Por Zé Carlos
Continuaremos nossos escritos sobre o anonimato, usando o mesmo texto que citamos no texto anterior (
aqui), e fazendo nossos comentários tentando aclimatá-lo à nossa realidade mais próxima.
O citado texto falou, até aqui, mais da situação de países estrangeiros em termos de repressão à internet, mas nem por isso longe de nossa realidade, quando vemos o que se está tentando fazer em direção a isto. Pelo que o autor deduziu em sua pesquisa, a trajetória de atuação dos inimigos da liberdade de expressão, na maioria dos paísea democráticos, segue um padrão claro, onde se espera sempre os seguintes processos, que comentaremos depois de cada um deles levando em conta fatos recentes de nossa cidade (a citação está em itálico, e o texto normal é nosso). É natural esperar que:
a) utilizem uma justificativa "nobre" e "razoável", e que busquem o caminho de menor esforço e menor risco, ou seja, que escolham aquelas matérias para as quais boa parte da população clama por uma atitude do governo;
Isto aconteceu recentemente em Bom Conselho quando um blog anônimo publicou um artigo sobre a demissão do Secretário da Educação. Outro blog mostrou as reclamações da esposa do referido demissionário como sendo uma das mazelas do anonimato, como que conclamando o povo para ser contra a prática. Contra o Blog da CIT aconteceu a mesma coisa. E a população que não entende que tudo é golpe para frear as críticas ao governo, passa a ser contra o anonimato, enquanto os verdadeiros “malfeitores” ficam livres das críticas.
b) iniciem sua atuação com medidas de escopo limitado e penalidades brandas; mas caso ocasiões futuras abram brechas, é de se esperar que aumentem o escopo ou as penalidades;
Aqui no Brasil já tivemos várias tentativas de conter a internet e o anonimato, como o projeto de lei do Deputado Eduardo da Fonte, citado por mim e pelo Zezinho de Caetés anteriormente neste blog. Além das outras tentativas que ainda rolam por aí, para satisfazer, na maioria das vezes, àqueles que tem “o rabo preso”.
c) que tentem cooptar e tornar corresponsáveis legais os intermediários da informação, como, por exemplo, os provedores de acesso (ISPs) e de hospedagem de sites, bem como os blogueiros;
São as tentativas diárias de quebra de sigilo de dados nos provedores, além de ameaças a blogueiros independentes. Em Bom Conselho, o caso mais conhecido e já comentado por mim, foi do Blog de Bom Conselho de Papacaça, pela sua oposição ao governo da prefeita Judith Alapenha. Infelizmente, o blog saiu do ar, numa atmosfera de mistério e nos deixou saudosos.
d) que mencionem iniciativas implementadas por países com "credibilidade" como uma das justificativas para a implementação de iniciativa similar no país.
Quando alguém nos Estados Unidos é processado por ter praticados crimes como anônimos, ou na Inglaterra em recentes tumultos, onde o primeiro ministro pediu que fossem quebrados os sigilos dos sites, isto é tido como um exemplo para nós. Na maioria das vezes se corrompem as notícias sobre tais fatos, não dando dados corretos sobre o desfecho deles. Por exemplo, no caso do primeiro ministro inglês, este teve que pedir desculpas no parlamento pelo estapafúrdia ideia de acabar com o anonimato ou censurar informações na rede.
E nós, apoiados pelas nossas tradições de patrimonialismo, paternalismo e subserviência ao Estado patrão, tendemos a acreditar nestas estórias cada vez mais nos levando a um futuro negro de repressão e censura.
Mas continuemos lendo o Hélio Beltrão, agora sobre o anonimato (esta parte do texto já havíamos publicado, mas vale a pena ler de novo):
A perseguição ao anonimato
Aquilo que Thomas Jefferson chamou, na Declaração de Independência, de "longo trem de abusos e usurpações", começa em geral — no que se refere à censura — pela proibição ao anonimato. O anonimato protege o autor de eventuais perseguições, de chantagens e de ataques maliciosos de ordem pessoal, e mantém o foco nas ideias. Os fundadores dos Estados Unidos sabiam da importância do anonimato, e o consagraram na Constituição. Alexander Hamilton e James Madison escreveram os "Federalist Papers" sob o pseudônimo "Publius", e vários outros fundadores utilizaram pseudônimos diversos de tempos em tempos. Recentemente, em 1995, a Suprema Corte, declarou: "A proteção de discursos anônimos é vital para a democracia. Permitir que dissidentes protejam sua identidade os libera para expressar visões críticas defendidas por minorias. O anonimato é a proteção contra a tirania da maioria".
Adicionalmente, o anonimato on-line protege aqueles que desejam reportar abusos e ilegalidades cometidos pelo governo ou companhias, protege defensores de direitos humanos contra governos repressores e auxilia vítimas de violência doméstica a reconstruírem suas vidas em um ambiente ao qual seus violadores não cheguem.
No Egito, um dos maiores articuladores da revolução foi um anônimo conhecido como ElShaheed (mártir, em português), que controla uma página no Facebook denominada "We Are All Khaled Said", que possui centenas de milhares de seguidores.
Já a Constituição do Brasil, por outro lado, proíbe expressamente o anonimato. Aproveitando a brecha gerada pela lei suprema, será apresentado neste mês de fevereiro de 2011 um projeto de lei de autoria do senador Magno Malta que prevê a ilegalidade de pseudônimos, também conhecidos como perfis falsos, na internet. Magno Malta inspirou-se no exemplo da Califórnia, que, por sua vez, acaba de aprovar uma lei que prevê multa e prisão para quem utilizar perfil falso na internet.
No Brasil, todos os que utilizam a internet precisam se identificar junto ao seu provedor e incluir CPF e endereço, entre outros dados. E em São Paulo, a lei 12.228/06, promulgada por Geraldo Alckmin, obriga cybercafés a manterem um cadastro completo de todos os usuários, incluindo o equipamento utilizado e os horários detalhados, e prevê multa de até dez mil reais.
A justificativa dos inimigos do anonimato on-line é quase sempre a de que o anonimato "dificulta a identificação de criminosos virtuais".
As determinações legais, no entanto, não inibem os chamados "criminosos virtuais". Como dizia meu pai, ministro Helio Beltrão, "a excessiva exigência burocrática só serve para dificultar a vida dos honestos sem intimidar os desonestos, que são especialistas em falsificar documentos".
A frase é válida para o mundo virtual de hoje. Para obter-se o anonimato on-line (com boas ou más intenções), não é necessário mais que alguns recursos tecnológicos criativos, ou documentos falsos (ou de "laranjas") para registro junto ao seu provedor de acesso ou de hospedagem. Desta forma, há proteção caso o governo resolva perseguir o anônimo, o que não ocorre com aqueles que seguem a legislação fielmente.
Não há dúvida: a proibição ao anonimato tem como resultado principal a inibição do discurso livre e desimpedido, por meio do constrangimento dos honestos. (grifos nossos)
É muito difícil chegar a outra conclusão. Num país onde a corrupção funciona à base de “suco de laranja”, batido no liquidificador junto com documentos apócrifos, falar em documentos como base de honestidade, é no mínimo um disparate.
Aqui devemos reforçar e repisar meu pensamento, e de quem defende o anonimato, é que ninguém defende o anonimato para fazer o mal. Defendemos o anonimato, e ponto. Mesmo sabendo que ele pode ser usado para fazer o mal, achamos que bani-lo por isso, é jogar fora a água do banho com a criança dentro. Seria como impedir o avanço científico porque ele pode produzir a bomba atômica.
Meu pensamento é que o descuido constitucional de nos dá “liberdade de expressão, mas vedado o anonimato”, deve ter saído da mente de alguém que não tinha nenhum senso de liberdade em suas ações. Por isso eu defendo a retirada da Constituição desta excrescência, como outras já foram retiradas pelo sua falta absoluta de sentido.
Pelo que entendi, o anonimato é um instituto tão tênue no texto constitucional, e que causa tanto polêmica inútil no meio jurídico que não deveria existir. Entre a liberdade de expressão pura e aquela com adjetivações de anonímia, preferimos sempre a primeira. A primeira razão é a do princípio, de que o direito de expressão de pensamento é o fundamento de uma sociedade livre, e a segundo, no caso da internet, é o pouco sentido prático, o custo, os poucos benefícios em termos de justiça, em tentar se coibir o anonimato.
Na internet, como ocorreu com a imprensa, e com a vida em geral, vão ser inúteis as tentativas de legislar sobre o anonimato e alguns dizem até ser impossível fazer isto sem ferir os princípios da Ciência Jurídica, pelo que dispõe nossa própria Constituição. Pelo menos foi o que entendi, como um cidadão que sabe ler e sem ser especialista na matéria, de que reproduzo a seguir:
Deverá a autoridade rejeitar de plano uma delação anônima, simplesmente alegando a vedação constitucional, quando a mesma traz a público, fatos lesivos ao patrimônio estatal e conseqüentemente ao interesse coletivo? Poderá o superior hierárquico ignorar uma delação anônima, tendo ele o dever legal de instaurar sindicância de ofício, devendo agir em cumprimento ao princípio da legalidade e impessoalidade e moralidade administrativa?
Estamos diante de uma verdadeira colisão de princípios constitucionais, e sempre que houver colisão de direitos, a resposta para equacionar e dar solução aos conflitos será a ponderação dos interesses e valores no caso em especial, ou seja, caso em concreto, utilizando o princípio da proporcionalidade e razoabilidade, já consagrado em inúmeros julgados no STF, Vejamos:
“(...) Isso significa, em um contexto de liberdades em conflito, que a colisão dele resultante há de ser equacionada, utilizando-se, esta corte, do método – que é apropriado e racional – da ponderação de bens e valores, de tal forma que a existência de interesse público na revelação e no esclarecimento da verdade, em torno de supostas ilicitudes penais e/ou administrativas que teriam sido praticadas por entidade autárquica federal, bastaria, por si só, para atribuir, à denúncia em causa (embora anônima), condição viabilizadora da ação administrativa adotada pelo E. Tribunal de Contas da União, na defesa do postulado éticojurídico da moralidade administrativa, em tudo incompatível com qualquer conduta desviante do “improbus” administrador.(...)” Processo MS – 24369, Relator: Ministro. Celso de Mello.
Podemos concluir, que recebendo a delação anônima, a autoridade tem o dever legal, amparado no princípio da legalidade e principalmente no princípio da moralidade administrativa, “de acordo com esse princípio a Administração e seus agentes devem atuar na conformidade de princípios éticos, que não transgridam o senso moral da sociedade” devendo verificar seu conteúdo e sua procedência, ou seja, verossimilhança das informações, respeitando a incolumidade das garantias individuais, agindo de forma cautelosa. Confirmada a fidedignidade da delação, o procedimento formal será iniciado, respeitando-se os princípios da ampla defesa e do contraditório. Salientemos as conseqüências jurídicas da não observância por parte do servidor público dos atos legais inerentes a suas atribuições, “atos de improbidade administrativa dos servidores públicos importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível (CF art. 37, § 4º).”
Com essa interpretação, o princípio da proporcionalidade não esvazia o conteúdo garantista das liberdades constitucionais. Ao contrário complementa o princípio da reserva legal e reafirma o Estado de Direito, harmonizando os interesses constitucionais aparentemente conflitantes. (Suzana de Toledo Barros, Processo Penal Constitucional, p.53)
Por fim, toda proposta legislativa proibindo a delação anônima, é arbitrária, caprichosa, inadequada e traz à tona o tema do excesso de poder legislativo, cuja aferição reclama técnica diversa da tradicional, levada a afeito pelo contraste da lei á Constituição. É possível que um ato editado venha a se mostrar inconstitucional porque desnecessário ou defeituoso em razão de um exame intrínseco da sua relação meio-fim, porquanto o mero confronto da lei à Constituição não é suficiente para se apurar um juízo definitivo de constitucionalidade. (Suzana de Toledo Barros, O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, p.209) (grifo nosso).
Desculpem a citação tão longo, e ela não significa que entendo tudo que nela está escrito, talvez, apenas o essencial para o meu argumento. A vedação do anonimato é problemática até para ministros do Supremo, que esvaem seus neurônios para adaptá-lo aos casos que são tidos como de absoluta influência positiva, como a de se investigar denúncias anônimas relativas à malversação de verbas públicas. Os que tem documentos e os usam param o mal se escondem dentro da vedação ao anonimato, pois os juízes vivem dilemas terríveis em mandar investigar denúncias que são quase evidentes, devido a este princípio.
A vedação ao anonimato penaliza todo um potencial de ganhos sociais por se ter medo de uns poucos que o usam para fazer o mal. Nos países onde as pessoas cresceram num clima de liberdade é até perigoso se falar que o anonimato é ruim. Desta leituras que fiz, sem muito “saber” nem capacidade para tratar do anonimato, mas que foram extremamente proveitosas, eu encontrei casos que valem apenas serem citados. Pelo tamanho do texto, eu cito apenas um.
Eu vi um lugar num parque londrino onde qualquer um pode dizer o que quiser sem ser molestado por ninguém (depois eu soube que há também nos Estados Unidos sendo conhecidos com “Free speech zones” ou “First Amendment Zones”, que poderia ser traduzido livremento como Lugares para falar com Liberdade). Isto funciona para qualquer um, inclusive para estrangeiros. Pode-se dizer até que a Rainha está nua e ninguém pode fazer nada. Aquilo para mim era uma novidade pelo que passei no Brasil, um país que estava saindo de um período de ditatura (mais uma) no qual as pessoas tem que mostrar documentos até para entrar nas igrejas, e se não tiver é preso com vagabundo.
Quando lá estive, nossa Constituição cidadã estava nascendo. Eu fiquei alegre que nela viesse o espírito do princípio da Primeira Emenda da Constituição americana que diz numa tradução livre e ligeira:
"O congresso não fará leis a respeito de que religião seguir, ou proibir o seu livre exercício; ou diminuir a liberdade de expressão, ou da imprensa; ou sobre o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações por ofensas."
Ainda bem que os constituintes americanos não acrescentaram: “vedado o anonimato”. Infelizmente, algum constituinte, em nosso país, ainda com saudade da nossa Lei de Imprensa da Ditadura, resolveu colocar isto na nossa. Está na hora de consertar o erro. Como?
Aprovando a PEC dos Sem Nomes, que propõe que o Capítulo 5, inciso IV de nossa Constituição, seja escrito:
IV – É livre a manifestação do pensamento.
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P.S.: 1) Talvez não tenha mais tempo de escrever nem colocar textos aqui sobre o tema do anonimato, que será tema da palestra do brilhante advogado Dr. Renato Curvelo no II Encontro de Blogueiros de Bom Conselho, no dia 28. Eu irei ao encontro e espero aprender com ele e com os demais sobre isto. Se não houver postagens neste Blog a partir de amanhã, me perdoem. Leiam o que já foi publicado e compareçam ao Encontro. Mesmo que seja, como anônimos. Isto se não houver alguém na porta fazendo cumprir os preceitos constitucionais, pedindo CPF e RG. Por via das dúvidas eu pedi ao José Carlos Cordeiro para me representar.
2) Ontem, vi na TV que foi mandado ao Congresso o "Marco Civil da Internet", que é uma tentativa de regulamentar a internet no Brasil, com mais cuidado. Não tivemos tempo de tratar a questão nestes escritos e nem sabemos o texto que foi enviado ao Congresso. É só para ver com o tema é complexo e perdurá em discussão até os próximos Encontros de Blogueiros.