“Um feio
escorregão de Jair Bolsonaro
POR BOLÍVAR
LAMOUNIER
Ao qualificar o
nazismo como um regime “de esquerda”, o presidente Jair Bolsonaro rompeu uma
represa enorme, deixando um mar de sandices escorrer pelas redes sociais. Nas
centenas de mensagens que li, não encontrei uma referência sequer ao que me
parece ser o ponto crucial da discussão: a obsolescência da dicotomia esquerda
x direita.
Ninguém contesta
que lá atrás, no século 19, tal dicotomia tinha substância, e em alguns países
a conservou durante a primeira metade do século 20. A Guerra Civil Espanhola,
por exemplo, contrapôs comunistas e anarquistas (nem sempre solidários entre
si) a uma direita rombuda, formada por uma burguesia resistente a toda
veleidade de reduzir desigualdades, fazendeiros que adorariam viver na Idade
Média e, não menos importante, um catolicismo que se comprazia em estender seu
manto sobre toda aquela teia de iniquidades. Ou seja, havia efetivamente uma
“esquerda” – os que recorriam à violência no afã de quebrar a espinha dorsal
daquela sociedade – e uma “direita”, os setores acima mencionados, para os
quais o status quo era legítimo, sacrossanto e destinado a perdurar até o fim
dos tempos.
Os regimes
totalitários que se constituíram entre as duas grandes guerras – o nazismo na
Alemanha, o comunismo na URSS e o fascismo na Itália – foram precisamente a
linha divisória a partir da qual a dicotomia esquerda x direita começou a
perder o sentido que antes tivera. Se fizermos uma enquete entre historiadores,
sociólogos, etc., pelo mundo afora, constataremos sem dificuldade que nove em
cada dez classificam o nazismo como direita e o comunismo como esquerda – e
reconheço que aqueles nove ainda têm um naco de razão.
Sabemos que os
regimes comunistas se serviram do marxismo como base teórica. E que o fizeram
com um cinismo insuperável; na prática, o chamado “socialismo real”
assentava-se numa combinação de partido único, monopólio dos meios de
comunicação, polícia secreta, culto à personalidade e numa repetição ritual da
ideologia, entendida como a busca do paraíso na Terra, a “sociedade sem
classes”. Mas em abstrato – nas alturas da filosofia –, é certo que o marxismo
se proclama humanista e igualitário. Não legitima nem tenta perenizar
desigualdades sociais e muito menos raciais. O nazismo nada tem de humanitário
ou igualitário: toma as desigualdades sociais como um dado da realidade e vai
muito mais longe, visto que postula uma desigualdade natural de raças e adotou
explicitamente a noção “eugênica” do melhoramento das raças superiores – da
“raça ariana”, entenda-se – e da exterminação da “raça judia”.
Passemos, agora,
ao que chamei de obsolescência da dicotomia esquerda x direita. Nas alturas da
filosofia e no cinismo do mero discurso político, é óbvio que os esquerdistas continuam
a professar um ideário de igualdade. Proclamam-se mais sensíveis que o resto da
humanidade ao sofrimento dos destituídos (daí a atração que exercem sobre a
corporação artística), mais competentes e decididos a encetar ações conducentes
a uma sociedade menos desigual e, com certo contorcionismo, ainda se apresentam
como os detentores monopolistas da estrada real que levará ao paraíso
terrestre. Ou seja, cultivam, ainda, o mito da revolução total.
Mas há dois
pequenos senões. Na vida política real não se requer nenhum esforço para
perceber que os termos “esquerda” e “direita” estão reduzidos a meros totens
tribais. Se me declaro “de esquerda”, fica entendido que meu adversário
político é automaticamente de “direita”. Se o partido ao qual me oponho apoia
determinada tese, eu a rejeito, pois ela estará necessariamente ligada ao totem
da tribo inimiga. No Brasil é notório que a grande maioria dos políticos não
serve a objetivos, eles se servem deles e os enquadram em sua obtusidade
totêmica para diluir interesses rigorosamente corporativistas.
O segundo senão
é ainda mais importante. Como antes ressaltei, “esquerdistas” são os que se
especializam em professar ideais humanitários e igualitários. Em termos
abstratos, isso é correto. Mas, atenção, trata-se, na melhor das hipóteses, de
um enunciado no plano do desejo, não de programas concretos de governo e muito
menos aos efeitos observáveis da aplicação de determinado programa. Aspirações,
não consequências objetivas. No terreno prático, as políticas de esquerda
caracterizam-se sobretudo por um distributivismo ingênuo, por uma sesquipedal
incompetência e não raro pela corrupção no manejo dos recursos públicos, por
afugentar investimentos, ou seja, em síntese, pela irresponsabilidade fiscal e
pela leniência com a inflação, tolerando ou assumindo ativamente políticas
cujas consequências levam a resultados contrários aos proclamados como
desejáveis, piorando as condições de vida dos mais pobres.
Segue-se que a
distinção realmente importante não é entre esquerda e direita, mas entre, de um
lado, objetivos proclamados, subjetivos ou meramente discursivos e, do outro,
consequências práticas, objetivas e previsíveis. De um lado – na melhor das
hipóteses –, a crença em “valores absolutos”, lembrando aqui a teoria ética de
Max Weber; do outro, uma “ética da responsabilidade”, vale dizer, uma visão
política que de antemão sopesa objetivos e consequências prováveis.
Nessa ótica, faz
sentido afirmar que há muito mais consenso que dissenso na vida pública
brasileira atual. O que queremos, fundamentalmente, é retomar o crescimento
econômico em bases sustentáveis, com estabilidade monetária; atrair grandes
investimentos para a infraestrutura; revolucionar organizacional e
pedagogicamente a educação. Se uma concepção mais convergente não se impuser
rapidamente sobre os totens tribais que se digladiam em Brasília, daqui a 20
anos o Brasil não será um país para almas frágeis.”
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