“A falta que a
política faz
Por Fernão Lara
Mesquita
Além das
seguidas capitulações espontâneas do presidente, o que mais tem comprometido a
reforma da Previdência é a “embriaguez da onipotência numérica” vivida pela
família Bolsonaro. Trata-se de uma confusão que decorre do encantamento com a
contagem de números absolutos revelados pelo súbito destampar de panelas há
muito forçadamente lacradas, operado pelo aprendizado no uso das redes sociais,
que tem levado a trágicos erros de avaliação política pelo mundo afora, da
Primavera Árabe em diante.
Depois do salto
proporcionado pela ânsia do Brasil de se livrar da venezuelização que elegeu
Bolsonaro, as pesquisas indicam uma volta da opinião pública ao leito da
normalidade. Cada vez mais as manifestações de radicalismo só repercutem no
gueto da direita incondicional, que não precisa ser conquistada, pois já é e
nunca deixará de ser dele, assim como os 30% da esquerda incondicional foram do
PT e são hoje dos seus sucedâneos. Para tudo mais elas só prejudicam. Como
chegar a 308 deputados (partindo dos atuais 190) mais 49 senadores que a
reforma requer carimbando qualquer conversa com eles como “prova” de corrupção?
A próxima
parada, diz Paulo Guedes, é o Novo Pacto Federativo que reservará 70% do
dinheiro dos impostos para Estados e municípios e 30% para a União. A
distribuição do dinheiro dos impostos em consonância com a quantidade de
assistidos por cada ente de governo, entretanto, é produto, onde ocorre, de um
arranjo político revolucionário, e não o contrário. Na repartição do que quer
que seja a parte do leão fica com quem tem o poder. É uma lei da natureza.
Logo, para inverter a distribuição do dinheiro é preciso antes pôr o povo no
poder.
O federalismo
foi o arranjo institucional que deu consequência prática a essa inversão. A
fórmula que criou governos dentro de governos, cada um deles soberano na sua
esfera de atuação, mas dividido em três Poderes encarregados de filtrar as decisões
uns dos outros, foi, pela primeira vez na História da humanidade, uma teoria
criada para ser posta imediatamente em prática estritamente dentro da
característica pragmática da cultura anglo-saxônica. Não para “criar uma nova
humanidade”, à latina, mas para resolver um problema específico: como montar um
esquema funcional para transferir o poder do monarca absolutista humano para o
conjunto da população, também humana, e evitar o retorno à condição anterior de
opressão, agora por uma maioria. Esse o ponto a que chegou a Democracia 3.0,
modelo século 18, que nós nunca alcançamos. E não foi suficiente. Ele teve de
evoluir, no século 20, para a Democracia 4.0, que pôs o indivíduo reinando
soberano sobre todas as outras soberanias ao reforçar dramaticamente os poderes
dos eleitores antes e depois do momento das eleições, com os direitos de cassar
mandatos a qualquer momento, dar a última palavra sobre as leis que se dispõem
a obedecer e submeter até os juízes, periodicamente, à confirmação do seu
beneplácito. Pôr o carro adiante dos bois com um eleitorado inteiramente
desarmado e legalmente proibido de defender-se contra a violência legislativa e
regulatória dos donos do poder (como nos querem até em relação à própria vida
os radicais desarmamentistas) só levará a uma multiplicação desastrosa dos
focos de corrupção.
A maior
dificuldade para arrumar o Brasil não está no confronto entre visões
divergentes, está em formular uma visão divergente de fato, coisa que não
poderá ser aprendida na práxis política corrente, que, pela direita e pela
esquerda, vive da distribuição de pequenos privilégios. Vai requerer um longo
mergulho no estudo da teoria política, assunto hoje anatemizado como sintoma de
propensão à corrupção, e da história da evolução da democracia, pois em todos
os países os problemas foram os mesmos que enfrentamos e muitos conseguiram
superá-los. Não é preciso reinventar a roda. A questão é como fazer isso num
país que socializou o pequeno privilégio numa extensão inédita no mundo e todos
amam o seu, cujas escolas ou estão destruídas, ou estão censuradas pelo
aparelhamento ideológico, o que nos leva ao outro grande foco de ruídos dos
primeiros 100 dias do governo Bolsonaro.
Nas democracias
de DNA saxônico vigora um princípio que explica a resiliência delas e tem tudo
que ver com federalismo. O controle da educação deve ficar o mais longe
possível de quem já tem o controle da força armada, explicitamente como
elemento básico de prevenção contra a sede insaciável de mais poder que todo
poder tem.
De fato não faz
nenhum sentido, senão como instrumento de perpetuação no poder, que num país
continental cheio de itaocas e de megalópoles plantadas em realidades
culturais, geográficas e de vocação econômica radicalmente diversas umas das
outras, um único órgão centralizado, como o MEC, imponha o mesmo currículo e os
mesmos métodos pedagógicos para todo mundo em todos os níveis de educação. Por
isso, naquelas democracias, o controle das escolas públicas não fica sequer na
mão do poder municipal, fica a cargo da menor unidade do sistema, os conselhos
(school boards) eleitos por cada bairro entre os pais dos alunos que
frequentarão aquela escola. Com sete membros com mandatos de quatro anos
desencontrados, metade eleita a cada dois anos, são esses boards que contratam
os diretores de cada escola pública e aprovam (ou não) os seus orçamentos e os
seus programas pedagógicos.
Um conjunto de
“distritos escolares”, o primeiro elo do sistema de eleições distritais puras,
único que cria uma identificação perfeita entre os representantes eleitos e
cada um dos seus representados permitindo o controle direto legítimo e seguro
de uns sobre os outros, constituirá um distrito eleitoral municipal. Uma soma
destes fará um distrito estadual, um conjunto dos quais dará um dos distritos
federais que elegerão os deputados do Congresso Nacional.
A política, o
patinho feio de todo o drama brasileiro, não pode, portanto, ser o último fator
a ser considerado. Se for para curar o País, terá de ser o primeiro.”
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