“Pacto, não,
doutor; divisão
Por José
Nêumanne
A República
Federativa do Brasil tem três Poderes, mas quatro chefes: os presidentes do
Executivo, Jair Bolsonaro, do Senado Federal, Davi Alcolumbre, da Câmara dos
Deputados, Rodrigo Maia, e do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Dos
quatro, por definição constitucional, três são eleitos pelo povo, o primeiro
pelo sufrágio direto da maioria dos eleitores, os dois seguintes pela votação
dita proporcional e a chancela de seus pares e o último por outorga de dois dos
outros: o chefe do governo, que o indica, e os senadores, que só aprovam a
indicação após sabatiná-lo.
Atualmente, este
Estado de Direito, que nunca foi perfeito, nem pode sê-lo pelo simples motivo
de que nada na obra humana alcança a completa perfeição, passa por tempestuosa
crise entre seus maiorais. Bolsonaro, sem talento nem jeito para a negociação
com os ex-colegas do Legislativo, no qual serviu à Pátria por 26 anos, trocou
estocadas de esgrima verbal com Maia por miuçalhas da rotina dos embates
políticos, em torneio retórico por uma reforma constitucional que nem ele
próprio tem certeza absoluta se deve ou não ser empreendida. Quando deputado da
oposição, foi contra. Na campanha presidencial pôs-se a favor pela
disponibilidade de contar com um economista liberal, Paulo Guedes, que apelidou
de “posto Ipiranga”. Na chefia do governo hesita entre o biralheco demagógico
do passado sem responsabilidade e o primado da necessidade, indispensável para
quem responde pela contabilidade pública.
Se tivesse o
mínimo gosto pelo complicado jogo de troca entre o governo e o Parlamento, o
capitão teria compreendido desde o início – e não fez a mínima questão de
aprender a lição – que não poderia escapar da urgência de entregar a agenda das
votações da Câmara a alguém, se não fiel, no mínimo, confiável. Não é o caso de
Rodrigo Maia, que já vinha de alianças heterodoxas abarcando a esquerda
pirotécnica e a direita de pouquíssima prática. Ainda assim, Bolsonaro
deixou-se levar no vai-da-valsa e cair na lorota de que o filho do ex-prefeito
César Maia seria melhor do que a opção que se apresentava àquele momento,
Marcelo Freixo. Um raciocínio elementar e uma audição capaz de ouvir além dos
aplausos dos bajuladores teriam resolvido a parada informando que as
possibilidades do psolista fluminense presidir por eleição de seus pares a Mesa
da Câmara são menores do que a de visitar as estrelas a pé. O resultado foi o
triunfo do deputado que, com 75 mil votos, tinha escapado por pouco, muito
pouco, de ficar em casa acompanhando a inglória marcha de seu time do coração,
o Botafogo, por um bicampeonato do qual sempre esteve distante. E Onyx
Lorenzoni, o chefe da Casa Civil, ficou com a taça quase sem atuar.
Como 200 milhões
de brasileiros, o máximo mandatário deve ter gozado as delícias da vitória da
“nova política” sobre a tida como “velha”, mas, na verdade, Realpolitik, na
eleição para a presidência do Senado. Candidato escolhido e preparado pelo
citado Lorenzoni, Davi Alcolumbre, do DEM, esmagou as pretensões de do cacique
alagoano Renan Calheiros, criado nas manhas da pistolagem, mas desprevenido em
relação aos sobressaltos que a vida pode dar em armadilhas para quem não teve o
devido preparo, eternizar-se na cadeira central da Mesa do conselho dos
anciões. Quem pensou que Alcolumbre tinha a alma imaculada de uma vestal
acredita muito pouco em notícias e demais da conta em tuítes. O amapaense chega
a Renan pela caminhada ao aparente oposto que termina na vizinhança. Não tem, é
claro, o poder e o cinismo de bater o recorde de processos, denúncias e
investigações por conta do STF do coroné de Murici, que se encarregara com rara
perícia do jogo sujo para Collor, Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer. E
nada no mar do foro privilegiado como um campeão de navegação de longo curso.
Maia, Alcalumbre
e Lorenzoni têm pontos em comum. Primeiro: são de um partideco chamado DEM,
cujo chefão, o prefeito de Salvador, ACM Neto, nem sequer tem cacife para
enfrentar o PT despedaçado — com seu líder multirréu duas vezes condenado e
mantido preso em definitiva segunda instância – na Bahia, Estado que já foi
reino do avô, do qual herdou nome e cetro, mas nunca o trono. Segundo: têm
contas a ajustar na Justiça. Maia, sósia do Bolinha dos quadrinhos da americana
Marge, é Nhonho, o filho do Seu Barriga da série mexicana Chaves nas hostes
hostis do bolsonarismo e, sobretudo, Botafogo, time do coração usado como
codinome na lista do propinoduto da empreiteira baiana Odebrecht.
Como o Davi
bíblico, Alcolumbre é um político juvenil. E já enverga uma “capivara” que não
pode ser comparada com as de Renan e de Maia, mas que ele pelo menos pode
chamar de sua e que só a deve a si mesmo. Passou incólume pela Justiça
Eleitoral do Amapá (!!!), mas enfrenta a batalha do STF ostentando seu também
particular foro privilegiado.
Lorenzoni, o
único do trio que pode ser demitido por Bolsonaro, também é da lista dos
suspeitos. Com a mesma vantagem dos outros dois correligionários de estar à
disposição da Justiça (?) Eleitoral desde que os amigões da altíssima Corte os
dispensaram de enfrentar Lava Jato e quetais. E agora com o ex-juiz que comanda
o combate à corrupção na condição de colega de primeiro escalão, Sergio Moro,
concedendo-lhe anistia ampla e geral pelo fato de se ter arrependido do ilícito
cometido.
O fato de
Lorenzoni continuar sentado ao lado do “mito”, pai de Flávio, Carlos e Eduardo,
mostra que o capitão – que terá de suportar Maia e Alcolumbre, cujos mandatos
na chefia das Casas do Congresso se estenderão por dois longos anos — ainda não
percebeu que a tinta de sua caneta pode ser fatal para o cargo do veterinário
gaúcho, de quem até agora nem parece sequer desconfiar.
No meio desse tiranete,
Dias Toffoli, que terá longa vida no mais alto posto do Judiciário por ter sido
nomeado muito jovem, como o atual decano da Casa, e a manterá estendida por
mais cinco anos, mercê da benemerência de Eduardo Cunha, o Caranguejo da
Odebrecht, resolveu entrar para a História como o “Pacificador”. Protegido pela
estátua vendada à porta de seu gabinete envidraçado da tempestade dita de verão
entre Bolsonaro e Maia, Toffoli resolveu reforçar a cruzada a que deu início
desde que assumiu a primeira de várias presidências do Judiciário que ainda
terá a cumprir, graças à generosidade de Lula, que o nomeou, e de Cunha, que
lhe deu mais cinco anos no STF com a PEC da bengala. Ambos, diga-se, condenados
e presos, à espera da decisão do dia 10.
Do alto de seu
olimpo particular, Toffoli já tomou providências dignas de fazer frente a
suseranos implacáveis como o romano Nero, que incendiou Roma para fazer uma
canção e incriminar os cristãos, e Hitler, que subiu na política tocando fogo
no Reichstag para inculpar os comunistas e fundar o 3.º Reich. Primeiro mandou
Minerva, a deusa romana da sabedoria, às favas para encaminhar as penas de seus
antigos protetores, como Dirceu, Lula e Cunha, para as decisões pra lá de
tolerantes da Impunidade Eleitoral. Depois, atribuiu-se o papel do papa Paulo
III restaurando o reino das bruxas da Inquisição e passando a função de
Torquemada ao bedel Alexandre de Moraes, relator de uma falsa caça a fake news,
na verdade, uma reedição dos certificados exibidos antes dos filmes com a
assinatura de dona Solange Hernandes, censora no regime militar; proibindo
críticas ao novo Velho Regime, cujos potentados pretende blindar de quaisquer
mágoas. Sob seu martelo de advogado reprovado em concursos para magistrados de
primeira instância, tornou sua grei, além de suprema, inatingível pelos mortais
e pagantes.
Na mesma ocasião
em que condenou críticas e críticos a seus 11 intocáveis, o chefão do Poder do
Estado que investiga, julga e pune ao mesmo tempo (apud Marco Aurélio Mello)
voltou a proclamar sua condição de “Pacificador”, sem mesmo decretar perempto o
título dado pelo Exército a seu patrono, o duque de Caxias. A formalidade foi
dispensada ao pregador do pacto entre Poderes, que, conforme o velho
Montesquieu, cujas obras dificilmente ele terá lido, devem ser autônomos e
soberanos, não cabendo, por definição, pacto entre eles. Como lembrou um
seguidor meu no YouTube, Aluízio Machado, em democracia não há pacto, doutor,
mas divisão entre Poderes, que devem ser soberanos e autônomos.”
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AGD
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