“Carta ao bebê
Archie Harrison
Por Leandro
Karnal
Querido Archie:
você ainda não completou um mês. Desejo que sua vida seja longa e feliz, como
desejo a todas as crianças do mundo. A roda da fortuna o fez nascer em um lar
privilegiado e, como tudo, isso contém tudo de bom e tudo de ruim que possa vir
a ocorrer na sua vida. Confio na inteligência dos seus pais para que
transformem o privilégio em alavanca e não, como testemunhei muitas vezes, em
obstáculo ao crescimento.
Quando você
nasceu, muitos jornais disseram que era o “primeiro bebê inter-racial” da
família real britânica. A ideia é estranha. Sua bisavó, a rainha, vem de uma
família que acompanhou a história da Europa. Há uma chance de ela ter sangue
celta, romano, anglo-saxão, viking e, com certeza, normando (francesa).
Parentes distantes dela nasceram na atual Alemanha; há traços da Dinamarca na
família real por casamento. Logo, sua bisavó é, como eu e como você,
profundamente inter-racial. Em parte, esse é o legado da espécie humana: somos
Sapiens, somos Neandertais, somos todos de matriz africana, nossa raiz comum.
Sua avó Doria Ragland reforçou o que está em todos nós: a origem na África. Com
o tempo e o aumento de melanomas, isso pode ser uma vantagem competitiva...
Mas, como tudo contém sua dialética, afrodescendente dos EUA pode ter maior
inclinação a pressão alta. A medicina crescerá ainda mais e pode ajudar a
reforçar vantagens e diminuir desvantagens.
Expresso um
desejo, meu querido bebê. Que essa explicação sobre raças pareça muito estranha
quando você for adulto. Na verdade, sempre que estamos falando de raças,
estamos introduzindo algum pensamento errático que mistura genética com
caráter. Se o mundo de 2060, quando você tiver 41 anos e estiver no apogeu da
sua vida, não discutir mais essas coisas, creia-me, você estará em uma
sociedade mais feliz do que a de 2019.
Você é uma
criança do século 21 e, segundo um autor de agora, Yuval Harari, terá chance
enorme de chegar ao 22. Não concebo quais avanços técnicos acompanharão sua
jornada nem quais desafios novos estarão presentes. Teletransporte? Falta de
água? Energias renováveis? Novos fundamentalismos? Temos sido muito bons em
aumentar nossa capacidade produtiva e inventiva ao lado de gestos de violência
e imbecilidades variadas. Sempre fomos assim. A humanidade gloriosa e
desgraçada é o equilibrista que Nietzsche previra, entre um homem superior e o
nada do abismo. O equilíbrio é instável, porém existe.
Você olhará para
esta época, espero, com certo distanciamento e alguma náusea. Nossas guerras,
nossos atentados, nossos governos autoritários de direita e de esquerda: espero
que tudo lhe provoque o sentimento que temos hoje ao olhar as guerras de
religião dos séculos 16 e 17. Desejo mesmo que, em algum arquivo histórico,
você veja alguém que foi morto por casa de um tênis e um celular e exclame:
“Que gente atrasada!”. Sim, somos muito atrasados, quase bárbaros, convivendo
com violência e desigualdades impactantes e naturalizadas nas nossas
sociedades.
Enfim, que você
carregue a dignidade que admiro na sua bisavó, o senso de dever e de serviço.
Que você adquira o melhor da sua avó paterna, lady Diana, que se dedicou a boas
causas, como eliminar minas terrestres. Que você tenha o carinho da sua única
avó viva, pois uma avó é algo fundamental na vida e na formação de uma
personalidade. Os avós são remansos doces e tranquilos, são pais sem culpa,
apenas com afeto. Seu pai talvez não fale muito, mas ele teve uma biografia de
contravenções e isso pode tê-lo tornado uma excelente pessoa, pois não esposou
a hipocrisia moralista. Quando ele lhe disser: “não use drogas”, dirá pelo
melhor motivo possível: “Eu usei e não são boas”. “Evite se vestir de nazista
em alguma festa, não há nada a ser celebrado em regimes de morte. Eu errei.”
Sua mãe é famosa pela inteligência e pela personalidade. Que você seja muito
beijado, de forma a desenvolver um lar e uma raiz. Quem possui pais amorosos
tem uma resistência mais profunda ao mal e aos desgastes da existência.
Enfim, sua vida
tão nova e tão bela enche o mundo de esperança. Toda nova criança é um dom
extraordinário. Adultos que se incomodam com bebês que choram ou mães que
amamentam deveriam ser tratados. É uma patologia sentir estranheza diante da
vida. Que você viva mais de 120 anos, que ajude quem nasceu com menos
condições, que tenha vida em abundância, que frutifique sobre a Terra. Que sua
passagem seja de tal magnitude que, ao falecer mais que centenário, possa
pensar antes do fim: “foi tudo tão rápido”! É o que deseja seu tio distante do
Brasil, parente por parte de Eva, membro da mesma família genética,
inter-racial como você, que teve o privilégio de pais amorosos e que nasceu com
o mesmo sangue que o seu, o sangue vermelho da humanidade. Viva muito e feliz,
chore, mame, corra e caia. Chore mais uma vez, aprenda, cresça, ame e seja
amado. Bem-vindo, Archie! A sua aventura está começando. Viver é uma coisa
fascinante! O trono britânico é uma hipótese, a vida é uma certeza. É preciso
ter esperança!”
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