Por Leandro Karnal
Em fevereiro de 1920, há exatos
cem anos, o Partido dos Trabalhadores Alemães (Deutsche Arbeiterpartei, DAP)
virava o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães
(Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, NSDAP). Crescia a liderança de
Adolf Hitler no grupelho. O bizarro núcleo de associados olhava com medo e
desconfiança o aumento da crise alemã desde a derrota na Grande Guerra. O risco
de um golpe de esquerda, o desemprego, a humilhação nacional no conflito de
1914-1918 e os sonhos messiânicos de uma Alemanha forte outra vez animavam
aqueles seres que se reuniam em cervejarias.
As ideias eram variadas e os
membros tinham um espectro amplo. Porém, o que unia todos era o nacionalismo, o
discurso antidemocrático e antiliberal, o caráter anticomunista e, acima de
tudo, um entranhado e sólido antissemitismo.
O antissemitismo germânico,
infelizmente, não existia de forma isolada. Havia teóricos mais organizados na
França republicana ou na Rússia. Massacres de judeus eram rotineiros nos
territórios vizinhos do czar em pleno início do século 20.
Nos Estados Unidos, da mesma
forma, vicejava uma vasta onda de ataque. Também lembramos, em 2020, o centenário
da infame obra de Henry Ford, o magnata dos automóveis: O Judeu Internacional.
O pensamento do empresário seria bem recebido do outro lado do Atlântico: Ford
foi condecorado pelos nazistas com a mais destacada honra para um estrangeiro:
a Grande Cruz da Águia Alemã. Nos EUA e no resto do mundo, havia apoio a
“melhorias raciais”. O discurso contra os judeus apresenta raízes históricas
muito antigas, porém foram os doentes mentais as vítimas de práticas agressivas
nas democracias e na Alemanha nazista. O antissemitismo e a eugenia contra
“fracos” unificavam o ódio nas ditaduras e nas democracias.
O nazismo é um traço terrível da
história mundial. Da mesma forma, outros estados totalitários, como o
stalinista, mostram que a opressão absoluta e criminosa não é um acidente. O
que mais incomoda em todo caso é a permanência de adoradores da barbárie.
O caso recente com o
ex-secretário Roberto Alvim é emblemático. A demência é uma hipótese
confortadora, porque implica inserir o nazismo no quadro das perturbações
cerebrais. Seria bom se todo nazista do passado ou todo simpatizante do presente
fosse um caso de disfunção. Infelizmente, a realidade é outra. O “mal banal” de
Hannah Arendt, a “psicologia de massas” de Reich, a amnésia seletiva de Cidade
Sem Passado (Das schreckliche Mädchen, 1990, Michael Verhoeven), o pungente
texto de Primo Levi (É Isto um Homem) são alguns elos para entender o fenômeno
mais além do delírio. O nazismo contém uma vontade de controle, um sentido de
missão, uma violência unificadora de grupos e uma catarse social muito além da
simples idiotice individual.
Nós, humanos, carregamos dores
imensas, ressentimentos, preconceitos, análises rasas em muitos campos,
cegueiras, memórias deformadas sobre nós e nosso papel no mundo, questões
sexuais problemáticas, ódios familiares mal disfarçados, confusões internas,
angústias e todos os males que a caixa de Pandora ainda puder conter. Faz parte
da nossa constituição psíquica um fluxo expressivo de pulsão de morte, no
sentido técnico da expressão freudiana e no mais amplo e metafórico alcance do
termo. O nazismo consegue pegar toda essa dor e dirigi-la a um foco. Cria um eu
ideal, inexistente na prática, o ariano puro (pode ser o militante, o cidadão
de bem) e um inimigo perfeito, o judeu (ou a feminista, ou o conservador,
etc.). Todo o bem flui de um e todo o mal de outro. Você é fraco intelectualmente?
Basta repetir slogans e, pela insistência e pela câmara de eco do comício (ou
do grupo de WhatsApp), você passa a pensar que aquela ideia tênue e rasa é
compartilhada por outros e, de repente, uma coisa sem nexo ou base vira um clichê
coletivo.
A sedução do nazismo (ou do
stalinismo, ou da ortodoxia religiosa fundamentalista ou de qualquer pensamento
que elimina a crítica ou o contraditório) é sempre a mesma: alça a cargos e ao
microfone gente ruim, medíocre, fraca e que ganha o poder por força da
circunstância. Essa gente encarna a morte que não queremos ver em nós, mas
desejamos atribuir a outros. Exorciza insignificância por mostrar outro ser
comum (como o Führer) repetindo o que eu sempre desconfiava na minha escuridão
interna.
O nazismo é a morte permanente
porque continua seduzindo pessoas, provocando estéticas, estimulando vídeos que
ainda fazem referências ao caráter assassino, violento e autoritário do
processo. O nazismo já seria execrável para sempre pelos seis milhões de judeus
mortos e por outras vítimas como os dissidentes, comunistas, gays, Testemunhas
de Jeová, comunidades Roma e Sinti e tantos outros. Só existia uma opção, ser
ou parecer aderir ao modelo que o famigerado Goebbels defendia: integrar-se à
cultura única ou desaparecer.
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