sem a qual uma democracia representativa é impossível: o voto distrital puro com recall, que amarra com transparência absoluta, pessoal e intransferível o destino de cada representante eleito à satisfação dos seus representados.

Isso dará aos brasileiros as pernas que hoje lhes faltam para caminhar por si mesmos. Então, bons de drible como sempre fomos, poderemos discutir, diante do que der e vier, para que lado queremos ir.”

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Os evangélicos e as eleições




“Os evangélicos e as eleições
     
Por Denis Lerrer Rosenfield

Os evangélicos estão no centro do debate nacional. Tornaram-se atores políticos, pautando sua ação em valores conservadores, incluindo desde costumes até questões dogmáticas, como a mudança da Embaixada do Brasil em Tel-Aviv para Jerusalém. Ao contrário dos católicos, que não seguem normalmente os dizeres políticos de seus padres, eles tendem a observar as orientações de seus pastores. É bem verdade que os católicos são numericamente superiores aos evangélicos, porém tal diferença não tem relevância eleitoral.

Ademais, por muito tempo os católicos abandonaram posições religiosas em benefício de posições esquerdistas da Teologia da libertação, apoiada pela CNBB. Criou, por sua Pastoral da Terra, o MST e sempre o apoiou desde então. Não mais respeitou o direito de propriedade, afastando a Igreja dos empreendedores rurais. Esses setores da Igreja foram firmes apoiadores dos governos petistas.

O eleitorado evangélico considera os costumes sob uma ótica religiosa. Aí não entra em questão uma discussão propriamente racional, pois o seu fundamento se encontra num texto bíblico, que fornece os critérios do juízo e da ação. Assim é o caso do aborto, do casamento homoafetivo, dos textos didáticos sobre gênero e do que o PT considera politicamente correto. Aliás, esse partido começou a perder seu eleitorado evangélico ao contrariar essa pauta de valores. Quando Bolsonaro se manifesta sobre a pauta de costumes, tem em mente precisamente esse eleitorado.

Outro ponto de princípio dos evangélicos diz respeito à mudança da embaixada brasileira para Jerusalém. Trata-se de uma questão dogmática, não sujeita a discussão: Jesus ressuscitará quando Jerusalém se tornar a capital do Estado judeu. Passa, então, a correr outro tempo, o do processo de conversão dos judeus, passando ambas as religiões a ser uma, sob os princípios do cristianismo, principalmente o reconhecimento de Jesus Cristo como Messias.

Bolsonaro comprometeu-se com esse seu eleitorado a fazer tal mudança. Seu compromisso continua, embora por questões conjunturais tenha sido adiado. Muito provavelmente realizará essa mudança em 2021, um ano antes da eleição presidencial. Ao cumprir sua promessa, terá apoio maciço da comunidade evangélica. Note-se que Trump assim conquistou o apoio do eleitorado evangélico, ganhou as eleições e cumpriu a sua promessa.

O PT está aqui mal colocado, pois optou pelo politicamente correto de forma esquerdizante e se chocou de frente com os evangélicos. As contrariedades e os ressentimentos se traduziram no apoio ao candidato Bolsonaro em 2018. As posições antissemitas/antissionistas do PT igualmente tiveram papel importante no distanciamento. Lula tenta uma reaproximação, porém suas dificuldades são imensas. A visita ao papa tampouco atenua o problema, ao dirigir-se a outro eleitorado, além de seu caráter manifestamente inapropriado ao envolver o santo padre numa questão política, a da corrupção e do roubo em seus governos, sem arrependimento nem confissão.

Tomemos o exemplo da Assembleia de Deus. Essa confissão tem no Brasil em torno de 20 milhões de membros. São pessoas acima de 14 anos de idade, capazes de fazer a escolha de sua religião, quando então se tornam parte integrante dela, em sentido pleno. Considerando a idade eleitoral de 16 anos, quase todos são eleitores, em sentido estrito. Não barganham com questões dogmáticas, como certos preconceitos veiculam contra os evangélicos. Foram missionários suecos que a introduziram no País. São pessoas extremamente sérias e comprometidas com sua religião. A Igreja Universal do Reino de Deus, numericamente menor, tem, por sua vez, enorme importância midiática, por ser proprietária da Rede Record. Trata-se de uma rede de comunicação que abarca principalmente as classes C e D.

Qualquer PEC ou projeto de lei, para ser aprovado na Câmara dos Deputados, necessita passar pelo crivo da bancada evangélica. Após a bancada da agricultura e da pecuária, é a segunda em importância. A Câmara tem 513 deputados federais e a bancada evangélica, 86. Outras estimativas chegam a 106. O Senado tem 81 parlamentares e a bancada evangélica, 9. Outras estimativas chegam a 14. Qualquer articulação parlamentar de governo deve passar por tratativas com essa bancada, que sempre sustentará suas questões de princípio, mesmo quando não forem objeto específico de negociação.

Os evangélicos estão distribuídos em vários partidos, embora votem alinhados entre si. A sua estratégia consiste em captar o maior número possível de eleitores em diferentes configurações partidárias, atendendo a conveniências regionais. Ademais, escolhem candidatos preferenciais em cada Estado, concentrando neles os seus votos. Os candidatos escolhidos são pessoas próximas das lideranças religiosas e delas dependem, agindo organicamente. Muitos são “filhos espirituais”, assessores e discípulos.

Bolsonaro extraiu bem essa lição. O PT não a levou em consideração. Os demais candidatos deverão enfrentar essa questão.”

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

A morte eterna




“A morte eterna
      
Por Leandro Karnal

Em fevereiro de 1920, há exatos cem anos, o Partido dos Trabalhadores Alemães (Deutsche Arbeiterpartei, DAP) virava o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, NSDAP). Crescia a liderança de Adolf Hitler no grupelho. O bizarro núcleo de associados olhava com medo e desconfiança o aumento da crise alemã desde a derrota na Grande Guerra. O risco de um golpe de esquerda, o desemprego, a humilhação nacional no conflito de 1914-1918 e os sonhos messiânicos de uma Alemanha forte outra vez animavam aqueles seres que se reuniam em cervejarias.

As ideias eram variadas e os membros tinham um espectro amplo. Porém, o que unia todos era o nacionalismo, o discurso antidemocrático e antiliberal, o caráter anticomunista e, acima de tudo, um entranhado e sólido antissemitismo.

O antissemitismo germânico, infelizmente, não existia de forma isolada. Havia teóricos mais organizados na França republicana ou na Rússia. Massacres de judeus eram rotineiros nos territórios vizinhos do czar em pleno início do século 20.

Nos Estados Unidos, da mesma forma, vicejava uma vasta onda de ataque. Também lembramos, em 2020, o centenário da infame obra de Henry Ford, o magnata dos automóveis: O Judeu Internacional. O pensamento do empresário seria bem recebido do outro lado do Atlântico: Ford foi condecorado pelos nazistas com a mais destacada honra para um estrangeiro: a Grande Cruz da Águia Alemã. Nos EUA e no resto do mundo, havia apoio a “melhorias raciais”. O discurso contra os judeus apresenta raízes históricas muito antigas, porém foram os doentes mentais as vítimas de práticas agressivas nas democracias e na Alemanha nazista. O antissemitismo e a eugenia contra “fracos” unificavam o ódio nas ditaduras e nas democracias.

O nazismo é um traço terrível da história mundial. Da mesma forma, outros estados totalitários, como o stalinista, mostram que a opressão absoluta e criminosa não é um acidente. O que mais incomoda em todo caso é a permanência de adoradores da barbárie.

O caso recente com o ex-secretário Roberto Alvim é emblemático. A demência é uma hipótese confortadora, porque implica inserir o nazismo no quadro das perturbações cerebrais. Seria bom se todo nazista do passado ou todo simpatizante do presente fosse um caso de disfunção. Infelizmente, a realidade é outra. O “mal banal” de Hannah Arendt, a “psicologia de massas” de Reich, a amnésia seletiva de Cidade Sem Passado (Das schreckliche Mädchen, 1990, Michael Verhoeven), o pungente texto de Primo Levi (É Isto um Homem) são alguns elos para entender o fenômeno mais além do delírio. O nazismo contém uma vontade de controle, um sentido de missão, uma violência unificadora de grupos e uma catarse social muito além da simples idiotice individual.

Nós, humanos, carregamos dores imensas, ressentimentos, preconceitos, análises rasas em muitos campos, cegueiras, memórias deformadas sobre nós e nosso papel no mundo, questões sexuais problemáticas, ódios familiares mal disfarçados, confusões internas, angústias e todos os males que a caixa de Pandora ainda puder conter. Faz parte da nossa constituição psíquica um fluxo expressivo de pulsão de morte, no sentido técnico da expressão freudiana e no mais amplo e metafórico alcance do termo. O nazismo consegue pegar toda essa dor e dirigi-la a um foco. Cria um eu ideal, inexistente na prática, o ariano puro (pode ser o militante, o cidadão de bem) e um inimigo perfeito, o judeu (ou a feminista, ou o conservador, etc.). Todo o bem flui de um e todo o mal de outro. Você é fraco intelectualmente? Basta repetir slogans e, pela insistência e pela câmara de eco do comício (ou do grupo de WhatsApp), você passa a pensar que aquela ideia tênue e rasa é compartilhada por outros e, de repente, uma coisa sem nexo ou base vira um clichê coletivo.

A sedução do nazismo (ou do stalinismo, ou da ortodoxia religiosa fundamentalista ou de qualquer pensamento que elimina a crítica ou o contraditório) é sempre a mesma: alça a cargos e ao microfone gente ruim, medíocre, fraca e que ganha o poder por força da circunstância. Essa gente encarna a morte que não queremos ver em nós, mas desejamos atribuir a outros. Exorciza insignificância por mostrar outro ser comum (como o Führer) repetindo o que eu sempre desconfiava na minha escuridão interna.

O nazismo é a morte permanente porque continua seduzindo pessoas, provocando estéticas, estimulando vídeos que ainda fazem referências ao caráter assassino, violento e autoritário do processo. O nazismo já seria execrável para sempre pelos seis milhões de judeus mortos e por outras vítimas como os dissidentes, comunistas, gays, Testemunhas de Jeová, comunidades Roma e Sinti e tantos outros. Só existia uma opção, ser ou parecer aderir ao modelo que o famigerado Goebbels defendia: integrar-se à cultura única ou desaparecer.

Milhões morreram por essa sedução tétrica de poder e de distopia destruidora de pureza. Isso já seria trágico. Que alguém ainda se deixe seduzir por tais ideais é ainda mais assustador. Cem anos do partido nazista e uma eternidade insuportável de sedução pela morte. É preciso ter muita, muita, muita esperança para sair da sedução do mal. Ele é banal e pode ocupar cargos.”

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

A bomba acima de todos





“A bomba acima de todos
      
Por William Waack

A ação do governo em torno de um grande eixo estratégico – reduzir o balofo Estado brasileiro – tem sido em parte uma lição de oportunidades perdidas. Vendo o Estado brasileiro como principal entrave ao crescimento, a equipe de Paulo Guedes colocou a reforma administrativa no centro do foco. Tratar do funcionalismo público seria a maneira direta de lidar com contas públicas, eficiência e gestão.

O presidente Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes Foto: Dida Sampaio/Estadão
Conforme já assinalado aqui, está na elite do funcionalismo público brasileiro (especialmente federal), por sua capacidade de organização e influência, o grande adversário da proposta de Paulo Guedes de uma ampla reforma do Estado, começando pela administrativa. Nesse sentido, do ponto de vista político, a operação toda começou mal.

Em parte pelo próprio ministro, que parece subestimar como se propagam na esfera legislativa e político-partidária (fortemente influenciada pelo funcionalismo em Brasília) palavras que ele profere em público sem calcular consequências. Ao adversário neste momento ele entregou a bandeira de “vítima”, que é nas narrativas políticas sempre uma posição confortável.

No fundo está, porém, uma outra questão política mais abrangente e profunda. É o tamanho do empenho do Executivo em levar adiante de forma coordenada e organizada no Legislativo uma operação para alterar substancialmente o serviço público, que justamente ali tem um de seus mais importantes pilares de sustentação. É difícil fugir à constatação de que o problema central é a dificuldade do próprio presidente em ditar a agenda política (aliás, seu grande e pouco usado instrumento de poder).

Por detrás da “fumaça” sobre o campo de batalha da reforma administrativa, está uma realidade crítica. Que deveria robustecer o governo com argumentos imbatíveis. De fato, existe no Brasil um “prêmio salarial” pago pelo contribuinte ao servidor público, prêmio que não encontra comparação nas principais economias.

Os números são de diversas instituições, como Banco Mundial, FGV ou Ipea, que compararam remunerações nos setores público e privado levando em consideração a semelhança entre funções. No Brasil, esse prêmio chega a 96%, enquanto a média mundial (setor público melhor remunerado que o privado) é de 21%. Nos Estados esse “prêmio” é menor e, nos municípios, praticamente se equivalem as remunerações.

O problema, assinalam esses estudos, não está no atendente do posto de saúde ou no agente penitenciário, mas, sim, na elite do funcionalismo. E vem de longe, não pode ser atribuído a um só governo. Servidores públicos no topo conseguiram até melhorar seu rendimento em período de grave crise econômica: durante a recente recessão, a diferença a favor dessa categoria frente ao setor privado aumentou (segundo o Ipea). É o resultado evidente alcançado pela sua capacidade de articulação política.

Em estudos do Banco Mundial, a equipe de Guedes foi buscar recomendações que parecem sensatas: as mais de 300 carreiras do funcionalismo público brasileiro necessitam ser sistematizadas e reorganizadas; o tempo médio para que um funcionário chegue ao topo da carreira precisaria ser esticado; a taxa de reposição deles precisaria ser reduzida. A situação só se agravou nos últimos tempos. A pressão desse setor sobre as contas públicas se juntou ao precário estado delas: 12 dos Estados brasileiros não vão conseguir respeitar um dos dispositivos essenciais da Lei de Responsabilidade Fiscal, que proíbe gastos acima de 60% com folha de pessoal.

Com o que chegamos à famosa bomba fiscal – no fundo, o fator central condicionando os acontecimentos. Não é apenas uma questão técnica. É política no seu significado mais amplo, como ficou mais uma vez demonstrado para Guedes e Bolsonaro.”

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Das nuvens, também chovem dados





“Das nuvens, também chovem dados

 Por Silvio Meira

Há uns meses, falamos das Três Leis da Era Digital, inspiradas nos princípios de Asimov para a Robótica. Eram assim: 

1) Deve-se proteger os dados das pessoas

2) Deve-se proteger as pessoas dos algoritmos.

3) Deve-se garantir que a primeira e a segunda leis sejam bases para o futuro e não caminhos para o passado.

Uma possível implementação da nossa primeira lei é a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que trata do ecossistema de dados no Brasil, cuidando da proteção e privacidade das pessoas. Não é um problema menor: “quase” em tempos de LGPD, dados de milhões de usuários de grandes instituições vazam. Neste mês, foram vazados os dados do programa Clube de Descontos do governo, que expôs dados de todos os funcionários públicos federais, inclusive agentes da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin. As informações mostravam até um deles posa de vigilante na UnB.

Estamos a 6 meses da entrada em vigência da LGPD, e ela vale para todos, inclusive o Estado. Mas seria um erro pensar que tal problema só afeta o Brasil. Um vazamento de dados em Israel acaba de deixar em aberto dados de todos os eleitores do país. Atentado digital? Não: para achar os dados, bastava clicar no botão direito do mouse e ver o código-fonte no navegador.

Há pelo menos 600 anos, o desenho de informação e o controle de sua circulação, na forma de apontamentos e mapas, em tempos de escassez e imprecisão, foi essencial para expandir nosso (entendimento do) mundo. Portugal, tão pequeno, era especialmente competente em gestão de informação e o fez de forma estratégica. O que podemos aprender com o passado, em tempo de tantos dados precisos e tão pouco design e gestão?

O problema de proteção de dados tem, dentro dele, um problema de engenharia de informação. Ele pode ser chamado de gestão de ciclo de vida de informação do negócio. Envolve uma miríade de fatores: quais são os dados necessários e suficientes para realizar algo? Quando, como onde e por que eles devem ser preservados? Não é algo simples de resolver, como usar uma nuvem computacional: 91% não criptografam arquivos “parados”; 87% não deletam arquivos quando uma conta é fechada. Das nuvens, também chovem dados.

E o guarda-chuvas não é a LGPD. A lei deverá criar um ambiente em que todas as instituições serão forçadas a criar, manter e evoluir processos de gestão do ciclo de vida do informação do negócio. Isso demanda tempo, estratégia, até mesmo mudança em modelos de negócios. Mas era isso que os portugueses tinham para descobrir o mundo: estratégia e gestão da informação, com os recursos possíveis na época. Quem quiser sobreviver na era digital terá que fazer algo muito parecido, senão igual.”

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Movimento binário





“Movimento binário
      
Por Rosângela Bittar

O ministro Paulo Guedes, sempre que quer muito uma coisa, acaba por passar pelo risco de, mais do que perdê-la, ganhar o seu contrário. Repete um comportamento binário: proposta-agressão; retificação-desculpas. E final feliz, obviamente desgastado e politicamente enfraquecido para retomar a dianteira da negociação.

Tem dificuldades extremas com as palavras civis, as nuances do vocabulário corrente. Sua linguagem social não funciona para a sociedade como funciona para seu público da Economia. Para os iniciados, a agressividade transforma-se em franqueza e é até admirada, e o insulto transforma-se em piada de auditório. Para o público em geral, porém, o ministro passa por agressor gratuito, fanfarrão, boquirroto e desastrado. Torna-se, desnecessariamente, o enfant terrible do governo.

Até parece acreditar que a provocação e a ameaça velada são argumentos eficazes numa negociação política. Não são. Todas as vezes em que se dirigiu ao Congresso para pedir voto favorável à sua reforma da Previdência acabou por ganhar novos opositores a ela. Desdenhou dos deputados, defendeu o tudo ou nada.

O presidente da Câmara, por duas ou três vezes, teve de esperar a fervura baixar para negociar ao modo do Parlamento a aprovação das medidas que eram também prioritárias para deputados e senadores.

Sem capitalização não tem reforma, sentenciara Guedes. Teve. Ou economia de R$ 1 trilhão ou não adianta nada, advertira. Com R$ 850 bilhões o governo celebrou a vitória e Guedes não pediu o boné, como ameaçara repetidamente. Foi-se firmando o estilo.

Mas o ministro não aprendeu com os atrasos provocados pelo seu modelo torto de convencimento. A reforma administrativa pretende acabar com privilégios (argumento que sensibilizou o público para as mudanças da Previdência) e reorganizar o Estado, em situação caótica, dois objetivos que conquistam a sociedade para o apoio à reforma. Mas Guedes começa agora a negociá-la pelo mesmo caminho, o do confronto antecipado, recorrendo, inclusive, a uma palavra historicamente maldita nessa arena, “parasita”.

Se o que pretende é convencer o Congresso a votar, mais perto de deputados e senadores está o funcionalismo experimentado na negociação política. Para os servidores e suas lideranças não bastam os argumentos de que a reforma não atingirá os atuais funcionários nem os integrantes das carreiras de Estado.

O ministro pode achar, também, que de forma incisiva e, em alguns momentos, truculenta, conseguirá atingir seus objetivos. Ou, ainda, não saiba fazer de outro jeito. Fato é que precisa de um anteparo para a reforma administrativa como teve para a da Previdência.

Nem com o governo Guedes pode contar. Em dezembro teve de sustar o envio do projeto ao Congresso por resistência interna. Ministros atingidos não conheciam seus termos e não o haviam debatido. Guedes prometeu discuti-lo no recesso, mas ainda não o fez.

A Câmara e o Senado querem, de verdade, debater a reforma administrativa e provavelmente aprová-la, como aprovaram a trabalhista e a da Previdência e se dispõem a enfrentar a tributária. Mas o governo, novamente, está atrapalhando. A situação da administração pública é conhecida e rende uma rica argumentação com base em números alarmantes.

Alguns deles: O Brasil gasta 14% do PIB com a máquina, enquanto a União Europeia gasta 9,9%. O número de servidores cresceu 34% em 15 anos e sua remuneração aumentou, em média, 53%. Em algumas áreas do governo há 8 níveis hierárquicos, 117 carreiras, 43 planos de carreira, mais de 2.000 tipos de cargos, 86% de estatutários (com estabilidade). O Reino Unido tem 6% com estabilidade, só para setores essenciais.

Não é necessário insultar ninguém para provar que não dá para continuar como está.”

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

As viagens de Zé de Abreu





“As viagens de Zé de Abreu
      
Por Pedro Fernando Nery

Há um ano, o ator José de Abreu se proclamou presidente do Brasil. Buscava assim ironizar Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional da Venezuela, que havia assumido como presidente interino daquele país após o ditador Nicolás Maduro ser considerado ilegítimo pela Assembleia. Passado um ano, José de Abreu anunciou que está de mudança. Foi satirizado por internautas porque não terá a Venezuela como destino. Irá para a Nova Zelândia, um paraíso liberal.

“A partir de hoje eu sou o autodeclarado presidente do Brasil. Igual fizeram na Venezuela”, anunciou José de Abreu em fevereiro passado. Na verdade, Guaidó é reconhecido presidente interino pelo Brasil, o Grupo de Lima, os Estados Unidos e a União Europeia – entre outros. Na última semana, Zé de Abreu corrigiu a imprensa que noticiara que ele está saindo do Brasil para ir à Nova Zelândia: não está saindo do Brasil, porque já mora em Paris há anos.

Como presidente, Zé de Abreu prometeu barrar a reforma da Previdência e revogar a reforma trabalhista. Já a Nova Zelândia é um exemplo de uma das ideias liberais mais ambiciosas de Paulo Guedes: a carteira de trabalho verde e amarela, um contrato de trabalho ultraflexível em que não se aplicaria a CLT atual, e em que os trabalhadores se sujeitariam a uma Previdência com capitalização. Não haveria contribuição ou encargo algum sobre a folha de pagamento, também para estimular o emprego formal.

A Nova Zelândia é um caso raro de país em que não existe contribuição alguma pela folha de salários. Sequer se pode falar em déficit da Previdência, porque não há contribuições, e toda a despesa é paga pelos tributos gerais. Os recursos são capitalizados, e um gigantesco fundo de pensão administra dezenas de bilhões de dólares no mercado financeiro. Desde a década passada, novos trabalhadores podem fazer aportes adicionais, se quiserem benefícios maiores. É o KiwiSaver, uma Previdência complementar de adesão automática, também de capitalização.

A legislação trabalhista é uma das mais flexíveis do mundo. No índice Lamrig, aparece como a 2ª mais flexível entre 144 países – à frente até dos EUA. O Brasil era um dos últimos, o 132º, no ranking anterior à reforma trabalhista que Zé queria desfazer. Já no ranking do Instituto Frasier, a Nova Zelândia aparece em 5º lugar, de 162 países – o Brasil pré-reforma era o 155º. O país é exemplo tão extremo de flexibilidade dos contratos de trabalho que quase não existem restrições legais a horas extras ou trabalho no fim de semana, e inexiste aviso prévio.

Nem sempre foi assim. A Nova Zelândia é um case de amplas reformas liberais, e um exemplo superior ao do Chile por não experimentar a mazela da desigualdade. Bem descritas por Marcos Mendes em Por Que É Difícil Fazer Reformas Econômicas no Brasil? (Elsevier, 2019), essas reformas foram empreendidas entre os anos 80 e 90 – aquela época em que José de Abreu ainda gravava os programas de TV do PSDB.

A Nova Zelândia já ostenta o mesmo PIB per capita da Itália: em 1990, o italiano era 30% maior. Na comparação com a Venezuela, a trajetória é marcadamente diferente. A Venezuela tinha 60% do PIB per capita neozelandês em 1990, proporção que caiu para 25% em 2018, à medida que o país de Guaidó faliu e o de Zé de Abreu prosperou.

A Nova Zelândia lidera o ranking Doing Business do Banco Mundial, de facilidade de fazer negócios (o Brasil é 124º). Adota há tempos modelos como o de vouchers, em que o governo paga creches particulares escolhidas pelos pais – proposta mal recebida no Brasil quando Paulo Guedes a propôs no último encontro de Davos.

E o que mais a Nova Zelândia pode ensinar? O país segue na vanguarda na formulação de políticas públicas. É um dos países que paga o benefício universal infantil a todas as famílias com crianças. O Senado brasileiro aprovou a criação desse benefício no âmbito da reforma da Previdência. Como apontara a OCDE, a reforma da Previdência não apenas era o mais urgente elemento do ajuste fiscal, como também uma oportunidade para tornar o crescimento mais inclusivo com mais gastos nas crianças (a parcela mais pobre da população). Na Nova Zelândia, a ênfase nesse público é tal que a primeira-ministra Jacinda Ardern criou um cargo adicional para si, de ministra para redução da pobreza infantil.

O país também acaba de criar o “orçamento de bem-estar”, focado no bem-estar intergeracional, diante do diagnóstico de que o orçamento tradicional tem prioridades “curtoprazistas”. No orçamento alternativo, destacam-se gastos em sustentabilidade ambiental, transição tecnológica e investimento na primeira infância. Por aqui, o que há de próximo é o projeto do deputado Luiz Lima, instituindo o orçamento da primeira infância. Quando faremos a viagem para a Nova Zelândia?”

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Como foi que eles conseguiram




“Como foi que eles conseguiram
     
Por Fernão Lara Mesquita

Todo mundo pergunta como foi que, partindo de uma situação em que “tudo estava dominado” pela corrupção, os americanos conseguiram virar o jogo.

O “Movimento Progressista” foi uma resposta aos problemas que se tornaram agudos depois da Guerra Civil (1861-1865), que em tudo fazem lembrar os do Brasil de hoje: urbanização desordenada com multiplicação de cortiços, favelas e violência urbana; exploração vil do trabalho; usurpação dos governos das cidades por máquinas políticas corruptas altamente profissionalizadas, financiadas por empresários de araque; corrida às fusões e consolidações de empresas de setores inteiros da economia, concentrando a riqueza e criando grupos gigantes com poder de corrupção ilimitado (os famigerados robber barons)...

Embora todos tivessem as mesmas queixas, até meados da década de 1890 dezenas de grupos reformistas ou de protesto separados por antagonismos em torno de minúcias programáticas e vaidades imensas batiam cabeças em cidades e Estados diferentes, sem força para mudar nada.

Quatro fatores, principalmente, concorreram para que somassem forças a partir da crise que levou ao pânico financeiro de 1893. A ação de todas as igrejas na crítica do estado de coisas e na pregação do social gospel, que associava a salvação individual também à “salvação social”, preparou o terreno. Mas foi a fundação da National Municipal League (NML), em 1894, amplamente financiada pelo empresariado que perdia com a corrupção, que profissionalizou a crítica do sistema e a busca de alternativas, pesquisando sistematicamente ao redor do mundo bons modelos de gestão das cidades, formando pessoal, prestando assessoria jurídica e legislativa e, principalmente, difundindo para o grande público as alternativas encontradas, municiando de argumentos e “estruturando em rede” os movimentos reformistas do país inteiro.

Também foi crucial o início de uma revolução no jornalismo americano, que evoluiu do sensacionalismo e do panfletarismo partidário para o jornalismo investigativo dos repórteres “revolvedores da sujeira” (muckrakers) da revista de Samuel McClure, que circulou entre 1893 e 1929 e expôs os intestinos da corrupção dos robber barons dos setores de petróleo, financeiro, do aço e outros, que constituíram monopólios maquiavélicos mancomunados com os donos das ferrovias e com políticos corruptos. Foram esses jornalistas, também, que pesquisaram e difundiram persistentemente nos EUA novos métodos de combate à corrupção, especialmente as ferramentas de democracia direta usadas na Suíça.

Os muckrakers e a NML deram a contribuição decisiva para a mobilização da opinião pública numa direção consistente apoiada numa espinha dorsal de sólido conhecimento.

O elemento sorte entrou, então, decisivamente em cena pela mão de Theodore Roosevelt. Vindo de fora dos currais tradicionais da política, ele foi o primeiro político do Ocidente a compreender a força do novo jornalismo nascente. Jogando “fechado” com os grandes repórteres daquela geração, começou como chefe de polícia de Nova York, foi eleito na sequência governador do Estado e logo se tornou herói nacional ao enfrentar a máfia que dominava a política local havia décadas e controlava nacionalmente o Partido Republicano. Traído, foi “esterilizado” numa candidatura à vice-presidência, num golpe dos velhos caciques corruptos dentro da convenção republicana. Mas com o assassinato do presidente McKinley antes da posse “TR”, aos 42 anos, carismático e orador brilhante, tornou-se, em 1901, o 26.º e o mais moço de todos os presidentes dos Estados Unidos, servindo até 1909.

Sua primeira providência foi reviver o Sherman Antitrust Act de 1890, engavetado pelos antecessores, regulamentar a operação das ferrovias e instituir a preservação de um grau mínimo de concorrência em cada setor em benefício do consumidor como limite legal da disputa por mercados. Ao mesmo tempo, atacou forte as bases do “caciquismo” que viciava a política, implantando eleições primárias diretas, eleição direta de senadores (antes indicados pelos Legislativos estaduais) e os direitos de recall, iniciativa e referendo popular dos atos dos Legislativos e Executivos estaduais e municipais.

Essas medidas vieram de encontro aos novos modelos de gestão das cidades a partir de eleições municipais despartidarizadas promovidos pela NML, o de City Council (um conselho eleito de cinco a sete membros executando todas as funções antes prerrogativas de prefeitos e vereadores) e o de City Manager (uma variação do mesmo sistema, mas ainda mais profissionalizado) e acabaram com o poder dos velhos caciques.

TR “picou” o poder econômico onde estava excessivamente concentrado e, na política, deu poder de polícia aos eleitores contra os representantes eleitos, o que matou o varejo da corrupção e garantiu a constante renovação de quadros. Desde então os EUA vivem em reforma permanente, mas com o povo, e não os políticos, dirigindo a pauta, o que explica toda a diferença de desenvolvimento, afluência e liberdade entre eles e o resto do mundo.”

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Populismo à direita




“Populismo à direita

Por Carlos Alberto Sardenberg

Populistas adoram oferecer gasolina barata. Populistas que controlam uma estatal de petróleo, mais ainda. Repararam nas palavras do presidente Bolsonaro? “Eu já cortei o preço três vezes, e o preço não cai na bomba”.

Ora, a Petrobras não tinha autonomia para administrar os preços de combustíveis? Bolsonaro já havia feito uma intervenção direta, quando a estatal elevara seus preços, mas a questão acabou sendo contornada, e — disseram — o presidente da República havia sido convencido de que era melhor deixar a coisa por conta da Petrobras.

Devem ter dito a ele que a então presidente Dilma quebrara a estatal ao obrigá-la a vender gasolina e diesel a preços mais baratos do que pagava na importação. Ele não era contra tudo do PT?

Então, ficou assim: o custo do combustível tem uma estrutura que envolve diversos fatores, inclusive externos, e a Petrobras administra isso.

Acontece que os fatores externos, desta vez, estão ajudando: os preços do petróleo estão em queda por causa da demanda menor causada pela crise do coronavírus. Há menos aviões, navios e caminhões circulando na China, que é uma das maiores consumidoras do combustível.

Pintou a chance para Bolsonaro. Na verdade, não foi ele que reduziu os preços três vezes e mais uma vez ontem. O preço caiu no mundo todo, e o presidente achou que poderia tirar uma boa lasquinha e oferecer ao consumidor uma gasolina mais barata — sem quebrar a Petrobras.

Para os governadores estaduais, porém, o preço mais barato do combustível é até uma oportunidade de arrecadar mais — oportunidade de ouro para administrações que estão em dificuldades financeiras.

Logo, na cabeça de Bolsonaro, a culpa é dos governadores e daí a aposta: “Eu zero o federal se eles zerarem o ICMS. Está feito o desafio aqui, agora”, disse o presidente numa daquelas conversas na saída do Palácio da Alvorada.

Claro que os jornalistas foram perguntar no posto Ipiranga. Paulo Guedes, claro, fugiu do assunto.

Se fosse dizer qualquer coisa sensata, só poderia ser algo assim: bobagem, impossível, falta de informação etc.

Os impostos federais (PIS/Cofins e Cide, que não são impostos, mas contribuições) somaram R$ 27,3 bilhões no ano passado. O déficit primário do governo central ficou em torno dos R$ 90 bilhões. Seria um terço maior sem as contribuições sobre os combustíveis.

Para os estados, o ICMS sobre os combustíveis representa de 20% a 30% do total da receita. Todos também apresentam déficit primário.

Ou seja, Bolsonaro partiu para o populismo e deu errado. Para os governadores ficou fácil responder: o senhor corta primeiro os impostos federais.

O que coloca Guedes numa saia justa. Se bobear, a culpa vai para ele.

Tirante a confusão, o episódio revela muita coisa, a começar pela incapacidade administrativa de Bolsonaro. O sistema tributário brasileiro, sem exagero, é o pior entre as nações relevantes. Não apenas as pessoas e empresas pagam impostos demais, como é difícil e caro, especialmente para pequenas e médias empresas, manter em dia suas obrigações fiscais.

Há propostas de reforma tributária tramitando no Congresso, complexas e boas, o governo federal ficou de enviar sua sugestão e, no meio disso, o presidente entra nesse populismo irresponsável. “Zero o imposto hoje”.

Nem zera, nem faz o que devia — coordenar a tramitação de uma completa reforma, que, registre-se, vai precisar do apoio e do empenho dos governadores.

Portanto, não se trata de apenas uma bobagem.

Trata-se de uma manifestação de insegurança jurídica e econômica. Empresas nacionais e sobretudo o capital internacional esperam a reforma tributária para organizar seus investimentos no Brasil. Precisam saber quanto e onde vão pagar os impostos.

A expectativa, digamos, otimista depende de dois personagens, Guedes e Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados. Guedes, contornando a coisa dentro do governo. E Maia, continuando a tocar a reforma como se nada tivesse acontecido.

De todo modo, fica claro mais uma vez o caráter autoritário do presidente Bolsonaro. Parece que ele não se conforma com o fato de que não pode mandar na Petrobras, ou no Banco Central ou na Polícia Federal.

Qualquer dia desses dá um rolo maior.”

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Ampliar ascensão social é menos difícil que desconcentrar renda




“Ampliar ascensão social é menos difícil que desconcentrar renda
     
Por Roberto Macedo

Continuo a pregar que a situação da economia é ainda pior que a percebida pelo governo, pelos meios de comunicação, pelo tal mercado e pela sociedade em geral. Meu último artigo neste espaço, em 16/1, foi PIB – 2010-2019, a pior de 12 décadas. O texto analisou dados desde 1901 e assim sintetizou a situação atual da economia: teve uma recessão que durou dois anos, embutida numa depressão que já tem cinco anos, e também passa por uma estagnação de quatro décadas.

Hoje relacionarei essa situação com outro enorme problema do País, a desigualdade de sua distribuição de renda, sabidamente enorme, e argumentarei que ampliar a ascensão social é menos difícil do que desconcentrar a renda. Não sou contra essa desconcentração, mas a desigualdade começou com a nossa colonização, com destaque para a escravidão, que vicejou por três séculos, e aliviá-la envolveria imensas dificuldades.

A título de exemplo, entre outras medidas, seria necessária uma profunda reestruturação da estrutura tributária, dando maior peso a impostos sobre a renda e sobre heranças, pois hoje predominam impostos indiretos, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), que onera relativamente mais os pobres, ao ter forte incidência sobre o consumo, que absorve maior parcela da renda desse grupo que da dos ricos.

Do lado dos gastos públicos, seria importante cortar privilégios das classes de maior renda, como o ensino gratuito nas universidades públicas. A gratuidade deveria ser apenas para os estudantes de famílias de menor poder aquisitivo. E, além disso, eles receberiam bolsas para matrículas em cursos com dedicação integral, como o de Medicina, pois hoje não têm condições de frequentá-los, dada a necessidade de trabalhar para sustento próprio e de suas famílias. Nas universidades públicas paulistas a distorção é mais grave, pois elas são sustentadas por parcela da arrecadação do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Assim, até mendigos, ao gastarem em bens de consumo as suas esmolas, estão subsidiando estudantes que poderiam pagar por sua educação.

Nossa classe política, contudo, não teve ainda a coragem de corrigir distorções como as apontadas, pois, salvo raras exceções, teme o ônus político dessa correção e danos a seus próprios interesses.

E a ascensão social, o que é e por que seria menos difícil de se concretizar? Ela vem quando surgem mais e melhores oportunidades de trabalho que também alcançam famílias de menor renda. Isso dependeria essencialmente de um crescimento do produto interno bruto (PIB) da ordem de 4% ou 5% ao ano, com abertura de muitas novas empresas, forte expansão das existentes e proliferação de novas frentes de negócios. Mas nas últimas quatro décadas, com o PIB crescendo à medíocre taxa média de 2,4% ao ano, essas condições estiveram ausentes, salvo em curtos “voos de galinha” do PIB. A maior parte das oportunidades de trabalho surgidas foram em ocupações de baixa qualificação, que não ajudam na ascensão social. E há que lembrar os elevados números do desemprego, da informalidade e do desalento na procura de trabalho, que seguem o mau estado da economia inicialmente descrito.

Um especialista em mobilidade social, o professor José Pastore, publicou dois livros sobre o assunto, o último com Nelson V. Silva, em 2000, intitulado Mobilidade Social no Brasil, no qual usam dados de 1996 e de décadas anteriores. Concluíram que a mobilidade social se acelerou nas décadas de 1960 e 1970, cujas taxas médias de crescimento do PIB foram as maiores das 12 décadas que analisei. Em média, 7,5% ao ano. Foi uma época em que muitas pessoas ascenderam na escala social, entre outros aspectos, por deixarem a precariedade do trabalho do campo e se mudarem para as cidades, onde as oportunidades de trabalho eram mais amplas e mais bem remuneradas. Isso lhes abriu novos horizontes, matriculando seus filhos na escola, comprando uma pequena propriedade, etc. Foi um tempo de “mercado comprador” de quem desejava trabalhar, ganhar mais e ascender socialmente.

Pondera José Pastore, em entrevista concedida a este jornal em 5 de janeiro: “Hoje tudo mudou. Para os mais jovens, está difícil chegar à posição que seus pais alcançaram (...). E não há perspectivas de subir a escala social no curto prazo, com raras exceções. Muitos ficam frustrados, desanimados, se sentem inferiores em relação aos pais. Essa percepção cria um ambiente negativo, e faz crescer (...) movimentos populistas que se aproveitam dessa camada social que perdeu a oportunidade de ascender”.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, com as reformas que vem propondo, está correto ao dar prioridade ao equilíbrio orçamentário do setor público. Mas as reformas tomam muito tempo, é preciso acelerá-las, e muito. E há muito mais por fazer. Cabe focar todo o esforço do governo e da sociedade na retomada de um crescimento econômico bem mais forte, para que a ascensão social ocorra com vigor e venha a confiança de que terá continuidade.”

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Zeitgeist com Twitter




“Zeitgeist com Twitter
      
Por William Waack

É evidente a consternação com que parte muito relevante da imprensa americana constata a sucessão de fatos que sugerem um grande impulso para a reeleição de Donald Trump em novembro. Livre do impeachment, comemorando o mais longo período recente de expansão da economia americana e até aqui sem adversários do Partido Democrata capazes de enfrentá-lo, “não tem mais coleira alguma que segure Trump”, resignou-se o The New York Times.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, em seu discurso. Atrás, o vice Mike Pence e a deputada democrata Nancy Pelosi  Foto: Jonathan Newton/Washington Post
De fato, as mudanças que Trump já provocou no sistema político americano e, mais ainda, na visão que os americanos têm de si mesmos e seu papel no mundo parecem irreversíveis – se são benéficas para o futuro do país e a ordem internacional é outra questão. Pois essas transformações têm causas muito mais amplas do que o comportamento que se possa considerar desprezível e ilegal de um indivíduo (Trump). Elas têm de ser vistas como parte de uma revolta mundial contra a democracia liberal. O nosso “Zeitgeist” (espírito de uma época) com Twitter.

Por ser Trump um anti-intelectual a ponto do analfabetismo cultural e errático em seus pronunciamentos, a mesma parte relevante da imprensa americana e internacional assume que ele não tem projeto coerente que precise de uma teoria para ser explicado. Mas é óbvio que visões de mundo podem ser “intuitivas” em vez de “ideológicas” ou “filosóficas”, e que estratégias podem ser instintivas em vez de claramente delineadas e sistematizadas (Bolsonaro entraria nessa última categoria).

É provável que Trump nem entenda direito o tipo de forças que representa. Pois não são apenas radicais as mudanças que ele já provocou – como o fim da percepção do papel “excepcional” de seu país no mundo. Elas refletem um padrão que se constata no sucesso em outras regiões do mundo de regimes autoritários pós-Guerra Fria, o de um profundo ressentimento “provinciano” por parte de camadas significativas de eleitores diante do “mundo cosmopolita” (os tais “globalistas”) defendido por elites econômicas, intelectuais e políticas que perderam a conexão com essas forças subterrâneas, mas decisivas.

Um dos “feitos” de Trump, de forte apelo psicológico, é ter convencido nacionalistas americanos (sempre abraçados na “star and stripes”) a abandonar a ideia de que os EUA sejam moralmente superiores. E que seu país possa ser “great again” sem precisar ser um líder mundial, sem ter o que ensinar a outras nações. É uma mudança monumental em relação ao que foi até aqui o papel representado pelos EUA na ordem mundial que instituiu e liderou após a Segunda Guerra.

Para esse interessante paradoxo que Trump transformou em sucesso eleitoral – a visão de que os EUA são “vítimas” da americanização do mundo – a resposta dos democratas é um presente para a campanha do atual presidente. Um autodenominado “socialista” é até aqui um de seus principais candidatos. O chamado “centro” ideológico do Partido Democrata não foi capaz de escalar até agora alguém de forte apelo eleitoral para reconquistar parcelas que, em 2016, abandonaram o partido em pequenos Estados decisivos para a composição do colégio eleitoral (não custa repetir que é indireta a eleição do presidente americano).

Os democratas demonstraram em Iowa, de forte valor simbólico no começo oficial da campanha, assustadora incompetência no uso de tecnologias digitais. Utilizadas com grande eficácia por republicanos, que há mais de década encontraram nas redes sociais uma alternativa ao que identificavam como “bias liberal” da imprensa tradicional. Já usam “geofencing” para abordar grupos específicos de eleitores (católicos, por exemplo) enquanto democratas não conseguem tabular resultados de primárias.

A reeleição de Trump não é inevitável. Isso não existe em política e história. Mas se tornou mais provável.”

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

O Supremo reduzido a moeda de troca da briga eleitoral




“O Supremo reduzido a moeda de troca da briga eleitoral
     
Por José Nêumanne

A dois anos e meio da campanha eleitoral em que o sucessor de Jair Messias Bolsonaro será eleito pela maioria dos cidadãos aptos a votar e a três do começo do futuro governo, a sucessão em questão está introduzindo no debate uma novidade insólita e maligna. Pela primeira vez na História cada vez mais insana desta República, uma vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) poderá ser preenchida por interesses eleiçoeiros. O ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, entra no páreo não mais para preencher a condição de jurista de notório saber e reputação ilibada, como exige a ordem constitucional vigente. Mas por poder representar eventual empecilho a seu chefe e ser, com certeza, disparado favorito na disputa contra qualquer adversário.]

Durante o ano inteiro de 2019, primeiro da nova legislatura e também do mandato presidencial, os condenados, acusados, denunciados e suspeitos de corrupção na cúpula dos três Poderes da República fizeram das tripas coração para reduzir seu poder. E, se possível, desalojar do cargo de primeiro escalão o ex-juiz federal que comandou a mais bem-sucedida e popular operação de combate à corrupção no País. Congressistas sabotaram, primeiro, suas dez medidas contra o furto levadas ao Legislativo por procuradores. Em seguida, fizeram o diabo para desidratar as sugestões que o agora chefe da pasta lhes encaminhou oficialmente sob o nome genérico de fantasia “pacote anticrime”. Nesse afã, introduziram no texto projeto soprado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes e adotado por Margarete Coelho (do PP de Paulo Maluf no Piauí governado por Wellington Dias, do PT), presidente da comissão instalada pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia. Nada disso, contudo, reduziu em um mísero ponto porcentual a popularidade de quem pretendiam atingir.

A esquerda, que atribui a Moro a liderança da conspiração para excluir da disputa eleitoral seu ídolo Lula, recorreu para tanto a um expediente em que misturou delito com cavilação. Um grupo de estelionatários habituados a crimes virtuais, hackers de Araraquara (daí o neologismo genial da colega Cora Rónai, “arararraquers”) invadiu os diálogos de cerca de mil autoridades, entre as quais o inimigo comum, no aplicativo russo Telegram. E neles encontrou – em alguns casos, inseriu – diálogos com os quais tentaram insinuar que o magistrado que condenou seu líder na primeira instância comandou as ações do Ministério Público em relação ao réu. O resultado, divulgado pelo site The Interecept Brasil, passou a ser a bola sete para desmoralizar a Lava Jato.

A conspiração, comandada pelo próprio Lula na chamada sala “de estado-maior” da Superintendência da Polícia Federal (PF) em Curitiba, contou com a ajuda da candidata a vice na chapa do poste 2 do ex-metalúrgico, Manuela d’Ávila, e os serviços do americano Glenn Greenwald. Este deixou no condado de Nova York, onde vivia, um rastro de participação em pornografia numa empresa em que era associado de seu então companheiro e uma prática pouco recomendável de sonegação de impostos.

O conta-gotas de ácido venenoso usado no estratagema, efetuado em parceria com a Folha de S.Paulo, a Band News e a revista Veja, também em nada atingiu o objetivo do truque empregado. Recentes pesquisas de opinião, inclusive da Datafolha, de uma das empresas parceiras, revelam, ao contrário, a alta dos índices de popularidade do ministro da Justiça, superando os do chefe e dos empenhados em derrubá-lo.

O fiasco da invasão criminosa das mensagens telefônicas – nunca submetidas a perícia – e a constatação de que o inimigo continua fora do alcance de suas punhaladas parecem ter levado os desafetos políticos do juiz paranaense a alterar a tática. Isso inclui a mudança de planos do próprio presidente da República para a indicação do sucessor do decano do STF, Celso de Mello, em dez meses. É público e notório que ele há muito havia desistido de indicar Moro para a vaga, sob a falsa alegação de que o Senado não aprovaria. E já anunciou nomes para essa cadeira e para a que será desocupada no ano que vem por Marco Aurélio Mello.

Para a primeira Bolsonaro sacou do colete o advogado-geral da União, André Mendonça, bajulador de Lula e de Dias Toffoli. Para a outra já foi anunciado o ex-major da PM Jorge Oliveira, “Jorginho” para o clã presidencial, secretário-geral da Presidência e bacharel em Direito há 13 anos. A razão para a nomeação foi dada sem subterfúgios pelo deputado Eduardo Bolsonaro: ele é de todos os pretendentes o mais leal a Jair Messias Bolsonaro.

As duas eventuais indicações seriam o apanágio da decadência do STF. Mas o próprio chefe do governo já parece ter entendido o recado dos presidentes do Senado, Davi Alcolumbre, e da Câmara, Rodrigo Maia, de que o herói do populacho em justiça seria aprovado na sabatina pelos senadores.

Conselhos de interlocutores palacianos parecem ter convencido o capitão a se livrar e deixar os chefões partidários liberados da disputa talvez inglória com a eventual presença do nome de Moro na urna eletrônica em 2022. O custo dessa operação “salve-se quem puder” poderá ser uma quarentena de seis anos sem disputa nas urnas para o ministro. Será a confirmação de que Deus escreve certo em linhas tortas?”