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terça-feira, 30 de abril de 2019

Por um choque de conexão! (Sem email-bomba)





“Por um choque de conexão! (Sem email-bomba)
        
POR FERNÃO LARA MESQUITA

O Brasil Oficial precisa de um “choque de conexão”. Tem de ser radicalmente plugado ao Brasil Real. Hoje este só existe em véspera de eleição. Está excluído de tudo para além do momento em que deposita o voto na urna. “As reformas” são uma novela sem fim a que o País assiste à distância há gerações. “Desta vez vai!” Mas o roteiro é exclusivo do grupo da privilegiatura momentaneamente investido do Poder Executivo, vivendo o papel para ele inédito de pagador e não apenas de gerador de contas, mais os seus interlocutores únicos: o resto da privilegiatura. Pelo País Real, feito touro de arena, entra no picadeiro sozinho, para ser desmontado, o ministro da Economia da vez. No final, todos “cedem”, docemente constrangidos, a seus próprios interesses porque a condição de “governo” é temporária, os empregos e as aposentadorias públicas é que são para sempre.

Não é que esteja faltando convencer alguém. Não há mais o que discutir. Não há mais o que argumentar. Todo mundo está convencido não só da iniquidade criminosa da situação como, a esta altura, da iminência do desastre, mas Miami e Lisboa são logo ali.

Falta entrar nesse debate quem tem tido o sangue chupado. Quem vai ter de continuar aqui. O Brasil sonha esquerda x direita, mas acordado é nobreza x plebeu. “Velha política” é a de político sem patrão, intocável. “Nova política” só quando todo mundo souber quem pôs cada um deles onde está e eles passarem a ter medo que os seus eleitores os tirem de lá todo santo dia; só quando formos nós a dar a última palavra sobre as leis que aceitamos acatar. Esperar que uma nova política nasça de mais regulamentos baixados pela velha é ilusão de noiva.

Estão aí as Forças Armadas para não nos deixarem mentir. O orçamento delas já era uma miniatura do orçamento do Brasil. ¾ do dinheiro vai pra salário. R$ 81,1 bi de 107,7 bi. O gasto com reservistas é maior que com militares da ativa porque, como no resto do serviço público, os aposentados, sempre precoces, são remunerados pelo provento máximo. Nas FAs eles custam, por enquanto, R$ 46,2 bi por ano contra contribuições previdenciárias de R$ 2,4 bi. O resto paga o favelão nacional que não se aposenta nunca. O que sobra para investimento em equipamentos de defesa, que é a parte que nos cabe nesse latifúndio, é o mesmo que sobra para investimento em infraestrutura, educação, saúde e segurança públicas na União, nos Estados e nos municípios. Estão orçados para este ano R$ 9,8 bi, 16% menos que em 2018, número que irá de menos em menos até o amargo fim empurrado pelas fórmulas de “reajustes” automáticos que a privilegiatura ativa ou aposentada se atribui como “direito adquirido”, se nada mudar muito nesse meio tempo.

E já sabemos que vai mudar, só que para pior. Como toda a discussão se dá exclusivamente entre eles e com base exclusivamente nos parâmetros deles, não será corrigida a pornográfica defasagem para cima do salário inicial de R$ 18 mil do ascensorista do Congresso em relação à realidade do favelão nacional. Será, sim, corrigida a defasagem para baixo do salário do general em relação ao dos ascensoristas do Congresso.

A “alternativa militar” na sua vez no poder após 34 anos de ostracismo resolveu o seu, portanto. Tomou distância do Brasil plebeu e está agora pau a pau com a privilegiatura.

E o desemprego? A economia paralisada? A guerra civil que mais mata no mundo?

Quem?! Como?! Onde?!

A gente do poder tem mais o que fazer. Mas se valer olhar pelo buraco da fechadura do banheiro, é bom lembrar, nem o papa resiste. Carlos Bolsonaro solto na rede é o buraco da fechadura do banheiro da família do presidente da República escancarado. Anda sempre à beira de um ataque de nervos. O dedo puxa o gatilho antes da participação do cérebro. Com ele tudo logo vira um enredo “família Bórgia”. Na equipe, no palácio, no Brasil, no mundo, tudo é uma só e mesma conspiração. Com o filósofo esotérico esbravejando por cima, essa “noia” toda ganha um endosso “teórico”. E então, dia sim, dia não, o ratinho que sai de um buraquinho vira um ratazão, vira um tigre-leão.

Nos albores da internet ganhou enorme notoriedade o “email-bomba”. O cara chegava em casa vindo do boteco e começava a “desabafar por escrito” no computador. Vomitava tudo de mais azedo que tinha atravessado na garganta desde priscas eras, como fazia antes de si para si. Só que no final, “uósh”, lá ia o bomba para o computador de alguém, onde ficava gravado para todo o sempre para ser lido, relido e cem vezes amargado. E de lá vinha outro do mesmo calibre, vazado naqueles termos que nos sobem à veneta na hora da raiva, mas que se repetidos em voz alta não passariam na polícia do bom senso.

As regras de convivência, a cerimônia e o mínimo de polidez exigidos no trato social, até pelos indivíduos mais toscos, foram moídos pela internet, onde o “convívio” se dá entre solidões. Você, o semianalfabeto, o “noiado”, todo mundo conversa na rede sozinho no seu canto, trancado no banheiro, sem ouvir o que ele próprio está dizendo, sem ver a reação das pessoas, sem o concurso do tom de voz, da expressão do rosto, do gestual, enfim, que dá a cor e o peso ao que é dito e ouvido, sem esclarecer os mal-entendidos. O que passa de um computador para outro nessas discussões é o texto sem contexto nem revisão. Despido. Árido. De pedra.

O resultado é a guerra. Mundial e de todos contra todos, cada vez mais. Babel. Coisa de Exu.

Isso arrebentou tantas amizades, tantas empresas e tantas famílias que um dos primeiros aplicativos que fez sucesso na lojinha da Apple foi um que procurava sinais de excesso de substâncias intoxicantes no texto dos emails digitados após o anoitecer (erros de grafia, palavrões, etc.) e aplicava um bom questionário ao seu autor, buscando aferir o grau de consciência crítica que lhe restava antes de liberá-lo para envio.

Sumiu. E pelo que está pintando, vai levar 5 gerações para o 03 entender a importância fundamental dos ritos do poder. O diabo é que o Brasil não tem nem mais 5 minutos pra perder.”

segunda-feira, 29 de abril de 2019

O poder briga com a sombra





“O poder briga com a sombra

Por Fernando Gabeira

O governo deu um passo na reforma da Previdência, mas continua no clima de barraco eletrônico, com grupos internos se atacando.

Não entro em detalhes, nem me interesso por personagens. Persigo um quadro um pouco maior.

Nele, a primeira ideia que surge dessas incessantes brigas é a ausência da oposição, ocupando ampla e seriamente o seu espaço. Na falta dela, o governo não tem com quem brigar e resolve brigar consigo próprio.

A cena agora revela mais abertamente uma tensão entre presidente e vice. É uma dupla singular para quem observa o recente período democrático. Na última viagem a Brasília, o fotógrafo Orlando Brito me mostrou a imagem da posse de Fernando Henrique Cardoso. No carro aberto, o vice Marco Maciel levantava a mão, de olho na altura da mão de Fernando Henrique. Ele não queria que acidentalmente seu braço estivesse mais elevado.

Marco Maciel era rigoroso na interpretação do papel do vice. Entre Temer e Dilma, houve um período em que a relação esquentou, terminando com aquela carta em tom de bolero: você não se importa comigo, sou apenas um vice decorativo.

Era, na verdade, uma carta de despedida. Temer já se preparava para substituir Dilma.

No caso Bolsonaro-Mourão, teoricamente tinham tudo para se complementar. Poderiam ter até combinado uma divisão de trabalho: Bolsonaro falaria para seus adeptos; Mourão faria a ponte com os setores que, por pura rejeição ao PT, votaram sem concordar com tudo.

Mas a política não se faz apenas com teorias. Ela é mediada por nossas paixões humanas. Sem combinar suas posições, agindo desorganizadamente, acabaram caindo na armadilha de sempre: até que ponto o vice pode ser protagonista?

No princípio da campanha, Mourão parecia tão ou mais conservador que Bolsonaro. Com o tempo, foi abrandando seu discurso, voltado para o mercado financeiro, a imprensa, a diplomacia.

Até que ponto Mourão quis apenas manter a amplitude da frente que elegeu Bolsonaro, até que ponto seu protagonismo é a maneira de se diferenciar dele, mostrar-se como uma alternativa?

Isso dá margem para tantas nuances interpretativas que prefiro avançar um pouco na tese inicial. Não importa o que aconteça com Mourão, um governo tão estreito como o de Bolsonaro certamente terá novas tensões internas, sobretudo pela ausência de uma forte oposição. Um efeito colateral dos confrontos entre alas do governo é o tiroteio contra as Forcas Armadas. O que se diz sobre os militares em posts e lives da direita, não se dizia nem nos panfletos da extrema esquerda no tempo da Guerra Fria.

Não me importo com textos que tentam interpretar o golpe de 64 como algo realizado pelos civis, muito menos com a afirmação de que os militares destruíram os políticos de direita.

O mundo da internet é recheado de interpretações, eletrizado por teorias conspiratórias. Por que perder tempo em desfazê-las?

As coisas mudam de figura quando os ataques às Forcas Armadas são postados na conta do próprio presidente da República.

É algo tão grave, em termos políticos, como a postagem do golden shower. Não creio que Bolsonaro compartilhe realmente da tese de que as Forcas Armadas no Brasil são uma nulidade. Todo os que viajam pelo Brasil podem testemunhar a ação positiva do Exército. Se quiser reduzir o aprendizado a duas situações, basta ir à fronteira com a Venezuela, ou mesmo às cidades mais secas do Nordeste, onde o Exército organiza o abastecimento de água.

Quem gosta de ler também pode ter acesso às obras que militares têm publicado. Outro dia, resenhei o livro do coronel Alessandro Visacro sobre “A guerra na era da informação”. Acabo de receber o livro “Direito internacional humanitário”, do coronel Carlos Frederico Cinelli. Um estudo sobre a ética em conflitos armados.

As Forcas Armadas não divagam sobre filosofia ou política, mas cuidam de temas ligados à sua atividade principal.

Quem escolheu um general como vice foi o próprio Bolsonaro. Tem de arcar com sua escolha. Se quiser trocar de vice, que o faça em 2022, se for candidato.

A comparação das fotos de posse de Fernando Henrique e Bolsonaro é sintomática. No carro de FH, Marco Maciel obcecado em ser discreto; no carro de Bolsonaro, a ausência. Em seu lugar, Carlos Bolsonaro, protegendo o pai.”

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Questão de DNA





“Questão de DNA

POR MERVAL PEREIRA

A disputa aberta de poder em que o vice-presidente Hamilton Mourão está envolvido, não por acaso, não tem paralelos históricos pela violência das palavras empregadas por Olavo de Carvalho e seus pupilos, entre eles Huguinho, Zezinho e Luisinho, como passaram a ser conhecidos no meio político os filhos de Bolsonaro, que ele denomina carinhosamente como 01, 02 e 03, como se recrutas fossem. 

São os seus recrutas, “ sangue do meu sangue”, e nada também acontece ali por acaso. Bolsonaro fala através de seu filho Carlos, o 02, especialista nas mídias sociais a quem Bolsonaro atribui grande parte de sua vitória. Quando Bolsonaro estava internado, depois da tentativa de assassinato que sofreu ainda na campanha eleitoral, Carlos já evidenciou o que achava de Mourão.

Tuitou afirmando que a morte do pai interessava não apenas aos inimigos declarados, mas a quem está por perto, principalmente após a posse. De lá para cá a disputa só fez escalar, inclusive porque Mourão assumiu o papel de moderador de um governo que vive de intrigas e embates permanentes como estilo de fazer política.

A paranóia familiar é alimentada pela história, pois nada menos que oito presidentes foram substituídos por seus vices desde o início da República, por motivos variados, desde a morte do titular até o afastamento por impeachment.

Desde o primeiro presidente, Deodoro da Fonseca, cujo vice Floriano Peixoto assumiu com sua renúncia e, em vez de convocar eleições, governou sob estado de sítio, até Temer, que, recusando o papel de “vice decorativo”, comandou uma conspirata política para assumir o lugar de Dilma, quando esta se enfraqueceu pelo fracasso econômico e se expôs ao cometer crimes de responsabilidade fiscal, a escolha dos vices sempre foi problemática.

Uma disputa aberta como a atual, mas não tão pouco sutil, aconteceu quando o general Figueiredo teve que viajar para a Clínica Cleveland para colocar pontes de safena. O político mineiro Aureliano Chaves assumiu o governo e fez o mesmo contraponto de Mourão em relação a Bolsonaro. Chegava cedo ao Palácio do Planalto, e saía altas horas da noite, a salientar a fama de preguiçoso de Figueiredo. O entorno do ditador não escondia a irritação, e acusava Aureliano de deixar a luz acessa no gabinete presidencial para dar a impressão de que trabalhava.

A eleição presidencial deste ano teve uma característica especial: o protagonismo de candidatos a vice. Os dois primeiros colocados nas pesquisas ficaram fora da campanha, um definitivamente, outro temporariamente. Lula por estar condenado em segunda instância por corrupção e lavagem de dinheiro, tornando-se inelegível pela Lei da Ficha Limpa. Bolsonaro por ter sofrido um atentado a faca que quase o matou.

Muitos consideravam alguns candidatos a vice melhores que os titulares, como era o caso de Mourão, que já chamava a atenção por declarações polêmicas, mas com a fala mansa e o jeito de quem desejava a pacificação política.

Admitiu intervenção militar mesmo fora da Constituição, falou até em autogolpe. Curioso é que sua escolha foi comemorada por Eduardo Bolsonaro, o 03, que disse que foi bom ter escolhido um candidato “faca na caveira” - referindo-se ao símbolo do Bope - para não valer a pena pensar em impeachment.

No discurso pouco antes de ir para a reserva, que lhe valeu uma advertência do comandante do Exército, general Villas Bôas, que ele chama de VB, seu amigo de infância, disse sobre o governo petista: “Os Poderes terão que buscar uma solução. Se não conseguirem, chegará a hora que nós teremos que impor uma solução”.

De lá para cá, Mourão vem afinando o tom, se aproximando do pensamento médio do cidadão de classe média, condenando a censura à imprensa, por exemplo,  ou avaliando que a saída do ex-deputado Jean Wyllys era ruim para a democracia, com bom-senso e sem a visão tosca do grupo bolsonarista comandado por Olavo de Carvalho, que chamou Mourão de “moleque analfabeto” ao ser definido pelo vice como “astrólogo”.

Perguntado recentemente sobre as razões dessa mudança, Mourão disse que se devia à compreensão do papel institucional do cargo para o qual foi eleito. Estar na vice-presidência pelo voto, aliás, foi citado por ele como uma diferença fundamental com os militares do período ditatorial.

Que, aliás ele não renega, dizendo que era um momento de guerra. E também, assim como Bolsonaro, considera o torturador Brilhante Ulstra “um herói”, embora tenha se abstido de falar no assunto ultimamente.”

quinta-feira, 25 de abril de 2019

De volta à senda da revolução





“De volta à senda da revolução
        
POR FERNÃO LARA MESQUITA

Não acabou tão mal a semana que começou com o decreto que mandava saber a quem interessar pudesse que “fake news” passava a ser uma condição que podia ser monocraticamente atribuída a qualquer fato que dissesse respeito aos membros do STF, o que não apenas restabeleceria a censura e a pena de morte por garrote vil financeiro contra jornalistas e empresas jornalísticas que não respeitassem as “Ordenações Toffolinas”, como, pior ainda, poria o STF acima de deus, como os reis da Antiguidade. Ainda bem que o resto do Brasil, inclusive o Oficial, que não anda lá com os pés tão firmemente plantados no chão ultimamente, ainda está voando bem mais baixo que o sr. Toffoli e seu menino de recados. Outra vez “under god”, agora só falta pôr o STF “under the law” para que o País volte a encontrar o seu limite e, a partir dele, reorganizar-se para seguir em direção ao menos da revolução democrática modelo século 18 que a minoria pragmática do governo Bolsonaro vem perseguindo.

Voltamos ao ponto de partida: a reforma da Previdência vai porque tem de ir, resta saber se reduzida a um par de gambiarras para comprimir os efeitos do passivo acumulado de “erros” (na verdade “acertos” dos bandidos contra os mocinhos), o que seria desperdiçar a longa caminhada desde 2013 que levou a dinastia lulista ao fim, ou se vai endereçar o futuro do Brasil confirmando o sistema de capitalização – o fim final da privilegiatura – como porto de chegada. A esperança de que o Brasil possa considerar a hipótese de vir a ser mais que um quase continente em fainas para pagar os proventos da nobreza estatal ainda não morreu, portanto. Podemos voltar a pensar nos fundamentos, sem a alteração dos quais não iremos a lugar nenhum.

Com o presidente da República sempre fiel à sua disposição de fazer mais concessões às reivindicações de China e Dedeco, dos caminhoneiros, que às de Paulo Guedes, do Brasil, a Petrobrás, outra vez cheia de si, ensaia a reação contra o fim do monopólio do gás e os ministérios da Ciência e Tecnologia, da Agricultura, das Minas e Energia, da Infraestrutura e todos os outros rabos do governo com uma estatal para chamar de sua organizam abertamente a resistência contra as privatizações. Com o mercado a ponto de abandonar de vez a esperança de que o sonho de Paulo Guedes seja aqui, uma trégua foi estabelecida em torno do velho padrão “o que é que dá para fazer com a febre, excluída a única solução que cura a doença”.

A democracia 4.0, da virada do século 19 para o 20, uma etapa com repercussões revolucionárias muito mais profundas que as desencadeadas pela muito mais festejada democracia 3.0, cujo marco inicial foi o “We the People” da Constituição americana de 1788, entrou em cena como uma revolta popular contra o poder dos monopólios estruturados pelos “robber barons”, os Odebrechts e “ésleys” lá deles, em torno da novidade da “ferroviarização” da economia norte-americana. É claro que lá jamais se cogitou da hipótese suicida de entregar a quem já controla as Forças Armadas monopólio algum, muito menos sobre insumos básicos de toda a economia. Mas em menos de cem anos em vigor, a Constituição, com a divisão dos Poderes do Estado e toda a parafernália dos “checks and balances”, se tinha provado impotente para lidar com a súbita transformação de uma sociedade agrária numa sociedade industrial urbana totalmente desprotegida, do ponto de vista institucional, contra a mistura explosiva dos efeitos da descoberta dos ganhos de escala resultantes das fusões e aquisições de empresas que confirmavam a concentração da propriedade como uma tendência inevitável da economia moderna e a blindagem de políticos corruptos no mínimo durante os quatro anos de duração dos seus mandatos.

No duro debate que se seguiu, com todas as partes alegando a “defesa de princípios” para não alterar o status quo, Theodore Roosevelt chegou à síntese estruturada em cima da consideração de que o direito à propriedade privada não foi instituído para recompensar o amor às riquezas naturais ou ao capital, mas como um instrumento para o progresso da civilização e o engrandecimento do homem ao promover a igualdade de oportunidade pela garantia dada a todos de acesso ao produto do seu esforço individual. A partir dela ficou liberado o raciocínio de que, quando estiver claro o conflito entre o direito de propriedade e os direitos humanos, estes devem ter a primazia, desde que se não perdesse de vista a constatação pragmática de que, para além do blá-blá-blá, os homens exercem a sua liberdade é na sua condição de produtores e consumidores que podem escolher seus patrões e seus fornecedores, sem a qual nenhum outro “direito” pode ser garantido, do que decorre que o Estado democrático só pode intervir na economia para aumentar, jamais para reduzir a competição.

Era preciso, portanto, estabelecer firmemente a soberania do consumidor. Como o gigantismo dos monopólios dos “robber barons” não era só resultado de competência, mas também da corrupção e da compra de proteção e vantagens indevidas a políticos corruptos, a bandeira geral do movimento foi a da guerra contra o privilégio. Dada a diretriz moral, restava o problema de como transformá-la em ação. O instrumento encontrado foi a instituição, por cima de todas as outras forças atuando sobre a ordem institucional, da soberania absoluta do eleitor. O alvo inicial de Theodore Roosevelt, o vice que a sorte pôs no poder nos primeiros dias do mandato de William McKinley, assassinado, era o direito ao referendo popular de sentenças judiciais que revogassem reformas aprovadas pelos legisladores eleitos pelo povo. Mas para conseguir a adesão do Partido Progressista, ele aderiu às bandeiras da retomada de mandatos (recall), das leis de iniciativa popular e do referendo das leis de iniciativa dos legislativos, e acertou redondamente no “errado”. Roubou a bandeira dos socialistas americanos, pôs o povo de fato no poder pela primeira vez na história do mundo, e mudou para sempre a humanidade inteira de prateleira.”

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Brasil vai bem em ranking da felicidade, mas...





“Brasil vai bem em ranking da felicidade, mas...
        
 POR ROBERTO MACEDO

A Organização das Nações Unidas (ONU) publicou recentemente seu Relatório sobre a Felicidade Mundial de 2018. Ele vem com a ressalva de que foi redigido por especialistas atuando de forma independente da ONU e, assim, não necessariamente representa a opinião dessa entidade.

Entre os editores e autores do texto, o mais conhecido é o economista Jeffrey D. Sachs, ex-professor da Universidade Harvard (EUA) e atual diretor do Centro para o Desenvolvimento Sustentável da Universidade Columbia (Nova York). Na ONU dirige a Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável. Sachs tem prestígio internacional e em meados dos anos 1980 atuou na Bolívia assessorando o governo local no combate à hiperinflação que lá existia.

Desta vez o relatório foi especialmente focado no tema da migração, de interesse internacional, e em saber se os migrantes, tanto internacionais como os do campo para as cidades, alcançam vida mais feliz. Mas, seguindo relatórios anteriores, logo no início apresenta e analisa seu tradicional ranking dos níveis de felicidade dos residentes, nativos ou imigrantes, de cada país, com base em amostras de mil pessoas por ano, e valores médios dos indicadores utilizados que cobrem o período 2015-2017. Abrangem 156 países alcançados pela Pesquisa Mundial Gallup, a cargo da empresa que tem esse nome.

A felicidade é avaliada inicialmente por seis indicadores, dois deles objetivos, o produto interno bruto (PIB) por habitante e a expectativa de vida, e quatro subjetivos. Ou seja, que dependem da avaliação pessoal: o apoio social, na forma de ter com quem contar em caso de problemas, a liberdade de escolhas ao longo da vida, a generosidade avaliada pela realização de doações e a percepção da existência de corrupção no governo e no mundo dos negócios.

Há também um sétimo indicador, chamado de distopia – o contrário de utopia –, relativo um país hipotético com os valores mais baixos dos outros seis, a cuja média é somado, em cada país, o erro da previsão, para cima ou para baixo, derivado de uma função que estima os pesos que aqueles seis indicadores iniciais têm na felicidade total. A ideia é que esse erro ou resíduo representa o que essa função ou modelo baseado nas seis primeiras variáveis não explicou em cada país, com o que sua adição ao ranking completa o valor médio observado nas avaliações do modelo utilizado.

Complicado, não? Tecnicalidades como essa são inevitáveis num estudo como esse, quantitativo e de um tema tão multifacetado como a felicidade. Não tenho espaço para me estender sobre a distopia, nem interesse, pois o meu se concentrou em examinar a posição do Brasil relativamente a outros países, como essa posição se sustenta e como evoluiu relativamente a um levantamento anterior, mencionado mais à frente.

No relatório de 2018 os dez países mais felizes são Finlândia, Noruega, Dinamarca, Islândia, Suíça, Holanda, Canadá, Nova Zelândia, Suécia e Austrália. Todos ricos, ou seja, ter dinheiro ajuda muito na felicidade, ainda que até certo ponto, conforme pesquisas que já vi sobre o assunto. Na outra ponta da lista de 156 países estão Malavi, Haiti, Libéria, Síria, Ruanda, Iêmen, Tanzânia, Sudão do Sul, República Centro-Africana e Burundi, todos pobres.

O Brasil aparece bem, na 28.ª posição. O usual é o País aparecer em posições intermediárias em levantamentos sobre questões objetivas. Por exemplo, no ranking de PIB per capita medido em termos de poder de compra, da CIA, a agência de inteligência dos EUA, abrangendo 229 países com dados próximos de 2017, o Brasil aparece na 110.ª posição. Portanto, essa 28.ª posição brasileira no ranking de felicidade deve ter sido determinada pela expectativa de vida, em que fica acima da média, e principalmente pelos fatores subjetivos citados.

Na minha avaliação, o Brasil não merece a boa posição em que ficou, pois as coisas por aqui não estão bem a ponto de justificá-la, saindo-se melhor do que países como Portugal, Espanha e Japão. Creio que isso tem que ver com aspectos culturais, como uma avaliação qualitativa a partir de expectativas muito baixas, com o brasileiro contentando-se com condições de vida muitas vezes precárias. E há também falhas no acesso a informações sobre essas condições, em particular por questões educacionais, tudo isso demonstrando as dificuldades de avaliações subjetivas. Estrangeiros que vêm ao Brasil também costumam apontar a cordialidade do povo brasileiro, um sintoma de sua felicidade subjetiva.

Aqui o noticiário sobre esse relatório não se voltou para uma questão importante, a de comparar a posição brasileira com a de relatórios anteriores. Quanto a isso encontrei o relatório de 2015, relativo ao período 2012-2014. Nele os dez primeiros colocados eram os mesmos países do relatório mais recente, com algumas mudanças de posição entre eles. Já nos dez últimos o grupo era outro, com exceção de Síria, Ruanda e Burundi, que permaneceram, juntamente com Chade, Guiné, Costa do Marfim, Burkina Faso, Afeganistão, Benin e Togo.

Nesse levantamento o Brasil estava na 16.ª posição. Portanto, caiu 12 posições no relatório de 2018. Creio que isso reflete principalmente o efeito da crise econômico-social que desde o final de 2014 vem afetando o País. Tive a curiosidade de olhar a Venezuela. Estava em 23.º no levantamento mais antigo e caiu para 102.º no mais recente. Nicolás Maduro, mestre em fazer seu povo infeliz, governa desde 2013.

Assim, mesmo para quem admitir que o Brasil merece a boa posição que ocupa nesses dois rankings de felicidade, essa queda deve ser mais um motivo de preocupação e de engajamento na luta para que nossas condições de vida melhorem, sejam elas avaliadas objetiva ou subjetivamente. No passo atual, a perspectiva é de piora.”

terça-feira, 23 de abril de 2019

A virtude do silêncio





“A virtude do silêncio
        
Por Leandro Karnal

Benjamin Moser cita (faço sem consultar o texto lido há alguns anos) que Clarice Lispector foi convidada para um jantar com um conhecido. O anfitrião, desconhecendo a pouca afeição da autora à sociabilidade, convidou outro casal. Na saída, irritada, a mais brasileira das ucranianas disse que não sabia que haveria muita gente à mesa. O episódio aqui mal citado de memória remete ao conto O Jantar, da mesma Lispector, traz o trivial relido sob a subjetividade de um observador. Aparentemente, o conto parece indicar uma pessoa, Clarice, mais feliz em observar alguém jantando do que em participar de uma refeição como comensal ativa.

Ela ficava atormentada com a presença de muita gente. Entendo-a. Infelizmente, não posso ter a justificativa dela de ser tão brilhante na percepção do indizível que a algaravia externa atrapalhe. Uma mulher genial como Clarice pode dizer: “Não fiquem conversando comigo, pois estou criando A Paixão Segundo GH”. O mundo se calaria com respeito similar aos milaneses que, diante do prédio onde o compositor Verdi convalescia, colocaram feno nas ruas para que as carruagens e cavalos não perturbassem a enfermidade grave do criador de melodias da Traviata. Para Clarice e Verdi, teríamos o obséquio da mudez. Gênios podem ser chatos, misantropos isolados para que saia a obra definitiva e impactante. Nós? Seremos apenas chatos ao querer silêncio ou isolamento.

O mundo oferece sístoles e diástoles sociais, como um coração. Expande-se ou contrai-se o órgão, cumprindo suas funções vitais. A função pública, a vida em meio a grupos, palestras e aulas e todo o processo expansivo, faz parte de algo natural e até desejável. As ocasiões sociais ensinam, introduzem novas pessoas e desafiam no sentido positivo. Acho que, com o tempo e a personalidade, tendemos a querer um pouco mais de isolamento.

Li que os finlandeses valorizam muito o silêncio, que só deveria ser quebrado em um transporte público tendo em vista mal iminente. A notícia me faz desejar Helsinque como alguns anelam Paris. Imagino um ônibus onde eu esteja imerso em um livro e ninguém, jamais, nunca tenha a ideia de perguntar se o livro é bom. Essa questão, para mim, é similar a interromper um casal no meio de uma relação erótica e pedir aos envolvidos uma avaliação minuciosa do momento e se recomendam alguma carícia em particular.

Sou colocado em uma sala esperando uma palestra ou outro evento. De repente chega alguém, compadecido da minha solidão, e decide que seria gentil ficar comigo conversando. Sou bom em conversa rápida com pessoas desconhecidas. É um treino de anos. Etimologia do nome da pessoa, dados familiares, pequenas questões sobre algum símbolo ou joia que o interlocutor esteja usando, comentários interessantes para preencher o silêncio e o vazio. A questão é que o vazio não precisa ser preenchido porque ele não é ruim. O silêncio externo aguça o interno. Tenho saudade dos Exercícios de Santo Inácio de Loyola, um mês de retiro em quase total silêncio. A ordem religiosa dos trapistas e seus prolongados períodos de silêncio também me animam muito. Li o grande trapista Thomas Merton prestando atenção se a sabedoria dele era fruto do que ouvira ou do que calara.

Sim, querida leitora e estimado leitor: gosto de companhia e de conversas. Tal como Harold Bloom, confesso que é difícil a competição entre o mundo descrito nos livros e as conversas em geral.

O coração funciona entre aberturas e fechamentos. Retraindo e expandindo, ele cumpre sua missão. Surgiu uma categoria nova de silêncio: o dos celulares. Nada falo, mas fico digitando e tagarelando pelos dedos. Pior, preguiçosos em geral adoram gravar mensagens de voz, algo que abomino profundamente. Alguém pode ser um gênio e dizer que não deseja muitos convidados. É o silêncio brilhante da Clarice. Alguém pode transmutar-se em místico denso e fascinante como um trapista. É o silêncio de Merton. Por fim, alguém pode dizer a um político desagradável ¿Por qué no te callas? É a vontade de silêncio real de Juan Carlos. Gênios, santos e reis podem adotar ou impor o silêncio. Nós, mortais atarefados ou entediados, temos de falar e de ouvir sempre. Nosso laconismo não é adornado pelo QI extraordinário, pela coroa da glória celeste ou pelo diadema real das Espanhas. Porém, caberia aqui o desejo utópico de um botão on e off sobre o barulho circunstante? Não apenas conversas, mas gente vendo vídeos sem fone de ouvido no avião, pessoas narrando seu cotidiano de um desesperador tom sépia e, por fim, sibilar de vozes gravando ou ouvindo longuíssimos trechos narrados ao celular...

O mundo é um lugar barulhento. Dizem que os anjos cantam hosanas sem cessar no céu. O inferno, afirma-se, tem o som forte de choro e ranger de dentes. Haveria um espaço sem barulho algum? Teremos de buscar na Finlândia esse paraíso terreal repleto da paz imperativa do silêncio? Ruas sem buzinas, salas sem celulares, aeroportos sem avisos e o débil som das folhas do outono caindo, farfalhando, tênues e poéticas. O que será que ouviríamos se não fôssemos todos algozes do frágil silêncio? É preciso ter esperança.”

segunda-feira, 22 de abril de 2019

A falta que a política faz





“A falta que a política faz
        
Por Fernão Lara Mesquita

Além das seguidas capitulações espontâneas do presidente, o que mais tem comprometido a reforma da Previdência é a “embriaguez da onipotência numérica” vivida pela família Bolsonaro. Trata-se de uma confusão que decorre do encantamento com a contagem de números absolutos revelados pelo súbito destampar de panelas há muito forçadamente lacradas, operado pelo aprendizado no uso das redes sociais, que tem levado a trágicos erros de avaliação política pelo mundo afora, da Primavera Árabe em diante.

Depois do salto proporcionado pela ânsia do Brasil de se livrar da venezuelização que elegeu Bolsonaro, as pesquisas indicam uma volta da opinião pública ao leito da normalidade. Cada vez mais as manifestações de radicalismo só repercutem no gueto da direita incondicional, que não precisa ser conquistada, pois já é e nunca deixará de ser dele, assim como os 30% da esquerda incondicional foram do PT e são hoje dos seus sucedâneos. Para tudo mais elas só prejudicam. Como chegar a 308 deputados (partindo dos atuais 190) mais 49 senadores que a reforma requer carimbando qualquer conversa com eles como “prova” de corrupção?

A próxima parada, diz Paulo Guedes, é o Novo Pacto Federativo que reservará 70% do dinheiro dos impostos para Estados e municípios e 30% para a União. A distribuição do dinheiro dos impostos em consonância com a quantidade de assistidos por cada ente de governo, entretanto, é produto, onde ocorre, de um arranjo político revolucionário, e não o contrário. Na repartição do que quer que seja a parte do leão fica com quem tem o poder. É uma lei da natureza. Logo, para inverter a distribuição do dinheiro é preciso antes pôr o povo no poder.

O federalismo foi o arranjo institucional que deu consequência prática a essa inversão. A fórmula que criou governos dentro de governos, cada um deles soberano na sua esfera de atuação, mas dividido em três Poderes encarregados de filtrar as decisões uns dos outros, foi, pela primeira vez na História da humanidade, uma teoria criada para ser posta imediatamente em prática estritamente dentro da característica pragmática da cultura anglo-saxônica. Não para “criar uma nova humanidade”, à latina, mas para resolver um problema específico: como montar um esquema funcional para transferir o poder do monarca absolutista humano para o conjunto da população, também humana, e evitar o retorno à condição anterior de opressão, agora por uma maioria. Esse o ponto a que chegou a Democracia 3.0, modelo século 18, que nós nunca alcançamos. E não foi suficiente. Ele teve de evoluir, no século 20, para a Democracia 4.0, que pôs o indivíduo reinando soberano sobre todas as outras soberanias ao reforçar dramaticamente os poderes dos eleitores antes e depois do momento das eleições, com os direitos de cassar mandatos a qualquer momento, dar a última palavra sobre as leis que se dispõem a obedecer e submeter até os juízes, periodicamente, à confirmação do seu beneplácito. Pôr o carro adiante dos bois com um eleitorado inteiramente desarmado e legalmente proibido de defender-se contra a violência legislativa e regulatória dos donos do poder (como nos querem até em relação à própria vida os radicais desarmamentistas) só levará a uma multiplicação desastrosa dos focos de corrupção.

A maior dificuldade para arrumar o Brasil não está no confronto entre visões divergentes, está em formular uma visão divergente de fato, coisa que não poderá ser aprendida na práxis política corrente, que, pela direita e pela esquerda, vive da distribuição de pequenos privilégios. Vai requerer um longo mergulho no estudo da teoria política, assunto hoje anatemizado como sintoma de propensão à corrupção, e da história da evolução da democracia, pois em todos os países os problemas foram os mesmos que enfrentamos e muitos conseguiram superá-los. Não é preciso reinventar a roda. A questão é como fazer isso num país que socializou o pequeno privilégio numa extensão inédita no mundo e todos amam o seu, cujas escolas ou estão destruídas, ou estão censuradas pelo aparelhamento ideológico, o que nos leva ao outro grande foco de ruídos dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro.

Nas democracias de DNA saxônico vigora um princípio que explica a resiliência delas e tem tudo que ver com federalismo. O controle da educação deve ficar o mais longe possível de quem já tem o controle da força armada, explicitamente como elemento básico de prevenção contra a sede insaciável de mais poder que todo poder tem.

De fato não faz nenhum sentido, senão como instrumento de perpetuação no poder, que num país continental cheio de itaocas e de megalópoles plantadas em realidades culturais, geográficas e de vocação econômica radicalmente diversas umas das outras, um único órgão centralizado, como o MEC, imponha o mesmo currículo e os mesmos métodos pedagógicos para todo mundo em todos os níveis de educação. Por isso, naquelas democracias, o controle das escolas públicas não fica sequer na mão do poder municipal, fica a cargo da menor unidade do sistema, os conselhos (school boards) eleitos por cada bairro entre os pais dos alunos que frequentarão aquela escola. Com sete membros com mandatos de quatro anos desencontrados, metade eleita a cada dois anos, são esses boards que contratam os diretores de cada escola pública e aprovam (ou não) os seus orçamentos e os seus programas pedagógicos.

Um conjunto de “distritos escolares”, o primeiro elo do sistema de eleições distritais puras, único que cria uma identificação perfeita entre os representantes eleitos e cada um dos seus representados permitindo o controle direto legítimo e seguro de uns sobre os outros, constituirá um distrito eleitoral municipal. Uma soma destes fará um distrito estadual, um conjunto dos quais dará um dos distritos federais que elegerão os deputados do Congresso Nacional.

A política, o patinho feio de todo o drama brasileiro, não pode, portanto, ser o último fator a ser considerado. Se for para curar o País, terá de ser o primeiro.”

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Conceitos de política





“Conceitos de política
        
POR DENIS LERRER ROSENFIELD

O ambiente político não anda conturbado tão somente por razões acidentais ou de inexperiência dos atores políticos, mas tem uma causa mais profunda, consistente no modo de compreensão da política. O atual governo age segundo um conceito de política baseado na oposição amigo/inimigo, em que o outro é visto como alguém que deve ser desqualificado e aniquilado. Outro conceito de política residiria na consideração do outro enquanto adversário, suscetível de ser convencido, e não suprimido. Denominemos o primeiro conceito de política de totalitário e o segundo, de democrático.

Totalitário porque foi elaborado por um teórico do nazismo, Carl Schmitt. Segundo essa acepção, a esfera da política seria uma espécie de arena de luta até a morte entre amigos e inimigos. Os amigos são os que compartilham a mesma concepção, enquanto os inimigos são os que dela divergem. A crítica, nesse sentido, não é aceita, pois significaria uma espécie de rompimento da concepção vigente ou que está sendo imposta. Instituições que exigem a composição e a negociação, como Parlamentos, são, portanto, tidas por impróprias, decadentes ou corrompidas.

Transplanta-se, assim, para esfera da política a lógica militar da guerra. Nesta, exércitos se enfrentam buscando a derrota do outro, impondo-se o poder da força. Tal acepção vale também em casos de guerra civil, quando, na ausência de composição interna, as forças contendoras entram em conflito aberto, recorrendo às armas. A política fica a reboque de sua acepção militar.

O conceito democrático de política, por sua vez, foge do conceito de guerra ao inimigo, pautando-se pelo reconhecimento do outro como detentor de igualdade política. Não está em seu escopo o aniquilamento do outro, uma vez que sua forma de atuação reside na instituição parlamentar, na separação de Poderes e na liberdade de opinião e expressão. Eis por que a democracia representativa preza as instituições que são espaços de negociação, de convencimento e, mesmo, de judicialização das divergências.

A política bolsonarista, em seu período eleitoral, regeu-se por essa acepção excludente da política, usando e abusando da retórica do inimigo a ser desqualificado, cuja forma mais significativa foi o emprego da oposição “nova/velha política”. A “nova” seria a dos virtuosos, dos não corruptos, dos bons, que se oporiam a todos e a tudo que está aí. Os políticos e os partidos foram, então, tidos por algo a ser desprezado e posto de lado. Nesse sentido, as redes sociais foram um instrumento particularmente adequado, pois dados a sua economia de palavras e o seu modo de expressão, prestam-se, particularmente, ao enfrentamento e ao ataque. Elas funcionariam segundo a oposição amigo/inimigo.

Observe-se que a política petista empregou idêntico conceito de política. Lula utilizava a mesma oposição amigo/inimigo sob a forma das oposições excludentes, entre “conservadores e progressistas”, “direita e esquerda”, “nós e eles”. Atente-se para o conceito de política que ganha essas diferentes formas narrativas, que foram o sustentáculo dos governos petistas. Lula tinha incomensurável desprezo pelo Congresso, pelos partidos e pelos parlamentares. Ora eram picaretas, ora companheiros de negociatas.

No governo, pautado por instituições democráticas, o presidente Bolsonaro seguiu predominantemente a utilizar o mesmo conceito de política que lhe tinha sido tão benéfico na campanha eleitoral. Seu grupo próximo, constituído de civis, continuou empregando as redes sociais da mesma maneira, terminando por produzir conflitos incessantes com políticos e partidos. Evidentemente, estes não se reconhecem nessa forma de fazer política, uma vez que são considerados representantes da “velha política”, como se fossem, por isto mesmo, desqualificados e corruptos. O resultado é palpável: o governo não consegue negociar e, portanto, não avança em suas pautas reformistas na esfera legislativa.

Ora, a negociação faz parte da atividade parlamentar e executiva, é uma forma específica de fazer política, no Brasil e alhures. Não há nada de ilícito em que um parlamentar negocie recursos para a sua base eleitoral, sob a forma de creches, postos de saúde e escolas. O problema está no desvio desses recursos para o bolso do parlamentar, questão que pode ser equacionada com uma fiscalização eficiente.

Acontece, todavia, que a narrativa bolsonarista identifica a negociação com algo a ser descartado. Tal política enquadra-se, sobretudo, em sua pauta conservadora, baseada em fundamentos religiosos. Ela se torna propícia para a oposição entre amigos e inimigos, sob a forma dogmática dos bons e dos maus, dos virtuosos e dos pecadores.

Do mesmo modo, o teórico dos bolsonaristas, Olavo de Carvalho, conforme a sua teoria mundial conspiratória, está sempre procurando inimigos para serem desqualificados, na medida em que essa concepção vive da reiteração de tal oposição. O desprezo pela pauta liberal no campo moral e econômico é sua consequência natural. Volta-se para o velho nacionalismo, contra a ideia liberal de globalização, como se a pauta conservadora devesse ter o primado sobre a reformista. Daí surgem as posições antiestablishment, como se a narrativa governamental devesse ser a de uma mobilização constante da sociedade, em que os amigos e os inimigos, os bons e os maus estariam perpetuamente se enfrentando.

Os militares no governo Bolsonaro estão sendo um exemplo de moderação e ponderação. São abertos à negociação e à composição, mostram-se firmes partidários das instituições democráticas. Note-se que, por formação, estariam mais propensos a adotar a política como forma de oposição entre amigos e inimigos, uma vez que essa é a forma da guerra para a qual foram e são treinados. Ou seja, é um grupo de civis que segue a lógica da guerra, enquanto os militares seguem a lógica civil da democracia.”

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Uma Lava Jato para a educação?





“Uma Lava Jato para a educação?
        
POR JOSÉ GOLDEMBERG

Uma das mais surpreendentes propostas de membros do novo governo da República é a de começar a enfrentar os notórios problemas da educação no País por meio de uma investigação do tipo da Lava Jato. Essa investigação, graças à coragem e firmeza do então juiz Sergio Moro, teve sucesso em identificar a corrupção na administração pública e em estatais – principalmente na Petrobrás –, que teve sérias consequências no desempenho dessas empresas.

Contudo atribuir à corrupção todos os males da República e a profunda recessão econômica que o País atravessou é um exagero. O que provocou a crise foi a adoção de políticas equivocadas e demagógicas, que causaram danos às empresas públicas e ao País muito maiores do que as comissões cobradas por corruptos para enriquecimento pessoal ou para alimentar campanhas políticas.

Um exemplo na área de educação é o programa Ciência Sem Fronteiras, do governo Dilma, em que foram gastos mais de R$ 10 bilhões enviando ao exterior milhares de estudantes despreparados e pagando às universidades estrangeiras elevadas taxas de inscrição. Esse programa ignorou o profícuo trabalho que o CNPq e a Capes fazem há muitos anos no envio de estudantes de pós-graduação e pesquisadores ao exterior. Não houve corrupção no programa, ao que se saiba, mas ele provocou sérios prejuízos desvirtuando o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, que afetou todas as atividades de pesquisa no País.

É por essa razão que tentar melhorar a educação brasileira procurando “culpados” pelos problemas que enfrenta tem um caráter policialesco primário que pode produzir manchetes nos jornais, mas não vai resolvê-los.

Não há grandes obras que interessem aos empreiteiros no Ministério da Educação, que gasta mais de 90% dos seus recursos com salários, a maior parte nas universidades federais. O Ministério da Educação é, na prática, um “ministério das universidades”, tendo abandonado, na prática, o ensino fundamental e o médio, que são de responsabilidade dos municípios e dos Estados, mas que não conseguem fazê-lo de maneira adequada.

Atualmente, mais de 25% dos recursos da União, dos Estados e municípios são, por dispositivo constitucional, destinados à educação em todos os níveis (pré-escola, ensino fundamental, médio e superior). Esses recursos são vultosos, cerca de R$ 500 bilhões por ano, e aumentaram substancialmente desde o ano 2000. Representam cerca de 5% do produto bruto nacional, o que é igual ou até mais do que a fração que os outros países colocam em educação, mas, evidentemente, não resolveram os problemas: apenas cerca de metade dos jovens que ingressam no ensino fundamental aos 7 anos chega ao ensino médio aos 15 anos; destes apenas 60% chegam ao fim do ciclo aos 18 anos.

A baixa renda das famílias brasileiras obriga muitos jovens a abandonarem a escola para trabalhar. Este é um verdadeiro genocídio aplicado aos jovens do nosso país. Os problemas do ensino fundamental refletem-se no acesso às universidades públicas. A maioria tem de ir para universidades privadas, que cobram altas mensalidades. É isso que dá origem aos problemas com cotas e toda uma falsa discussão sobre equidade social no País.

A quase totalidade dos recursos é gasta com pessoal, mas o salário médio mensal dos professores do ensino fundamental e do médio é cerca da metade do que ganham profissionais em funções comparáveis em outras atividades. Não é de surpreender, portanto, que a carreira docente nesses níveis não seja atrativa do ponto de vista salarial. Isso tem consequências sérias, porque levou ao desprestígio da profissão de professor, que foi elevada no passado, quando o sistema educacional era muito menor.

O que fazer, então, em curto prazo para melhorar a educação fundamental com os orçamentos limitados dos Estados e municípios, já que dificilmente eles poderão aumentar a não ser retirando recursos de outras áreas também carentes, como saúde e segurança?

Só a racionalização no uso dos recursos e a melhoria das condições da economia poderiam fazê-lo.

Apenas para dar um exemplo, no Estado de São Paulo a evolução demográfica mostra que seria possível aumentar o número de alunos por sala de aula. O número de jovens que frequenta a escola fundamental no Estado caiu à metade, de 3,8 milhões para 1,9 milhões, do ano 2000 para 2017, mas o número de professores manteve-se praticamente o mesmo. Além disso, muitos se encontram em licença médica ou fora das salas de aula, nas áreas administrativas da secretaria, que é uma forma de melhorar sua situação salarial o que não beneficia o aprendizado dos alunos.

Aumento salarial geral para os professores, que é a reivindicação permanente dos sindicatos, só pode dar resultados positivos na melhoria do ensino se for associado ao desempenho dos professores. Experiências em outros países onde apenas os salários dos professores foram aumentados significativamente não melhoraram o aprendizado.

Medir esse desempenho é tarefa complexa, como experiências prévias em outros países indicam. Existe, porém, uma variedade de instrumentos para fazê-lo, como a observação da qualidade das aulas, entrevistas pessoais, relatórios do diretor da escola, pesquisas com os alunos e as famílias e até autoavaliação. Isso foi feito no Chile, no Equador, no México e no Peru com excelentes resultados. Nesses países o aumento salarial foi feito associando aumentos ao desempenho dos alunos e professores.

Não é a busca por corrupção ou uma mudança cosmética dos currículos que vai resolver os problemas educacionais no País. É na gestão do sistema que está o problema, e não na procura de culpados ou em discussões filosóficas sobre teorias educacionais.”

quarta-feira, 17 de abril de 2019

O tempo de Bolsonaro





“O tempo de Bolsonaro

Por William Waack

No universo da física newtoniana no qual vivemos o tempo tem uma medida padrão igual para todo mundo. Não é a que vale para os cem dias de Jair Bolsonaro na Presidência. O tempo da política nem sempre combina com a duração das unidades do tempo cronológico. Para o atual governo, o tempo subjetivo correu muito mais rápido.

Essa rapidez na passagem do “tempo político” é em função de dois fenômenos separados, mas que andam de mãos dadas. Um é o grau de expectativa do público em geral frente ao governo que prometeu mudar o País em prazo recorde. O outro é o grau de intolerância e descrédito com que o mesmo público em geral encara a política. Jair Bolsonaro incentivou e continua incentivando os dois fenômenos.

Não adianta, como integrantes do governo tentam, enumerar medidas, decretos, projetos, propostas ou nomeações como forma de “provar” que as coisas andaram rápido. Nem adianta se queixar de “impaciência” por parte de milhões de pessoas que abraçaram a forte ilusão, reiterada em campanha eleitoral, segundo a qual o capitão resolveria logo o pelotão de problemas.

Serve menos ainda no atual ambiente político argumentar – tema recorrente nas redes sociais mantidas em estado de permanente efervescência – que o governo herdou um País arrebentado por sucessivas administrações perdulárias. E que dez, ou 20, ou 30 anos de incompetência não se revertem em uns três meses. É como esperar que o apego subjetivo e emocional à esperança de mudança imediata seja transformado numa postura calma e racional por quem grita há meses “temos de acabar com tudo o que está aí”.

São conhecidos e foram tratados exaustivamente por toda parte os problemas do governo para lutar na batalha da comunicação, na articulação política para aprovação de reformas, na coordenação de suas prioridades, no estabelecimento de estratégias, na escolha entre as diversas (e até antagônicas) forças políticas que o sustentam – nisso incluindo a personalidade do presidente e a influência aberta ou velada de entes familiares que o cercam.

Em parte as dificuldades resultam de frases de campanha eleitoral que se transformaram em armadilhas conceituais. A principal delas é a diferenciação, totalmente falsa, entre “velha” e “nova” política, quando o que existe é política, à qual pode se dedicar um governante com maior ou menor competência. Em parte as mesmas dificuldades resultam do famoso “modo negação”: é quando o governante, relutando em enfrentar os dados da realidade, atribui a um sujeito oculto ou a uma nebulosa conspiração os obstáculos que não consegue superar (como articular eficientemente uma base de apoio no Legislativo, por exemplo).

Mas talvez a maior dificuldade tenha sido encarar o fato de que o tempo, especialmente o psicológico, mas também o cronológico –, está trabalhando contra, e não a favor do capital político conquistado com a vitória eleitoral em 2018. Há uma urgente necessidade de se atacar questões de curtíssimo prazo e enorme impacto, como a da reforma da Previdência, que não parece refletida na organização e coordenação dos esforços políticos do governo – notório, até aqui, em dissipar parte da energia em temas irrelevantes para lidar com um sufoco como o da crise fiscal.

Um dos efeitos – positivo do ponto de vista da necessidade de aprovação de reformas estruturantes – desse período inicial de impaciência e franca intolerância é a mobilização de várias camadas de elites (política, militar e empresarial) para dar um sentido e direção práticos ao que o governo prometeu fazer e, na percepção generalizada, está gastando tempo subjetivo demais. É a promessa de libertar um país de suas próprias amarras.”

terça-feira, 16 de abril de 2019

Chicago, Chicago





“Chicago, Chicago
        
Por Monica De Bolle

Prefiro a interpretação de Frank Sinatra à de Tony Bennett, embora esse artigo não seja nem sobre a música Chicago, nem sobre os crooners inimitáveis que a cantaram. Trata-se, ao contrário, de uma breve análise sobre o Brasil, o Chile, os Chicago boys, aquele grupo de missionários chilenos que tentaram transformar o Chile na imagem de Milton Friedman, vencedor do Nobel de Economia em 1976. Os Chicago boys andam na moda no Brasil por causa de Paulo Guedes, que estudou na mesma universidade dos missionários, apesar de não exatamente na mesma época. Andam na moda porque, no início dos anos 80 esteve Guedes no Chile por um tempo para ver de perto o milagre do tratamento de choque friedmaniano. Tão em moda andam que a Globonews apresentou ótimo programa recente intitulado Os Herdeiros da Escola de Chicago.

Nem todo o programa foi sobre o Chile e os Chicago boys, tampouco sobre Milton Friedman. Mas, uma parte foi dedicada ao país e a esses homens devido ao outro homem que hoje ocupa o ministério da economia. Milton Friedman, não há dúvida, foi espécie de gigante intelectual na economia. Em 1963 publicou com a economista Anna J. Schwartz um de seus principais legados, obra que analisava as crises bancárias norte-americanas, em especial a que ocorreu durante os anos 30. A grande contribuição dos dois foi apontar a insuficiência da resposta do banco central dos EUA, o Fed, que pouco fez para restaurar os canais de crédito e normalizar as condições financeiras, estendendo a crise muito além do necessário, com graves consequências sobre o crescimento e a taxa de desemprego. Essas e outras lições foram aprendidas por Ben Bernanke, dirigente do Fed durante a crise de 2008 e ele próprio um estudioso da Grande Depressão. Com Friedman e suas próprias pesquisas havia entendido que o banco central deve utilizar todo o arsenal à sua disposição quando há uma crise bancária sistêmica. Graças a ele – e a Milton Friedman antes dele – o impacto da grande crise de 2008 não foi ainda mais severo para os EUA e para o mundo.

Friedman, entretanto, ficou mais conhecido por suas teses a respeito daquilo que Ronald Reagan chamaria anos depois de “a magia dos mercados”: o conjunto de modelos que Friedman e coautores desenvolveram nos anos 60 revelava o poderoso papel que os mercados livres de interferências estatais poderiam desempenhar. Embora muitos até hoje tenham se agarrado a essas teses como exemplo de como a ciência econômica era algo que se desenvolvia sem qualquer contaminação política, o contágio era mais do que óbvio. Entre as décadas de 60 e 80 o mundo atravessava o auge da Guerra Fria e a necessidade de encontrar modelos que se contrapusessem ao estatismo soviético era mais do que urgente. Portanto, Friedman e seus seguidores foram influenciados pela busca por algo que pudesse representar o oposto econômico do ideário soviético. Encontraram no Chile dos anos 70 o laboratório ideal para pôr suas ideias em prática. Para lá foram os Chicago boys, grupo de economistas chilenos que haviam recebido bolsas de estudo para estudar com Friedman e outros economistas de linha ultraliberal. De volta ao Chile após o golpe de 1973, puseram as ideias para funcionar. Do tratamento de choque friedmaniano – forte ajuste fiscal, privatizações, abertura da economia, dramático corte do funcionalismo público – sobreveio, primeiro, uma contração do PIB de 13%, em 1975. Contudo, dois anos depois, a economia cresceria 10% com queda brusca da inflação e do desemprego. Foi mais ou menos assim até 1982 e 1983, quando o PIB do Chile encolheu 11% e 5%, respectivamente.

Com a brutal recessão e a alta do desemprego, os Chicago boys perderam prestígio e cargos no governo do ditador Augusto Pinochet. O desemprego só voltaria a ficar abaixo de dois dígitos novamente em 1995, dez anos mais tarde. A ironia de ter-se tentado aplicar o ultraliberalismo no mais opressor dos regimes é óbvia. As falhas das teses simplórias sobre o funcionamento da economia, também.

Hoje estamos rediscutindo no Brasil algumas dessas teses simplórias. É evidente que o ajuste fiscal é necessário, que privatizações são bem-vindas, que a abertura da economia é urgente, que o Estado é inchado. No entanto, os problemas brasileiros são bem mais complicados do que isso e a economia política da adoção de medidas e reformas não é para amadores. Caminhamos sem susto para o PIB potencial de 1,5% ao ano. E isso com reformas diluídas. Isso, no melhor dos casos. Isso com o nosso Chicago boy.”

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Justiça nota zero





“Justiça nota zero
        
José Nêumanne

Apesar de não haver batido o recorde da participação de cidadãos nas ruas, ocorrido nas manifestações de mais de milhão contra a má gestão do Estado e a favor da deposição da então presidente Dilma Rousseff entre 2013 e 2016, impressionou a multidão que foi à Paulista domingo contra o Supremo Tribunal Federal (STF) em geral e, em especial, seu ministro Gilmar Mendes. Fotos e vídeos circulando em perfis sociais não permitem definir quantos manifestantes se reuniram vestidos de verde e amarelo e empunhando bandeiras. Isso se deve parcialmente à preguiça de plantões de domingo e em parte ao desprezo que meios de comunicação e autoridade policial devotam à cidadania desorganizada e desamparada. Ao não prestar o serviço relevante à sociedade divulgando a contabilidade das massas indóceis a Polícia Militar deixa esses cálculos à mercê da parcialidade dos militantes que as convocam. E também revela o medo que seus chefes, da alta hierarquia no Estado, têm da indignação das pessoas que vão às ruas protestar – pânico que, por sinal, não disfarça um desdém criminoso.

No entanto, as imagens publicadas apenas na rede mundial dos computadores não deixam dúvida de que é notória a irritação que se espalha pela Nação ante a indiferença por seus anseios de parte da cúpula do Judiciário, que se esmera em sabotar e ridicularizar os esforços de agentes da lei. Estes veem seu longo e penoso trabalho se perder no latinório vulgar dos togados. Parte da explicação desse divórcio se explica, mas não se justifica, pela nomeação pelas autoridades, tratada com preguiça e desídia pelo Legislativo, de julgadores dos tribunais superiores, em especial do Supremo. Em exercício de mera demonstração de conta de padaria, constatei na semana passada, em artigo publicado no Estado, que, como está definido no título, Dos 11 do Supremo, só 2 são juízes concursados  (Página 2, 3/04/19). Nem é preciso fazer soma similar para revelar essa constatação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Tribunal Superior do Trabalho (TST) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Para refrear a tentação de quem, na certa, argumentará que assim a lei prevê, este autor avisa desde já que esta é apenas uma informação, sem adiantar juízo nenhum de valor. Serve tão somente para facilitar a compreensão do leigo – grei à qual este escriba pertence – em relação ao evidente divórcio existente entre sentenças lavradas por juízes jovens, bem preparados e em contato com a vida real de lar e rua e seu desmanche nos julgamentos de turmas e plenários das chamadas altas cortes, viciadas pelo corporativismo dos quintos (legais) de corporações profissionais ou funcionais com assento nos pináculos do Poder que se define como “justo”.

A atual composição do Supremo Tribunal Federal (STF) é o exemplo maior desse desajuste. O presidente Dias Toffoli foi reprovado em dois concursos públicos para a magistratura e subiu da condição de advogadinho do PT para advogadão-geral da União e daí para o ápice da carreira. Lula, que o nomeou, preencheu mais duas vagas com Cármen Lúcia e Lewandowski. Dilma, em um mandato e meio, mandou para o topo mais quatro (!): Fachin (que manifestou apoio à candidatura da petista), Rosa, Fux e Barroso, num total de sete pelo PT. Outros quatro chegaram ao ápice da carreira pelas mãos de Sarney, Collor, Fernando Henrique e Temer.

Nem sempre essa composição distorcida foi patrulhada pela turba. Esse ódio, ao contrário, foi destilado exatamente da lua de mel vivida entre o STF e a opinião pública durante o julgamento da Ação Penal 470, cognominada de mensalão pelo delator da devassa, Roberto Jefferson, dono do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de nossos dias. A popularidade gozada pelo relator do processo, Joaquim Barbosa, e a impopularidade com que o povão marcou o revisor, Ricardo Lewandowski, foram substituídas no momento em que a Operação Lava Jato começou a incluir tucanos entre seus denunciados, acusados e réus. Foi isso que fez Gilmar Mendes, que foi advogado-geral de FHC, acionar o dispositivo dos habeas corpus a granel. A atuação do procurador, que perdoa em vez de denunciar, como seria mais próprio de sua origem, chegou a extremos como o de desqualificar os ex-colegas em ações de combate à corrupção, jogando no lixo tradições judiciais ancestrais, tais como a renúncia ao julgamento por suspeição e a acusação insultuosa, genérica e indiscriminada sem nomes nem provas.

O conjunto da obra do mato-grossense inspirou o jurista Modesto Carvalhosa a encaminhar ao Senado em 14 de março um requerimento a seu presidente, Davi Alcolumbre (DEM-AP), para abrir um processo de impeachment contra ele. Como já jogou um balde de gelo na fogueira que poderia ser ateada no outro lado da Praça dos Três Poderes, o varão da fronteira terminou sendo no domingo 7 de abril o destinatário do recado da multidão na manifestação referida no início deste texto.

Carvalhosa, aliás, também é autor de proposta mais ambiciosa, pregando uma Constituinte exclusiva com mandatários impedidos de concorrer a cargos públicos até o cumprimento de uma quarentena. Esta teria mais efeito genérico do que o caso específico do tempestuoso ministro que se considera “supremo”. A falta de prática e o parti pris de advogados e procuradores, mais numerosos na atual composição, dada como a pior da História, poderia, por exemplo, ser substituída pelo tal “notório saber”, expressão constitucional vaga, que poucos senadores são capazes de entender por falta de prática, exigindo prestação de concursos públicos para a magistratura e, à falta disso, currículo equivalente ao cargo. Providência mais urgente seria a de pôr fim à vitaliciedade do posto, limitando-o, por exemplo, a um mandato dos senadores que os sabatinam: oito anos.

Nem a urgente revogação da “PEC da bengala”, outra forma de mudar ocupantes das cadeiras no STF, porém, bastará para garantir o caput do artigo 5.º da Constituição federal, que reza: “todos são iguais perante a lei”. O inciso LVII deste artigo preceitua que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” e tem provocado uma guerra em que ele é interpretado de forma elástica, tornando-se mais um deslize semântico do que um impasse jurídico.

Toffoli, Celso, Gilmar, Lewandowski e Marco Aurélio aceitam a leitura dos advogados que lutam para esticar as autorizações para prisão de condenados às calendas do “trânsito em julgado” (última sentença nas quatro instâncias existentes na prática na barafunda jurisdicional cabocla). Segundo o sofisma, “considerado culpado” significa “preso”. Contra ela votam Cármen Lúcia, Fachin, Fux, Barroso e Alexandre. Rosa concorda com os primeiros, mas, como os últimos, acha que jurisprudência não é publicação periódica para durar tão pouco. Há, ainda, quem lembre bem que “sentença penal condenatória” é dada após segundo grau, no qual decisão colegiada já define a natureza factual do delito, interrompendo a presunção da inocência e só restando ao condenado recursos de natureza processual.

Fala-se muito na eventual libertação de Lula com a provável vitória dos “garantistas”. E agora, adiada sine die a sessão marcada para 10 de abril, vem à tona mais uma prova de como os infindáveis recursos prejudicam as garantias do cidadão. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) confirmou a vitória do cantor João Gilberto sobre a Universal, que incorporou a EMI-Odeon, gravadora em que este gravou seus três primeiros LPs. Em setembro de 2018, João acusou o selo de ter esvaziado o patrimônio da EMI para não pagar o que lhe devia. O músico, apontado como o mais importante intérprete da Bossa Nova, vive em penúria e agora viu reconhecido seu direito à indenização que cobra. Esse valor mais do que bastaria para sanear as finanças do lançador de Desafinado. E o depósito dificilmente criaria qualquer dano ao patrimônio de uma empresa do porte da devedora.

No entanto, como lembrou no domingo 7 o colunista da Folha de S.Paulo Ruy Castro, “ainda cabe recurso e João Gilberto, 87 anos, terá de se transformar em Matusalém para ver os R$ 173 milhões que a Justiça determinou a seu favor.” Como se sabe, a contagem de tempo no livro mais lido de todas as eras não é igual à atual e a possibilidade de João atingir os 969 anos atribuídos ao filho de Enoque, pai de Lamaleque e avô de Noé é zero à esquerda, não os usados no título do texto de Ruy, Uma questão de zeros. Esta, na certa, é a nota que merece nossa Justiça em aplicação da igualdade de direitos entre um gênio da música brasileira e seu devedor.”