“Robin Hood
revisitado
POR FERNÃO LARA
MESQUITA
Robin Hood
jamais roubou dos ricos para dar aos pobres. Essa é uma releitura
“marxistizada” do herói arquetípico inglês. Robin Hood roubava do Estado para
devolver aos pobres o que o Estado lhes tinha roubado. João Sem Terra, o
usurpador do trono, e seu odioso coletor de impostos, o xerife de Nottingham, é
que eram os seus alvos recorrentes.
Não é um
pormenor sem importância. É precisamente aí que os caminhos da humanidade se
dividem para nunca mais se reencontrar.
Não é só por
questão de gosto que na Inglaterra os castelos (e as igrejas) são de pedra e
madeira e os franceses, russos, espanhóis ou portugueses (assim como suas
igrejas) são de ouro. Desde a Carta Magna de 1215, o rei inglês vem sendo
mantido sempre e cada vez mais “pobre” e mais dependente do Parlamento para
manter seus luxos e sustentar suas guerras. Cada novo pedido de recursos foi
negociado em troca de uma garantia a mais de proteção da propriedade de quem só
tinha de seu a força de trabalho contra o poder do rei de tomar para si o
produto dele até que, a partir de 1680, o Parlamento já tivesse alcançado a
supremacia que tem hoje.
Ao contrário das
culturas latinas que da submissão à Igreja saltaram diretamente para a
submissão ao absolutismo monárquico onde a propriedade é a peça-chave de um
sistema totalitário de opressão, na cultura saxônica o direito de propriedade
decorre da luta quase milenar entre os representantes dos despossuídos e um
déspota e transforma-se na principal ferramenta de libertação do indivíduo pelo
trabalho. Vem com ela a responsabilidade individual, pois, onde a propriedade
não é um privilégio dos protegidos do rei, quem a detém é compelido pelo
mercado a voltá-la para a melhor satisfação do consumidor, sob pena de perdê-la
se for lento ou inepto no processo.
Foi por nunca
ter tido vitórias contra o poder estabelecido “por deus” ou pelo sangue que ele
tivesse “tornado azul” que a desesperança acabou empurrando a latinidade para o
pensamento mágico, moeda da qual são as duas faces o conformismo que se abriga
na religião ou as revoluções para “criar uma nova humanidade” depois de afogar
a velha em sangue, único meio de atingir “o impossível” com o concurso de um
“herói” que leve o povo a superar sua impotência. Inversamente, foi por tê-las
obtido sempre, passo a passo e usando instrumentos prosaicos de tão objetivos,
que o pensamento saxônico entronizou o “senso comum” como baliza suficiente
para referir tudo na vida.
A sorte também é
um fator decisivo. A história da Inglaterra teria sido outra, não fossem a
libido exacerbada de Henrique VIII e a inflexibilidade da Igreja com o
pouco-caso dele para com “o sacramento” do casamento. Ao proibir a religião
católica e liberar todas as outras, Henrique VIII atraiu todos os perseguidos
da Europa (sempre a gente mais interessante) e, desavisadamente, proporcionou
pela primeira vez na História a uma sociedade humana a experiência de conviver
pacificamente com a diferença, o que, a par de abrir caminho para a ciência
moderna tirando o dogma da frente da experimentação, levou os pensadores
ingleses a elevar a tolerância a fundamento básico e inegociável das relações
humanas, do que acabou por resultar, quando encontraram um território virgem de
privilégios multicentenários para resistir-lhe, mais uma caminhada da
democracia sobre a Terra.
O “povo sem rei”
da América do Norte pós 1776 veio juntar-se, como únicos exemplos dessa
característica desde sempre, aos suíços, que, graças à geografia, nunca tiveram
um. Vivendo nas temíveis montanhas entre dois pedaços da Europa cujas passagens
só eles conheciam, que aos reis de ambos os lados interessava atravessar a toda
hora, foram deixados em paz e passaram ao largo do absolutismo. Inventaram seu
sistema federalista a partir de 1291 e, como toda comunidade de iguais,
desaguaram naturalmente na democracia para resolver – no voto – os problemas
cotidianos da comunidade. Vieram bem até as invasões napoleônicas, quando
ficaram sob o jugo da França. Foram, então, beber no modelo americano para
restabelecer sua democracia. Desde aí estes dois povos – o suíço e o
norte-americano – vêm “trocando figurinhas” para aperfeiçoar suas democracias
nos momentos de crise. É na Suíça que, graças à ação concertada de patriotas e
jornalistas (que foram em caravana à Europa para entender o sistema de
democracia direta praticado por eles e vendê-lo em seu país), os Estados Unidos
vão buscar a chave que os levaria a transformarem-se na maior potência do
planeta. Já na virada do século 19 para o 20, tão corrompida e desmoralizada
junto à opinião pública quanto está a brasileira hoje, a “velha política”
americana sofreu um golpe fatal quando um atentado matou o presidente eleito
William McKinley nos primeiros dias de seu mandato, tirando Theodore Roosevelt
do “exílio” da vice-presidência em que o tinha metido um golpe articulado pelas
velhas raposas do Partido Republicano. Foi com ele que as ferramentas de democracia
direta puderam ser apresentadas ao país de cima de sua tribuna mais alta e
ganhar o impulso que as fez avançar por todo o século 20 e até hoje.
Dividido desde
sempre entre sua “americanidade”, vivida ao longo dos quatro séculos em que não
fomos mais que vilas isoladas cujas câmaras municipais eleitas tinham de prover
todas as necessidades da comunidade, de que são filhas a Conjuração Mineira, as
rebeliões federalistas pernambucanas, a República sonhada do “Manifesto” de Itu
e o curto interregno de Prudente de Morais e Rui Barbosa, em que foi plantado o
precário arcabouço jurídico em que se agarra até hoje a livre iniciativa no
Brasil, e a corrupção sistêmica dos últimos estertores do absolutismo decadente
que invadiu o Rio de Janeiro em 1808 de que são filhos a República Real,
golpeada ao nascer pelos positivistas, o getulismo que o entronizou no poder, o
lulismo e a terra arrasada que aí está.
Distante quanto
possa parecer hoje, o DNA brasileiro é democrático. Tem-nos faltado a ajuda
decisiva da sorte.”