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sexta-feira, 28 de junho de 2019

Robin Hood revisitado





“Robin Hood revisitado
      
POR FERNÃO LARA MESQUITA

Robin Hood jamais roubou dos ricos para dar aos pobres. Essa é uma releitura “marxistizada” do herói arquetípico inglês. Robin Hood roubava do Estado para devolver aos pobres o que o Estado lhes tinha roubado. João Sem Terra, o usurpador do trono, e seu odioso coletor de impostos, o xerife de Nottingham, é que eram os seus alvos recorrentes.

Não é um pormenor sem importância. É precisamente aí que os caminhos da humanidade se dividem para nunca mais se reencontrar.

Não é só por questão de gosto que na Inglaterra os castelos (e as igrejas) são de pedra e madeira e os franceses, russos, espanhóis ou portugueses (assim como suas igrejas) são de ouro. Desde a Carta Magna de 1215, o rei inglês vem sendo mantido sempre e cada vez mais “pobre” e mais dependente do Parlamento para manter seus luxos e sustentar suas guerras. Cada novo pedido de recursos foi negociado em troca de uma garantia a mais de proteção da propriedade de quem só tinha de seu a força de trabalho contra o poder do rei de tomar para si o produto dele até que, a partir de 1680, o Parlamento já tivesse alcançado a supremacia que tem hoje.

Ao contrário das culturas latinas que da submissão à Igreja saltaram diretamente para a submissão ao absolutismo monárquico onde a propriedade é a peça-chave de um sistema totalitário de opressão, na cultura saxônica o direito de propriedade decorre da luta quase milenar entre os representantes dos despossuídos e um déspota e transforma-se na principal ferramenta de libertação do indivíduo pelo trabalho. Vem com ela a responsabilidade individual, pois, onde a propriedade não é um privilégio dos protegidos do rei, quem a detém é compelido pelo mercado a voltá-la para a melhor satisfação do consumidor, sob pena de perdê-la se for lento ou inepto no processo.

Foi por nunca ter tido vitórias contra o poder estabelecido “por deus” ou pelo sangue que ele tivesse “tornado azul” que a desesperança acabou empurrando a latinidade para o pensamento mágico, moeda da qual são as duas faces o conformismo que se abriga na religião ou as revoluções para “criar uma nova humanidade” depois de afogar a velha em sangue, único meio de atingir “o impossível” com o concurso de um “herói” que leve o povo a superar sua impotência. Inversamente, foi por tê-las obtido sempre, passo a passo e usando instrumentos prosaicos de tão objetivos, que o pensamento saxônico entronizou o “senso comum” como baliza suficiente para referir tudo na vida.

A sorte também é um fator decisivo. A história da Inglaterra teria sido outra, não fossem a libido exacerbada de Henrique VIII e a inflexibilidade da Igreja com o pouco-caso dele para com “o sacramento” do casamento. Ao proibir a religião católica e liberar todas as outras, Henrique VIII atraiu todos os perseguidos da Europa (sempre a gente mais interessante) e, desavisadamente, proporcionou pela primeira vez na História a uma sociedade humana a experiência de conviver pacificamente com a diferença, o que, a par de abrir caminho para a ciência moderna tirando o dogma da frente da experimentação, levou os pensadores ingleses a elevar a tolerância a fundamento básico e inegociável das relações humanas, do que acabou por resultar, quando encontraram um território virgem de privilégios multicentenários para resistir-lhe, mais uma caminhada da democracia sobre a Terra.

O “povo sem rei” da América do Norte pós 1776 veio juntar-se, como únicos exemplos dessa característica desde sempre, aos suíços, que, graças à geografia, nunca tiveram um. Vivendo nas temíveis montanhas entre dois pedaços da Europa cujas passagens só eles conheciam, que aos reis de ambos os lados interessava atravessar a toda hora, foram deixados em paz e passaram ao largo do absolutismo. Inventaram seu sistema federalista a partir de 1291 e, como toda comunidade de iguais, desaguaram naturalmente na democracia para resolver – no voto – os problemas cotidianos da comunidade. Vieram bem até as invasões napoleônicas, quando ficaram sob o jugo da França. Foram, então, beber no modelo americano para restabelecer sua democracia. Desde aí estes dois povos – o suíço e o norte-americano – vêm “trocando figurinhas” para aperfeiçoar suas democracias nos momentos de crise. É na Suíça que, graças à ação concertada de patriotas e jornalistas (que foram em caravana à Europa para entender o sistema de democracia direta praticado por eles e vendê-lo em seu país), os Estados Unidos vão buscar a chave que os levaria a transformarem-se na maior potência do planeta. Já na virada do século 19 para o 20, tão corrompida e desmoralizada junto à opinião pública quanto está a brasileira hoje, a “velha política” americana sofreu um golpe fatal quando um atentado matou o presidente eleito William McKinley nos primeiros dias de seu mandato, tirando Theodore Roosevelt do “exílio” da vice-presidência em que o tinha metido um golpe articulado pelas velhas raposas do Partido Republicano. Foi com ele que as ferramentas de democracia direta puderam ser apresentadas ao país de cima de sua tribuna mais alta e ganhar o impulso que as fez avançar por todo o século 20 e até hoje.

Dividido desde sempre entre sua “americanidade”, vivida ao longo dos quatro séculos em que não fomos mais que vilas isoladas cujas câmaras municipais eleitas tinham de prover todas as necessidades da comunidade, de que são filhas a Conjuração Mineira, as rebeliões federalistas pernambucanas, a República sonhada do “Manifesto” de Itu e o curto interregno de Prudente de Morais e Rui Barbosa, em que foi plantado o precário arcabouço jurídico em que se agarra até hoje a livre iniciativa no Brasil, e a corrupção sistêmica dos últimos estertores do absolutismo decadente que invadiu o Rio de Janeiro em 1808 de que são filhos a República Real, golpeada ao nascer pelos positivistas, o getulismo que o entronizou no poder, o lulismo e a terra arrasada que aí está.

Distante quanto possa parecer hoje, o DNA brasileiro é democrático. Tem-nos faltado a ajuda decisiva da sorte.”

quinta-feira, 27 de junho de 2019

O capitão bate na mesa





“O capitão bate na mesa
      
Por Eliane Cantanhêde

Enquanto novas pesquisas de popularidade não vêm, o presidente Jair Bolsonaro bateu na mesa, mostrou aos generais quem manda, manteve seus filhos nomeando pessoas-chave e, engrenando uma segunda, na contramão do que dissera na campanha, deixou claro que vai disputar a reeleição.

Os ambientes e a oportunidade do lançamento à reeleição foram escolhidos a dedo: na cidade onde cresceu, a pequena Eldorado (SP), e na Marcha para Jesus, na capital paulista. Dos 57 milhões de votos que Bolsonaro teve, em torno de 22 milhões são atribuídos aos evangélicos. As imagens só poderiam ser o que foram: festa, aplausos, apoio emocionado.

Quanto à oportunidade: quando o governador João Doria começa a botar as manguinhas de fora, o ministro Sérgio Moro está na palma da mão do presidente e o vice Hamilton Mourão anda quieto como nunca. Detalhe: Bolsonaro falou em reeleição dele, não da chapa dele. Assim, demarcou território, botou os potenciais adversários nos devidos lugares e jogou a isca para seus eleitores e seu rebanho.

Demite um general daqui, outro dali, o capitão presidente está preocupado mesmo é com sua base eleitoral, incluídas as tropas, não os chefes militares. Quando o general Santos Cruz (defenestrado da Secretaria de Governo) acusou o governo de ser “um show de besteiras”, muitos concordaram plenamente, mas Bolsonaro deu de ombros.

Personagem central já na campanha, o também general Augusto Heleno tinha a missão de dar conselhos, segurar os excessos e corrigir erros do presidente como a tal base militar dos EUA. Era assim. Agora, Bolsonaro manda, Heleno escuta. Para completar, Bolsonaro empurrou o general Floriano Peixoto para os Correios e pôs no seu lugar na Secretaria-Geral da Presidência o major PM Jorge Oliveira, amigão da família e ex-assessor do gabinete do “03”, deputado Eduardo Bolsonaro. Trocar um general do Exército por um major da PM na mesma função é esquisito, mas o presidente deu o seu recado: o governo é dele, ele faz o quer.

Outra mudança curiosa foi na articulação política: sai o deputado e chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, entra o general de quatro estrelas da ativa Luiz Eduardo Ramos, outro amigão do presidente. Ninguém aposta um tostão furado na permanência de Onyx por muito tempo no Planalto.

O ministro, porém, não tem do que reclamar. Diferentemente do general Juarez Cunha e do economista Joaquim Levy, ele não foi demitido pela imprensa. E, diferentemente dos generais Santos Cruz e Franklimberg de Freitas, ex-Funai, nem mesmo foi demitido. Vai ficando, comemorando a troca da articulação política pelo PPI, o programa de parceria de investimentos, bem estruturado, com cronograma definido e bilhões de reais à mão. A troca foi boa? Há controvérsias.

De toda forma, Onyx se livrou de um abacaxi, porque, seja um deputado, seja um general da reserva, seja um da ativa, não adianta. O problema da articulação política não é do titular, mas no presidente, que passou 28 anos na Câmara, mas se recusa a fazer política, a boa política.

No Congresso, a pergunta que não quer calar é: por que o presidente descarta o “banco de talentos” indicado por parlamentares, mas um só deputado, o “03”, já nomeou o chanceler, o primeiro e o segundo ministro da Educação, o presidente do BNDES e, agora, o secretário-geral da Presidência?

Câmara e Senado trabalham a pleno vapor, como, justiça seja feita, algumas áreas técnicas do governo. Enquanto isso, o presidente está no palanque, com criancinhas no colo, fazendo flexões, envolto por multidões e metido em camisas do Flamengo. Se a economia se recuperar, pode até dar certo. Se não, parece pouco para garantir a reeleição.”

quarta-feira, 26 de junho de 2019

Estrada acidentada





"Estrada acidentada

Por Elena Landau

O Supremo Tribunal Federal ratificou o procedimento de privatização que é utilizado desde 1990, com a base na lei que criou o Programa Nacional de Desestatização (PND). Ao suspender as liminares dos ministros Lewandowski e Fachin, que paralisaram a venda de estatais e subsidiárias, a maioria dos ministros reafirmou que a participação do Estado na atividade econômica é exceção, e não regra, como determina o art.173 da Constituição. Sua presença só se justificaria em casos de interesse público, definidos em lei, e quando imperativo à segurança nacional.

O STF não inovou em nada. A regra sempre foi clara. A Lei do PND funciona como uma autorização genérica dada pelo Legislativo ao Executivo, que por decreto define quais empresas estatais serão incluídas no processo, seja para vender seu controle seja para encerrar suas atividades. Para Petrobrás, Eletrobrás, Caixa e Banco do Brasil há necessidade de autorização específica porque há leis que vedam sua privatização. Já é hora de rever esses impedimentos, pois o País mudou e as justificativas para mantê-las sob controle estatal não existem mais.

Derrubada a liminar de Lewandowski, não há mais desculpa para não avançar com as privatizações. Agora só precisa de vontade política. Mas nesta mesma semana, o governo, que já havia desistido de vender a EBC e Ceitec, anunciou que vai manter mais 12 estatais ligadas à área militar. E para as grandes empresas, o foco continua sendo apenas a venda de subsidiárias.

Guedes prometeu arrecadar R$1 trilhão em leilões de desestatização. Mais importante que a delirante projeção era a determinação em privatizar tudo. Esqueceu de combinar com os russos; o presidente sempre mostrou restrições à venda de empresas consideradas por ele estratégicas. A expressão “estratégica”, que não é jurídica, é utilizada de forma corriqueira pelos governantes para defender seus interesses políticos e reforçar o imaginário popular contra a venda de patrimônio público.

Há muito tempo que defendo a ideia de utilizar o procedimento do PND, de que basta uma lei geral, para colocar todas as estatais no programa por decreto, com exceção das que tiverem impedimento legal. O sinal estaria dado para um novo Estado começar a ser redefinido após anos de estatismo e intervencionismo.

O Estado está falido, em todos os níveis de governo, sem condição de fazer os investimentos necessários para uma retomada sustentada do crescimento. Com as sucessivas revisões para o PIB, que hoje estão em torno de apenas 1%, atrair o investimento privado, em especial para infraestrutura, é ainda mais imperativo. Mas o capital privado é avesso ao risco jurídico e regulatório que domina o setor de concessões e privatizações. A liminar do ministro Fachin mostrou que nem mesmo as longas tratativas com TCU, estabelecendo uma modalidade de leilão em etapas para a venda da TAG, foram suficientes para dar segurança ao negócio.

A insegurança não vem de hoje. A venda de participação acionária da Cemig nos anos 90 sofreu dois reveses importantes: os direitos de voto assegurados em edital ao bloco minoritário, assim como a prerrogativa de prorrogação de suas concessões, foram revogados sem que fossem previstas compensações aos investidores.

Em Goiás, o governador eleito este ano quis impor novas obrigações aos compradores da CelgD, revendo as condições do leilão e do contrato. Os exemplos são muitos e existem em todas as áreas: aeroportos, rodovias ou ferrovias. A hipertrofia dos órgãos de controle, substituindo as funções das agências reguladoras, deslegitimadas pela captura política, tem mais atrapalhado que ajudado.

Para o sucesso na venda de empresas é importante uma governança bem desenhada, como se vê na infraestrutura. O ministro Tarcísio vem conduzindo com competência a área de concessões, obtendo sucesso nas licitações deste início de governo exatamente por redesenhar as regras de leilão com objetivo de mitigar o risco.

O programa de privatizações está sem comando, sem foco e sem cronograma. Cada ministério faz seu lobby e as estatais vão sobrevivendo. O Tesouro Nacional, representando a União, deveria definir os ativos a serem vendidos e a Secretaria de Desestatização conduzir o processo. No entanto, são os últimos a opinarem. O BNDES perdeu a embocadura durante os anos de governo PT. A nova direção talvez consiga recuperar o papel predominante que o banco já teve nesta área. As instituições privadas poderiam auxiliar no processo de venda de ativos, como vêm fazendo nas operações de desinvestimentos. É preciso ser mais ágil mantendo a transparência.

A estrada para novos investimentos não precisa ser tão acidentada."

terça-feira, 25 de junho de 2019

Não está no mundo





“Não está no mundo

POR MERVAL PEREIRA

O argumento para o adiamento do julgamento na Segunda Turma do STF do habeas corpus a favor do ex-presidente Lula, baseado na suspeição do então juiz Sérgio Moro, não parece plausível. A alegação de que não haveria tempo para o julgamento, pois o processo de Lula estava em último numa fila de mais 10 processos, não corresponde ao cotidiano das Turmas do Supremo, que analisam às vezes até 30 processos num dia.

O fato é que ministros estão incomodados com a ilegalidade das novas provas, diálogos publicados pelo site Intercept Brasil entre Moro e o chefe dos procuradores de Curitiba Deltan Dallagnol. A questão é tão difícil que nem mesmo a defesa de Lula apensou os diálogos ao pedido anterior, havendo uma interpretação de que provas ilegais podem ser usadas para beneficiar o réu.

 É possível que, quando retomarem o julgamento, no segundo semestre, algum ministro proponha à Segunda Turma levar o caso para o plenário do STF. O ministro Facchin, como relator, pode decidir monocraticamente, mesmo já tendo votado.

Várias vezes o STF, e também o Superior Tribunal de Justiça (STJ), negaram pedido semelhante, embora por motivos diferentes. Desta vez, a alegação da defesa de Lula é que, ao aceitar ser ministro de Bolsonaro, Moro havia demonstrado sua parcialidade. Os diálogos não estão nos autos. E o que não está nos autos, não está no mundo, como diz um  provérbio jurídico com origem no Direito romano.

Antes das revelações do Intercept  Brasil, o ministro Edson Fachin considerou que a defesa deveria ter apresentado o pedido ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), ressaltando que o Supremo já havia negado o habeas corpus em outras ocasiões. 

A ministra Cármen Lúcia, que hoje preside a Segunda Turma, afirmou que o fato de Moro ter aceitado o convite para o novo governo não pode ser considerado, por si só, prova suficiente de sua parcialidade.

O julgamento está cercado de fatores políticos, à revelia dos ministros do STF, que o tornam mais delicado do que normalmente já é, por tratar-se de um ex-presidente da República.

Embora o ministro Sérgio Moro tenha sido atingido pelas suspeitas lançadas pelos supostos diálogos, mesmo que não tenham comprovação de veracidade, a Operação Lava-Jato não perdeu o apoio popular, e Moro é o ministro mais popular do governo.

O presidente Bolsonaro desde o início bancou o apoio a seu ministro, visto como um Super-Homem pelas ruas. Esse é um trunfo político que Moro tem, no momento em que a definição do caso parece ser mais política do que jurídica.

Bolsonaro, por sua vez, só tem a ganhar com o apoio à Lava-Jato. Montou-se novamente na sociedade o clima de combate à corrupção contra o petismo. Nesse contexto, a libertação do ex-presidente pode ser interpretada pela maioria da população como leniência com a corrupção.

 O general Villas Bôas, ex-comandante do Exército, que indicou dois generais para assessorar o presidente do STF, Dias Toffoli, voltou ao Twitter fazer defesa enfática de Sergio Moro assim que os primeiros diálogos foram publicados. Como tinha feito anteriormente, antes do julgamento pelo pleno do STF de um habeas corpus para Lula.

“Momento preocupante o que estamos vivendo, porque dá margem a que a insensatez e o oportunismo tentem esvaziar a Operação Lava Jato, que é a esperança para que a dinâmica das relações institucionais em nosso país venha a transcorrer no ambiente marcado pela ética e pelo respeito ao interesse público. Expresso o respeito e a confiança no Ministro Sergio Moro.”

Dias depois, o general Augusto Heleno, Chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) deu uma declaração pública contra Lula em um café da manhã que Bolsonaro oferece a jornalistas no Palácio do Planalto. Com direito a soco na mesa e à afirmação de que Lula merecia pegar prisão perpétua, pena que não existe no Brasil.

Toffoli nomeou seu assessor o general Fernando Azevedo e Silva, que depois foi chamado por Bolsonaro para ser ministro da Defesa. Na posse, agradeceu ao presidente do Supremo e à Procuradora-Geral da República Raquel Dodge “a disposição de atuar como catalisadores da estabilidade institucional de que o país tanto precisa".

O substituto no STF é o general Ajax Porto Pinheiro, um dos ex-comandantes das tropas da missão de paz da Organização das Nações Unidas no Haiti, como tantos outros militares que atuam no governo Bolsonaro.

É essa “estabilidade institucional” que está em jogo no julgamento do Supremo.”

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Uma decisão histórica





“Uma decisão histórica

POR MERVAL PEREIRA

A decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) de bloquear R$ 1,1 bilhão das contas pessoais dos controladores da Odebrecht Emilio e Marcelo Odebrecht abre um novo capítulo na relação institucional entre a Justiça brasileira e empresas envolvidas em corrupção contra o Estado.

O ministro Bruno Dantas, autor do voto divergente que acabou majoritário no TCU, colocou em seu Twitter a seguinte mensagem, logo após a decisão: “Desde o início da Lava-Jato vozes respeitáveis da imprensa e do mercado defendem que é preciso preservar a atividade empresarial e os empregos e punir os "donos". Decisão histórica do @TCUoficial.”.

André Luiz de Carvalho (ministro substituto) era o relator, mas ficou vencido na decisão de mandar liberar os bens da Odebrecht bloqueados. O ministro Bruno Dantas abriu a divergência, mandando respeitar a recuperação judicial, mas desconsiderar a personalidade jurídica, atingindo os bens dos acionistas controladores, começando por Emílio e Marcelo.

Foi, de fato, uma decisão histórica, que pode dar novos rumos  aos acordos de leniência de empresas, e não apenas daquelas envolvidas na Operação Lava-Jato. Os advogados da empreiteira recorrerão, alegando que o TCU não tem competência para bloquear bens pessoais. O Tribunal considera que sim, no caso de empresas que causaram danos à União.  

A preservação das empresas sempre foi um tema sensível ao longo dos anos da Lava-Jato, responsável pela acusação de que o combate à corrupção foi o causador de grande parte dos milhões de desempregados no país, ao destruir setores inteiros da economia, como as empreiteiras.

Na quarta-feira mesmo, no depoimento do ministro Sérgio Moro no Senado, essa acusação foi feita por parlamentares da oposição. Ao lado disso, houve também teorias da conspiração escalafobéticas, como a de que as condenações das empreiteiras tinham por objetivo desmontar um setor que competia em excelência com as empresas internacionais, que agora tomariam o mercado brasileiro.

Sabe-se, depois de cinco anos de investigações da Lava-Jato, que grande parte do sucesso da Odebrecht no exterior deveu-se, além da sua inegável capacidade técnica, ao conluio da empreiteira com o governo Lula, que espalhou pelos países da América Latina governados pela esquerda o mesmo esquema de corrupção que sustentou o PT por anos a fio.

A recuperação judicial da Odebrecht foi outra razão para a decisão do TCU. O ministro Bruno Dantas ressaltou que “essa situação coloca em risco a efetividade dos acordos de cooperação que as empresas do mencionado grupo econômico celebraram com o Poder Público”.

A atuação dos Estados Unidos na crise de 2008, na transição do governo Bush filho para Obama, é exemplar de como um país capitalista age nessas ocasiões.

O Federal Reserve (FED), o Banco Central americano, aportou capital nos bancos e ganhou depois na venda destas ações quando se recuperaram. Os controladores e administradores é que perderam.

Não só nos bancos. Obama ganhou muito dinheiro para o Tesouro americano ao revender as ações da GM, que esteve à beira da bancarrota. O mesmo com a AIG, a maior seguradora do mundo, que se quebrasse levaria junto todo o setor.

Nossa legislação também se mostrou inadequada para enfrentar essa avalanche de acordos de leniência que se agravou com o esquema de corrupção descoberto a partir de 2013.

O caso da Odebrecht repete o de várias empreiteiras, que tiveram que fazer acordos separados com diversos órgãos de controle estatal: a empreiteira fez acordos de leniência com o Ministério Público Federal (MPF), com a Advocacia-Geral da União (AGU); com a Controladoria-Geral da União (CGU) e com o Conselho de Defesa Econômica (CADE).

E, mesmo assim, a retomada de atividades, com a participação em licitações em estatais, quando houve, demorou muito tempo, pois dirigentes de estatais, depois da Lava-Jato, temiam que uma empreiteira envolvida em casos de corrupção ganhasse a disputa.

A não concretização do acordo de leniência deveria, segundo especialistas, gerar responsabilidades pessoais para os agentes públicos omissos.”

sexta-feira, 21 de junho de 2019

A dialética de Moro





“A dialética de Moro

POR MERVAL PEREIRA

O debate sobre os diálogos entre o então juiz Sérgio Moro e o chefe dos procuradores de Curitiba Deltan Dallagnol, continua onde sempre esteve desde o início, no campo político.

Assim como existem juristas que acreditam que houve exacerbação do papel do juiz, ferindo a imparcialidade, outros consideram normais os contatos e os comentários.

Sendo assim, a discussão se limita a aspectos subjetivos da nossa ordem jurídica processual, e das poucas sugestões práticas que surgiram no debate de ontem no Senado foi a do senador Cid Gomes, que propôs mudar a legislação para instituir a figura do juiz de garantias, ou juiz de instrução. 

Separação entre o juiz que pratica determinados atos decisórios durante a fase investigatória e o juiz que atua na fase da ação penal. Ou seja, juiz que atua no inquérito não pode ser o mesmo do processo.

As limitações dessas duas figuras novas no nosso processo penal seriam definidas pelo Congresso, ouvindo as instituições representativas dos juízes, como a (Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe); da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), das associações do Ministério Público.

Esse debate entre correntes distintas no meio jurídico existe porque há uma proposta para incluir a figura do juiz de garantias no Código de Processo Penal em tramitação desde 2010, e não se chega a uma conclusão.

O Instituto dos Advogados do Brasil defende, com base em parecer do ex-deputado federal e advogado Miro Teixeira, que juízes, sejam de instrução, sejam os existentes hoje, têm que evitar toda e qualquer participação na fase investigatória. Outros juristas consideram que mesmo hoje é função do juiz do processo coordenar a investigação.

Ontem, na sabatina a que se submeteu, por decisão própria, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o hoje ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro desanimou os políticos que o atacaram.

Conseguiu levar o debate para o campo dialético, e a discussão acabou sendo sobre quem é contra ou a favor da Lava-Jato, quem quer soltar bandido, o que favorece muito a sua posição quando juiz da Lava-Jato.

Ficou claro que o interesse do PT é apenas soltar o ex-presidente Lula, e com isso perde-se a capacidade de contestar o ministro Sergio Moro. Apesar dos apelos dos partidos de oposição, os petistas não conseguiram discutir o tema de maneira genérica, colocando sempre em questão as condenações de Lula.

A oposição, por sinal, não conseguiu se organizar para fazer com Moro o que fez com o ministro da Economia Paulo Guedes, que acabou perdendo a paciência em momentos cruciais.

O ministro Moro garantiu que não fez treinamento formal para a sabatina, mas estava bastante tranqüilo na argüição, e teve a seu favor uma bancada em defesa da Lava-Jato.

Uma situação curiosa é que, mesmo os oposicionistas, tentavam a todo custo garantir que não estavam criticando a Operação Lava-Jato, sabendo que a sessão estava sendo televisionada pela TV Câmara.

O que ficou definido na audiência é que o crime cometido foi a invasão de celulares de autoridades brasileiras. Moro fez bem ao negar que seja o Super-Homem que o representa no boneco inflável que aparece nas manifestações e ontem foi colocado em frente ao Congresso.

Mas o fato é que enquanto contar com a credibilidade que a maioria lhe concede, e a Lava-Jato for vista como a garantia do combate à corrupção pela população, o ministro Sérgio Moro estará garantido.

É o que se chama em linguagem militar Moral high ground. A origem é o conceito de que, para vencer, há que conquistar os níveis mais altos do campo de batalha. É o que Moro está fazendo, com sucesso, até o momento.

 Inclusive afirmando, quase ao final da audiência, que se for constatada alguma irregularidade, renunciaria ao cargo de ministro. Pura retórica, mas eficiente, pois se surgirem irregularidades, ele estará inviabilizado politicamente.

Moro repetiu com gosto o título de um artigo de um professor de Harvard que dizia "O escândalo que encolheu". A não ser que apareçam coisas verdadeiramente graves, o escândalo, como apresentado pelo site Intercept e pela oposição, está realmente esvaziado.”

quinta-feira, 20 de junho de 2019

Reforma ficou maior





“Reforma ficou maior
      
Por Pedro Fernando Nery

O impacto fiscal da nova versão da reforma da Previdência é maior que o da versão inicial. É verdade que com as modificações trazidas pelo relator Samuel Moreira o impacto direto nos dez primeiros anos caiu de R$ 1, 2 trilhão para R$ 900 bilhões. Contudo, essa análise ignora a retirada do texto da capitalização, que necessariamente provocaria perda de arrecadação e aumentaria o déficit – em um montante desconhecido.

A capitalização traria o chamado déficit de transição. O modelo, em que cada um poupa para si, se contrapõe à repartição, em que cada um recolhe tributos para pagar os atuais benefícios – como no INSS. Assim, a capitalização é considerada superior à repartição quanto à formação de poupança (juros mais baixos) e à ausência de subsídios cruzados (mais igualdade).

Entretanto, é difícil migrar de um regime de repartição para um de capitalização. Os benefícios já concedidos devem continuar sendo pagos, ao passo que arrecadação, ou parte dela, não existe mais. Como os trabalhadores em atividade deixam de recolher total ou parcialmente os tributos que pagam os inativos, o déficit aumenta. Os recursos que migram dos tributos (repartição) para a poupança individual (capitalização) precisam ser cobertos pelo Tesouro. O déficit total é acrescido do novo déficit, o déficit de transição.

O custo da transição da capitalização na reforma não foi conhecido, porque na verdade a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) não criava o novo regime, só autorizava que futura lei complementar o fizesse.

Em diversas declarações, o ministro Paulo Guedes sugeriu que o custo seria limitado, porque o regime seria limitado aos jovens. A proposta teria o duplo objetivo de criar um regime de capitalização e combater o desemprego da juventude, desonerando dos salários a contribuição do INSS.

Entretanto, a PEC de reforma enviada pelo governo não restringiu a capitalização aos jovens. No limite, a transição poderia custar nos dez primeiros anos mais de R$ 7 trilhões – caso incluísse todos os trabalhadores.

É evidente que esse é um exemplo extremo, mas com a redação inicial havia uma chance não negligenciável de os moldes da capitalização ser decidido por outro governo. A título de ilustração, o governo FHC emendou a Constituição em 1998 para prever a capitalização no serviço público, que só foi decidida no governo Dilma, em 2012.

O financiamento da transição é o real desafio com a capitalização, objeto de várias críticas impertinentes nos últimos meses: da lenda urbana de que o Chile virou campeão internacional de suicídios com o modelo à afirmação de que a maioria dos países desistiu desse regime.

Na verdade, alguma forma de capitalização é prescrita por organismos como o Banco Mundial e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e adotada em democracias avançadas famosas pelo Estado de Bem-Estar Social, como Austrália, Canadá, Reino Unido, Suécia e Noruega.

De fato, a mudança idealmente precisa de autorização na Constituição, exigindo PEC. É possível talvez fazê-la por simples projeto de lei ou medida provisória com saídas mais engenhosas como via FGTS (vide texto Capitalização sem o trilhão, do professor Hélio Zylberstajn, publicado recentemente no jornal) ou alguma desoneração condicional a depósitos em previdência complementar.

Não deveria ser problema, porém, que a proposta fosse revisitada com maior detalhe em nova PEC. Afinal, como sugere o ministro, há a intenção de que os filiados ao novo regime de Previdência, por capitalização, sejam também filiados a uma nova legislação trabalhista – apelidada de carteira de trabalho verde e amarela.

A carteira verde e amarela foi a principal proposta das eleições para um dos temas mais negligenciados do debate público: a altíssima taxa de desemprego jovem (que era alta mesmo no período áureo do mercado de trabalho). O problema está diretamente relacionado a chagas como a violência urbana e a pobreza infantil (muitos pais de crianças pobres são jovens).

Em muitos países o custo de contratar jovens é menor. Não no Brasil, em que estão sujeitos inclusive à mesma alíquota patronal para o INSS, de 20% – uma das maiores do mundo (a média no G-20 e América do Sul é menos da metade, 9%).

Caso não se restrinja à desoneração da folha, a carteira verde e amarela de Guedes precisaria de modificação da Constituição, para aproximar a legislação trabalhista brasileira da de países em que é mais flexível, como Nova Zelândia, Austrália, Chile e EUA. Assim, a capitalização pode em breve retornar à discussão.”

quarta-feira, 19 de junho de 2019

A guerra dos Brasis





“A guerra dos Brasis
      
POR FERNÃO LARA MESQUITA

Sob os repiniques da bateria em torno dos grampos do Joesley desta véspera de votação da reforma da Previdência (escrevo na quinta-feira 13/6), agora a cargo dos arrombadores a soldo de um certo The Intercept, uma das marcas-fantasia de PSOL, PT e cia., está consumado o tombo do costume na última tentativa do País Real de abolir a escravatura.

Com os Benefícios de Prestação Continuada de abre-alas, o velho bloco do Me Engana Que Eu Gosto passou batidos os “jabutis” que realmente lhe interessavam: o regime de capitalização, que mataria para todo o sempre o comércio de privilégios previdenciários, a mais produtiva mina de ouro de quem tem o poder de vendê-los, e a manutenção da constitucionalidade das normas da Previdência, a garantia vitalícia pela qual cobram caríssimo esses comerciantes. A reforma da Previdência já entra na avenida castrada, conforme o prometido, portanto, e com o favelão nacional com todos os “acessos” espetados nas suas veias mantidos para que o País Oficial possa continuar servindo-se na medida da satisfação dos seus luxos.

O apartheid brasileiro tem raízes profundas. O Brasil Real, o Brasil que deu certo, o Brasil que se fez sozinho escondido do outro, este Brasil continua, como sempre esteve, à margem da lei. A lei foi feita pelo País Oficial, o antiamericano, o que sempre viveu das “derramas”, o que enforcou Tiradentes, o que invadiu o Rio de Janeiro em 1808, de modo a não poder ser cumprida jamais. É a continuação do Brasil dos traficantes de escravos que compravam pedaços do Estado (feudos) e “títulos de nobreza” ao rei. São as deles as tais instituições que “estão funcionando”.

Só dois pontos destes dois Brasis sempre estiveram conectados: as mãos de um e os bolsos do outro. No mais, são antípodas em tudo. Na educação, bola da vez, há os nédios professores das universidades públicas que comem o grosso da verba nacional, aposentam-se na flor da idade e dão aulas nos enclaves privatizados do território brasileiro onde polícia não entra (Coafs e tribunais de contas, menos ainda) e se formam, “de graça” e sem lei, os quadros da elite do País Oficial. E há as professorinhas miseráveis, que não se aposentam nunca, das escolas básicas varejadas de balas perdidas, caindo aos pedaços, creches de quase adultos que vão lá para comer da mão do País Oficial o pão que a “educação” que ele lhes serve não consegue comprar.

O sindicato desses diferentes professores é, no entanto, o mesmo. Com estrutura nacional, vem a ser o núcleo duro da defesa da privilegiatura. Escudados na miséria das professorinhas, são os professorões que organizam aquela rede que sai em passeatas milimetricamente cronometradas com as pautas em tramitação no Congresso Nacional e nas redações que empregam seus parentes, amigos e correligionários, para “provar” a “impopularidade” de acabar com os salários e as aposentadorias 100 vezes, 50 vezes, 30 vezes na média nacional maiores que as do favelão que paga a conta.

Mas não foi a derrota desse Brasil que saiu nas manchetes. Já não é mais nem “o governo” que “perde” ou “ganha” as batalhas entre os dois Brasis. Agora é só “o presidente Jair Bolsonaro” que “sofre derrotas no Legislativo e no Judiciário”, seja na batalha para o favelão nunca mais ter de pagar lagostas e vinhos tetracampeões aos STFs de sempre, seja para que o Estado conceda à plebe a graça de não ser enjaulada quando recusar-se a deixar-se mansamente matar e insistir em defender a própria vida contra quem resolver atentar contra ela.

As redações congregam os últimos brasileiros que ainda não entenderam com quem estão lidando. A bandidagem mata 65 mil. A bandidocracia mata milhões por ano. O conluio entre as duas é aberto a quem interessar possa, do grande tráfico de entorpecentes, hoje privilégio de governos praticantes do tipo de “excesso de democracia” que o lulopetismo prega, para baixo. Mas a imprensa tem mais medo do povo obediente à lei, da polícia, dos promotores e dos juízes que realmente apitam faltas do que deles. Nem a “epidemia de ansiedade” que acomete o povo brasileiro como a nenhum outro do planeta é associada ao que quer que seja de especial. É mais uma daquelas notícias que os âncoras de TV leem com cara de paisagem. Uma doença sem causa. Nada a ver com os 40 milhões de desempregados e subempregados nem com a montanha de assassinados.

Para a unanimidade da imprensa brasileira essa carnificina só tem a ver com o “acesso a armas” que – advertem – ou nega-se terminantemente à sub-raça tupiniquim ou ela sairá matando desbragadamente por aí. É como se esse acesso já não estivesse drasticamente proibido há 14 anos, contra a vontade expressa em voto pela população, e não estivesse sendo provada 65 mil vezes por ano, 5.342 vezes por mês, 178 vezes por dia a mentira de associar desarmamento com segurança pública.

No quesito segurança, aliás, o esforço concentrado da ala mais “progressista” do nosso jornalismo é para discriminar cadáveres. Depois de todo o resto a desigualdade em nome da igualdade chega, finalmente, aos necrotérios. Cadáver de mulher vale mais – e dá pena mais pesada – que cadáver de homem e menos que cadáver de homossexual ou de transgênero. E, em todas essas subcategorias, ganham “peso 2” os que acumulam a qualidade de não brancos.

Tudo isso tem precedência, no jornalismo pátrio, sobre a guerra aberta entre os dois Brasis cuja existência ele nem sequer reconhece. Ele permanece surdo ao País Real, mas sempre pronto a disparar sem pensar uma vez e meia todo e qualquer petardo que a bandidocracia houver por bem enfiar-lhes nas culatras “de acesso”, e a invocar a lei escrita pela bandidocracia para manter eternamente intactas as leis escritas pela bandidocracia, para julgar todo mundo que ousar tratar de alterá-las.

Se o Brasil “é uma democracia”, como parecem crer 9 entre 10 dos nossos jornalistas, qualquer alteração no status quo será “antidemocrática”. O.k., então. E para onde vamos na sequência da aceitação dessa premissa?”

terça-feira, 18 de junho de 2019

Intolerância política





“Intolerância política

POR MERVAL PEREIRA

O presidente Jair Bolsonaro deu várias mostras nos últimos dias daquilo que já havia sido evidenciado desde o início do governo: o que considera lealdade é mais importante para ele do que competência. E de que não admite diversidade de pensamentos em qualquer instância do governo.

O que ele fez com o presidente do BNDES, Joaquim Levy, foi demiti-lo publicamente ontem, ao anunciar que ele está “com a cabeça a prêmio” há muito tempo, e que já está “por aqui” com ele, que não estaria cumprindo o que combinara ao ser nomeado.

Isso porque Levy indicou para uma diretoria do BNDES Marcos Pinto, que trabalhou na gestão de Lula como chefe de gabinete de Demian Fiocca na Presidência do BNDES, de quem era assessor quando Fiocca foi vice-presidente.
Fiocca encaminhou a indicação de Marcos Pinto para a diretoria da CVM em 2012, na gestão de Guido Mantega. Essa relação de Marcos Pinto com a gestão petista irritou Bolsonaro, que exigiu publicamente sua demissão, ameaçando demitir Levy amanhã se não cumprisse sua ordem.

Por trás da confusão com Marcos Pinto está a irritação de Bolsonaro com o próprio Levy, a quem aceitou no BNDES por insistência do ministro da Economia Paulo Guedes. A desconfiança do presidente recai até sobre pessoas que o auxiliaram muito de perto, como os ex-ministros Gustavo Bebiano e o general Santos Cruz, de quem era amigo há 40 anos. Faz jus a um conselho que recebeu de seu pai, que dizia para confiar apenas nele e na sua mãe.  Foram vítimas de intrigas do mesmo grupo, comandado pelo filho Carlos e pelo guru esotérico Olavo de Carvalho.

O ministro da Justiça Sérgio Moro também passou pelo mesmo problema que atinge agora o ministro da Economia Paulo Guedes. Os dois supostamente tiveram carta branca de Jair Bolsonaro para escolher seus assessores, e foram desautorizados pelo presidente.

O caso de Moro foi menos grave do que o de Guedes agora, mas exemplar de uma intolerância incomum nos governos recentes, com exceção de uma atitude pontual de Michel Temer, que demitiu um garçom nos primeiros dias de presidente por considerá-lo um espião petista.

Moro foi obrigado a cancelar a nomeação da cientista política Ilona Szabó para o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Presidente do Instituto Igarapé que estuda violência urbana e propõe medidas como desarmamento e descriminalização das drogas, a ideia da nomeação era justamente colocar uma voz divergente no Conselho, para que ele exercesse seu papel em plenitude, isto é, debater teses e sugerir opções ao ministro.

Nos governos anteriores, Francisco Weffort, fundador do PT, foi ministro da Cultura de Fernando Henrique por 8 anos; os economistas Marcos Lisboa e Murilo Portugal foram assessores importantes de Palocci quando era ministro, e o próprio Joaquim Levy foi ministro da Fazenda de Dilma.

Os petistas boicotaram os economistas que consideravam tucanos, mas só Levy foi demitido. Dilma era mais próxima de Bolsonaro em termos de intolerância política do que Lula, que sabia aceitar assessores que não fossem petistas de carteirinha.
Com a crescente autonomia do Congresso em relação ao Palácio do Planalto, Bolsonaro parece estar retomando uma política de contato direto com o eleitor, que tentara no início de sua gestão. Radicalizando posições para contentar seu núcleo principal de eleitores

O próprio ministro Paulo Guedes, que no início do governo disse que daria “uma prensa” no Congresso e teve que recuar, voltou a tentar pressionar os parlamentares com críticas duras contra a proposta da Comissão Especial da Previdência.
O mais provável é que queira passar a ideia de que não gostou da proposta, para que os deputados tenham a sensação de vitória sobre o governo e não façam novas alterações.  

Também ontem, Bolsonaro usou o Twitter para pedir que a população pressione os senadores para manterem seu decreto que flexibiliza o porte de armas.
A Comissão de Constituição e Justiça do Senado decidiu revogar os decretos que permitem o porte de armas de fogo a cidadãos e colecionadores, atiradores desportivos e caçadores.

O presidente, que já dissera que não acreditava que os senadores fossem votar “contra o povo”, agora pede que os eleitores os pressionem.”

segunda-feira, 17 de junho de 2019

Chernobyl





“Chernobyl
      
Por Monica De Bolle

“Onde antes temia o custo da verdade agora apenas pergunto: qual o custo das mentiras?” Termina com essa indagação a minissérie do canal HBO sobre o terrível desastre nuclear de 1986 na Ucrânia, então sob domínio da União Soviética. A série é sobre a tragédia, mas é também sobre um regime pútrido, carcomido pela corrupção e pelas mentiras. As citações memoráveis são quase todas sobre as mentiras. Considerem essa: “Quando a verdade ofende, mentimos e mentimos até não sermos mais capazes de lembrar que ela sequer existe. Mas existe. Está lá”. Ou essa: “Todas as mentiras que contamos são uma dívida com a verdade. Mais cedo ou mais tarde, essa dívida será paga”.

O Brasil vive de mentiras há muitos anos, portanto a dívida com a verdade é vultosa. Algumas dívidas já começaram a ser pagas, como a acumulada após anos de mentiras sobre a economia. Na semana passada escrevi sobre versão tropical da estagnação secular da qual padece o Brasil. Permitam que eu puxe esse fio mais um pouquinho. O PIB quase inercial brasileiro é a dívida que temos a pagar após anos de má condução econômica e do acúmulo de mentiras. As mentiras que nos contavam quando diziam que o País não tinha problema fiscal algum, que tudo estava sob controle. As mentiras que levaram às pedaladas, à expansão desordenada do crédito público, à crença de que tolerar mais inflação hoje traria recompensas na forma de alta do investimento, à ilusão de que a redução da desigualdade era para sempre mesmo com toda a macroeconomia fora do lugar.

Essas foram apenas as mentiras mais recentes, algumas contadas durante o segundo mandato de Lula, muitas contadas ao longo do primeiro mandato de Dilma, mais outras tantas nas campanhas eleitorais. A verdade cobrou seu quinhão em 2015 e 2016, e, implacável, continua a fazê-lo até hoje. Afinal, também tivemos a mentira de que a remoção de Dilma traria o crescimento econômico, a confiança, o investimento, tudo isso de volta, sem prejudicar as instituições do País. Tivemos a mentira de que o teto de gastos de Temer – por necessário que fosse, apesar de mal desenhado – restauraria o motor engatado da atividade econômica.

A verdade, sempre à espreita, é que a economia brasileira perdeu dinamismo há tempos porque os governantes do País pouco se preocuparam em modernizar a indústria, abrir a economia, priorizar a educação, investir na infraestrutura. E, prestem bem atenção: a mentira não tem partido, ou vício ideológico, ou religião, ou gênero, sexo, raça ou cor. A mentira é negação, ofuscação, omissão, distorção. A mentira às vezes é intencional, às vezes não. Nada disso importa.

Chernobyl. Não deveria ser metáfora para esse momento, mas o Brasil é aquele reator que, descontrolado, não consegue parar de aumentar a temperatura do desastre. A Operação Lava Jato desvelou mentira após mentira, expondo políticos, empresários, gente que em outros tempos jamais seria pega pela justiça. No último episódio da série, o físico nuclear Valery Legasov, explica como funciona um reator nuclear. Didaticamente, expõe os pesos e contrapesos necessários para controlar o elevado grau de instabilidade do processo de fissura atômica. Assim revela como os erros humanos – além do erro de desenho das válvulas de controle do reator – levaram o sistema da estabilidade à total e irreversível instabilidade. Algo disso soa familiar após revelações recentes.

Os responsáveis pela Lava Jato iniciaram os trabalhos como um reator em equilíbrio, a cada etapa gerando a energia necessária para que o mal maior – a corrupção – fosse punido. Contudo, em algum momento, o reator tornou-se instável. Ao que parece, alguns dos responsáveis pela operação Lava Jato não viram claramente como as suas ações passavam rapidamente do equilíbrio ao desequilíbrio, possivelmente cruzando limites que não deveriam jamais ser cruzados. É importante que se reconheça que nós, não juristas, não especialistas, não investigadores, não sabemos se limites intransponíveis foram realmente atropelados. Para tanto, é preciso que se tenha a investigação – tal qual fizeram os cientistas que conseguiram chegar às causas verdadeiras da explosão de Chernobyl. As verdades precisam estar visíveis para que o País possa sair do processo de autocorrosão no qual está metido há mais de dez anos. Isso requer a devida lucidez para reconhecer que há inocentes e culpados de todos os lados, não importa o partido, a religião, a ideologia

Mentira corrói, cria inimizades, polariza. Mentira destrói. Assistam Chernobyl.”

sexta-feira, 14 de junho de 2019

A Moro e Dallagnol ainda restará a opção pelo voto





“A Moro e Dallagnol ainda restará a opção pelo voto
      
POR JOSÉ NÊUMANNE

Esta semana começou com a divulgação de pretensos diálogos por Telegram entre o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e os procuradores da força-tarefa da Lava Jato, coordenados por Deltan Dallagnol, revelando um pretenso acordo entre eles na condução de um processo da operação. Se forem verdadeiras – e nada até agora pode ser dito em contrário, com a agravante de os acusados em suas manifestações não as terem negado –, essas conversas, só pelo que foi divulgado até agora, são nitroglicerina pura na política, na Justiça, no governo e no Brasil.

As alegações apresentadas são desprezíveis. O jornal online The Intercept Brasil, que publicou as mensagens, é veiculado no País, desde agosto de 2016, pela empresa americana First Look Media, criada e financiada por Pierre Omidyar, fundador da eBay. E editada pelo advogado também americano, especialista em Direito Constitucional e ex-jornalista do diário britânico The Guardian Glenn Greenwald; pela cineasta, documentarista e escritora Laura Poitras; e pelo jornalista investigativo (natural dos EUA) Jeremy Scahill, especialista em assuntos de segurança nacional e autor do livro Blackwater: The Rise of the World’s Most Powerful Mercenary Army. Greenwald é casado com o brasileiro David Miranda, eleito vereador do Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e, atualmente, deputado federal na vaga de Jean Wyllys, que renunciou à cadeira na Câmara para sair do País, onde se dizia ameaçado. Adversária do impeachment da petista Dilma Rousseff, a publicação não é certamente imparcial. E daí? A Constituição federal garante o direito de qualquer veículo de comunicação exercer livre manifestação de opinião, desde que não publique mentiras.

A parcialidade questionada pela notícia, que explodiu como uma bomba de efeito devastador domingo (9/6), à noite, é a do ex-juiz da 13.ª Vara Criminal de Curitiba, em teoria pilhado em combinações estratégicas com procuradores federais em ação sob seu julgamento.

Conforme o que foi publicado até agora e na expectativa de que novos fatos venham a ser revelados pelo responsável pela divulgação, esse herói nacional, por mercê de seu desempenho na operação em tela, teria interferido no trabalho do MP. A iniciativa feriria o princípio básico da isenção do julgador, proibido de manifestar qualquer parti pris na tarefa de decidir quem tem razão: o Ministério Público, que, em nome do Estado, acusa o suspeito, e a defesa do acusado. Caso sejam mesmo autênticas as mensagens trocadas entre Moro e Dallagnol, levando em conta o fato de os outros diálogos até agora revelados não representarem abusos de conduta, mas apenas opiniões pessoais, a revelação é grave.

A eventual inclinação do juiz a aceitar os argumentos dos procuradores, em detrimento das negativas apresentadas insistentemente pelos defensores de Lula, os levará a pedir a anulação da sentença em primeira instância do processo sobre recebimento de propina e ocultação de patrimônio do triplex do Guarujá. Não implica, contudo, a automática inocência do réu, que dependerá de serem reformadas decisões unânimes de duas instâncias superiores, a segunda e a terceira, sobre o caso. De igual forma, a presunção tem sido contestada em outras varas. Há nova condenação do mesmo réu em idêntico juízo, da lavra da substituta eventual de Moro, Gabriela Hardt, e que o substituto permanente, Luiz Antônio Bonat, já encaminhou para ser julgada na Oitava Turma do Tribunal Federal Regional da 4.ª Região, em Porto Alegre. Assim, Lula responde a sete processos. No mais recente, o juiz Vallisney de Oliveira, da 10.ª Vara da Justiça Federal em Brasília, o tornou réu com Palocci e Paulo Bernardo, sendo o trio acusado de ter acertado receber US$ 40 milhões (R$ 64 milhões, à época) em propinas pagas pela empreiteira então presidida por mais um réu, Marcelo Odebrecht.

Ou seja, é bem longo e árduo o caminho perseguido pela defesa de Lula para soltá-lo. A ser provado em processo judicial, que costuma ser lento e complicado, o que foi revelado até agora mais prejudica Moro e os procuradores da Lava Jato, em especial Dallagnol, do que beneficia o presidiário mais famoso do Brasil, pilhado em vários passeios pelo Código Penal. Mesmo que The Intercept Brasil não tenha esgotado sua munição contra o ex-juiz da Lava Jato, será difícil a escalada do Himalaia de acusações por Lula, a não ser que a divulgação tenha sido autorizada por um juiz. Aí, a permanência de Moro no Ministério da Justiça ficaria insustentável. E isso dependerá menos da reação da opinião pública, que o idolatra e não confia nas instâncias superiores do Judiciário, às quais caberá julgá-lo, mas das circunstâncias políticas, que poderão levar o presidente Jair Bolsonaro a abrir mão do justiceiro, se passar a ser considerado suspeito de parcialidade.

Assim, até novembro de 2020, daqui a um ano e meio, quando o decano do Supremo Tribunal Federal (STF), Celso de Mello, se aposentar, é de duvidar que mesmo uma mão forte do chefe do governo bastaria para alçá-lo ao pináculo da Justiça, mantendo a promessa que até agora, tudo indica, mantém. Até então, o herói popular das manifestações de rua de 2016 para cá terá muitas noites para lamentar a mistura de infantilidade, soberba e senso de impunidade que conduziu seus surtos de adolescência leviana e bastante tardia. Seu companheiro em travessuras virtuais, o coordenador da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, também lastimará o instante em que acreditou na lorota de que o aplicativo russo é um meio de comunicação pessoal à prova de hackers. Estes dificilmente serão identificados. Pois, talvez seja de bom alvitre avisar que a experiência pregressa não autoriza expectativas favoráveis no caso.

A seus carrascos, que ora comemoram, é útil lembrar que restará a Moro e Dallagnol a saída pelo voto, pois parecem manter a devoção popular.”

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Além de convidar à corrupção, nosso sistema tributário estimula a guerra fiscal





“Além de convidar à corrupção, nosso sistema tributário estimula a guerra fiscal
       
Por Affonso Celso Pastore

Uma das atitudes mais contraproducentes é a de afrouxar o esforço para corrigir uma situação que se afigura como insustentável. Tenho uma reação muito negativa quando ouço que “uma reforma da Previdência mais branda já seria um progresso”, porque “afinal, assim ganhamos algum tempo”. A mania de “deixar para depois” talvez seja a principal razão pela qual o Brasil está aprisionado na armadilha do lento crescimento, que nos prende há algumas décadas a uma expansão pífia da renda per capita.

Não é difícil ver o que nos espera se nos contentarmos com uma reforma do tipo “meia-sola”. Muito em breve o teto de gastos deixaria de ser cumprido, e o crescimento explosivo da dívida pública só poderia ser evitado com o aumento de impostos ou, simplesmente, com a emissão de moeda, ambos piorando ainda mais as já precárias perspectivas de crescimento. Mais dramático ainda, é que mesmo aprovando integralmente a excelente proposta do governo ainda teremos de realizar um enorme esforço para colocar o País na rota do crescimento sustentável. Abordo aqui dois dos inúmeros desafios que temos pela frente.

O primeiro é a necessidade de uma reforma nos impostos sobre bens e serviços, unificando o IPI, o ICMS, o PIS e o Cofins em um único IVA nacional, cobrado onde o produto é consumido, e não onde ele é produzido. Há uma distância enorme entre essa proposta, defendida por Bernard Appy, e a forma envergonhada de um IVA federal atualmente discutida no Ministério da Economia. O segundo é uma corajosa abertura da economia ao setor externo, não somente derrubando as tarifas sobre as importações, que no Brasil superam as de qualquer país que tenha criado uma indústria competitiva, mas fazendo profunda limpeza na proteção não tarifária, como os índices de conteúdo nacional, entre muitos outros.

Além da enorme complexidade de nosso sistema tributário, que é um convite à corrupção, ele estimula a guerra fiscal entre Estados. Os maiores compradores de automóveis residem nos centros urbanos do País, que na sua maioria se situam na franja litorânea onde estão também os portos nos quais são embarcados os veículos exportados. Porém, em nome de gerar empregos, o Estado de Goiás criou um estímulo para atrair uma montadora. É como se as laranjas produzidas em São Paulo fossem transportadas para a serem esmagadas transformando-se em suco em Minas Gerais voltando em seguida para São Paulo onde o suco será consumido ou exportado. Este, apesar de ser um exemplo hipotético, resume o que a quase totalidade dos Estados vem fazendo. São Paulo, que até recentemente recusara-se a entrar nessa guerra, a ela vem aderindo alegremente em nome de gerar empregos.

Além da perda de receita agravar a precária situação fiscal dos Estados, tais distorções tributárias são responsáveis pela ineficiência da indústria: no sistema atual os créditos tributários gerados em um Estado não são recuperáveis no Estado de destino, e uma de suas vítimas são as exportações. Como o governo responde a reivindicações do setor privado, que são tanto maiores quanto mais intensas forem as distorções, cria-se um regime de compadrio, no qual o maior estímulo dado aos empresários é dirigir-se a Brasília, com “sugestões” para resolver o problema. Se os governantes fossem motivados a atingir o bem-estar da sociedade como um todo, resistiriam a tais pressões. Mas infelizmente um dos seus principais (se não o principal) objetivos é a manutenção do poder, o que os leva a praticar o compadrio, favorecendo a empresa e ignorando o bem comum.

O governo precisa se convencer de que tem vários desafios. O primeiro é batalhar pela aprovação de uma versão robusta da reforma da Previdência, de forma a estancar a crise fiscal, que ainda está em estado latente, mas que não permanecerá nele para sempre. O segundo é definir um programa de reformas do qual, no mínimo, constem a abertura da economia e a reforma tributária. O único objetivo socialmente aceitável de uma reforma tributária é reduzir as ineficiências, e ao fazê-lo cortar o poder dos grupos de pressão para obter uma “ajuda” fiscal ou creditícia às empresas mais próximas do poder político. E o único objetivo da abertura da economia é aumentar a produtividade da indústria, dando aos empresários o estímulo socialmente correto que é, através da busca do lucro para seus acionistas, retribuir à sociedade com o crescimento da produtividade do trabalho.”

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Bolsonaro, muito pitaco e pouca noção de governo





“Bolsonaro, muito pitaco e pouca noção de governo
      
Por Rolf Kuntz

Rei dos pitacos e das palavras fora de hora e de lugar, o presidente Jair Bolsonaro conseguiu numa única semana dizer aos argentinos como votar, propor a extinção de multa para quem levar criança no carro sem cadeirinha, proclamar a inocência de Neymar no caso da acusação de estupro, defender o afrouxamento das normas de trânsito e entrar numa conversa muito estranha sobre moeda única para Brasil e Argentina. Do lado brasileiro, o Banco Central (BC) logo negou haver qualquer estudo sobre o assunto. O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, condenou a ideia e foi atacado por internautas, presumivelmente bolsonaristas. A criação da tal moeda, por enquanto chamada peso real, é e será por muito tempo apenas uma fantasia, uma ideia muito distante dos problemas e prioridades atuais e previsíveis. Mas será prioritário para o Brasil, neste momento, facilitar a posse e o porte de armas ou reduzir o número de radares em estradas? Nem se trata apenas de saber se essas inovações são positivas. Antes de mais nada, trata-se de avaliar a importância desses assuntos na ordem dos problemas brasileiros. Quando se trata de prioridades, as decisões do presidente Jair Bolsonaro podem ser surpreendentes, como têm notado muitos políticos e analistas de assuntos públicos.

Falar de prioridades é falar de agenda, e agenda parece algo desconhecido para o chefe de governo, segundo o deputado Rodrigo Maia e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, ambos filiados ao DEM. “Se o governo não tiver agenda, e parece que não tem, vamos fazer a nossa”, disse Alcolumbre à GloboNews. “Não vamos ficar esperando”, acrescentou. O senador poderia mencionar sem dificuldade uma lista de trapalhadas, o desarranjo do Executivo e a desarticulação da chamada base parlamentar. Cumpridos quase cinco meses e meio de mandato, a conclusão parece inevitável: o presidente Jair Bolsonaro chegou ao governo sem uma ideia clara dos desafios mais urgentes, sem uma lista de objetivos bem definidos e articulados e, mais importante, sem entender as funções presidenciais.

Ao defender sua interferência em anúncio do Banco do Brasil (BB), o presidente usou um argumento simples, primário e revelador. “Quem indica e nomeia presidente do BB – não sou eu? Não preciso falar mais nada, então.” Não precisaria, mesmo. Essa declaração, de 27 de abril, mostrou muito claramente a confusão entre governar e mandar. Na cabeça do atual chefe de governo, a função presidencial, tudo indica, consiste em ordenar e proibir – segundo suas preferências, seus impulsos e suas concepções ideológicas e religiosas.

Isso explica suas tentativas de intervir também na política de preços da Petrobrás e, mais timidamente, na orientação da Caixa Econômica. Cabem no mesmo quadro as tentativas de eliminação ou redução de radares nas estradas, de aumento dos pontos na carteira de motorista e de alteração da norma sobre transporte de crianças em carros.

Sem discutir esses temas, sem consultar especialistas e baseado apenas em sua opinião, ou em seu impulso, o presidente se pôs a intervir em todos esses assuntos. O uso frequente de decretos, também característico do estilo Bolsonaro, é compatível com a confusão entre governar e mandar. Esse tipo de ação pode resultar em tropeços, quando as decisões presidenciais são contestáveis com argumentos legais. Esse tipo de resistência forçou, por exemplo, a revisão do último decreto sobre armas. Poderá levar à anulação de outras decisões, mas é difícil dizer se o presidente entenderá, em algum momento, os limites de seu poder.

Mas a ignorância desses limites é apenas uma parte do problema. A questão mais grave e mais ampla é o desconhecimento do significado de governo e das funções da Presidência. O presidente Bolsonaro erraria muito menos se consultasse funcionários competentes em cada área. Quando interveio na publicidade do BB e tentou fixar normas para anúncios de empresas controladas pelo Tesouro, foi salvo de mais um erro pelo ministro da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz. A intervenção violaria, advertiu o ministro, a Lei das Estatais.

Sem uma agenda clara, com objetivos ordenados, hierarquizados e vinculados a interesses permanentes e condições de funcionamento do Estado brasileiro, o presidente Bolsonaro e sua trupe ideológica só produziram confusões e problemas. Forçado a enxergar e a admitir erros desastrosos, o presidente já demitiu um ministro da Educação, substituído, no entanto, por uma figura igualmente mal escolhida. Na diplomacia, acabou aceitando a intervenção do vice-presidente, general Hamilton Mourão, empenhado em consertar erros graves e custosos e em prevenir novos desatinos. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, tem igualmente procurado salvar o relacionamento com relevantes clientes do Brasil.

Não está claro, no entanto, se o presidente de fato percebeu as tolices cometidas por ele mesmo, pelo ministro de Relações Exteriores e pelo filho Eduardo Bolsonaro, porta-voz mais ostensivo da submissão bolsonariana às ideias do presidente Donald Trump.

Ao dar palpite sobre a eleição argentina e ao aceitar a conversa inconsequente sobre a moeda comum, o presidente Bolsonaro demonstrou, mais uma vez, sua dificuldade de perceber as limitações e obrigações de seu posto. Teria sentido estratégico, por exemplo, começar um esforço de resgate e de revigoramento do Mercosul.

Se iniciasse um trabalho firme e competente nessa direção, poderia, com apoio de Paraguai, Uruguai e de outros países da área, remodelar as condições de cooperação regional. Seria mais apropriado e eficiente do que agir como cabo eleitoral do presidente Mauricio Macri. Para ir além das declarações de ódio ao bolivarianismo e ao kirchnerismo, o presidente Bolsonaro precisaria, no entanto, formar uma visão menos tosca do governo, dos interesses do Estado e de suas potencialidades no quadro global. Quatro anos serão suficientes para isso?”