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sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Perdas




“Perdas
      
Por Zeina Latif

A escravidão esteve presente em várias civilizações ao longo dos séculos, geralmente por conta de conquistas e guerras. O que distingue o caso dos negros é o racismo e o fato de o tráfico de escravos ter sido uma atividade muito lucrativa, com ampla rede de negócios, fornecedores e prestadores de serviços, em terra e no mar. Um negócio que inclusive ajudou a financiar as viagens dos descobrimentos.

Os números do comércio de negros impressionam. Entre 1500 e 1850, 24 milhões de indivíduos foram tirados de seus lares em todo continente africano com destino às Américas. Algo como 11,5 milhões morreram antes mesmo de embarcar, em decorrência das condições precárias e maus tratos no caminho até o embarque, que poderia demorar vários meses. Apenas 10,7 milhões chegaram ao continente americano; cerca de 1,8 milhão não sobreviveu à travessia.

O ambiente insalubre nos navios, os maus tratos e suicídios explicam essa trágica mortalidade. Famílias e amigos eram separados, e procurava-se misturar os diferentes grupos, para evitar a uniformidade linguística, e assim reduzir fugas e rebeliões.

O Brasil era o principal destino. Ao longo de 350 anos, 47% do tráfico negreiro veio para o Brasil, dez vezes mais do que para a América do Norte, totalizando quase 5 milhões de pessoas.

Para os exploradores brancos, a justificativa moral para tamanha crueldade era a necessidade de resgatar aquelas pessoas do seu atraso, enquanto intelectuais enfatizavam a sua inferioridade. A servidão seria o caminho para ascenderem à humanidade. Havia também uma componente religiosa: os negros seriam descendentes de Canaã, filho de Cam, amaldiçoado por seu avô Noé.

Os índios, vistos como inocentes pelo jesuítas, tiveram melhor “sorte”. A coroa portuguesa, em 1570, declarou que os nativos eram súditos do rei e não poderiam ser escravizados, em que pese o fato de a escravidão ter persistido, com base na autorização de captura por “guerra justa”. Índios seguiram tutelados pelos jesuítas, que enfrentavam os colonos. O padre Antônio Vieira acabou deportado por defender a liberdade dos índios. A solução defendida pelo próprio Vieira foi substituir a mão de obra indígena por escravos africanos.

Há indicações de que a escravidão no Brasil foi mais violenta do que nos Estados Unidos. Por aqui, a taxa de natalidade dos negros era menor, assim como a expectativa de vida. Por outro lado, alforrias eram mais comuns, o que pode ter contribuído para uma maior miscigenação. Tudo somado, na época da abolição da escravidão, havia “apenas” 700 mil cativos.

Os anos que se seguiram à abolição foram de negação da elite sobre a nossa triste história. Mal comparando, algo como o “pacto do silêncio” na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. A negação do passado escravocrata nos levou a ignorar os negros, algo diferente da segregação racial nos EUA – difícil saber o que é pior.

O passado escravista deixou marcas na nossa sociedade, pela violência e por alimentar posturas oportunistas – a proximidade na casa grande garantia vantagens e poupava punições. Mas há uma herança ainda mais trágica: o descaso com os negros pode estar na base do descaso com a educação de massas e com os direitos da cidadania.

Nos EUA, a segregação racial resultou em conflito aberto. Em uma sociedade zelosa com as instituições e preocupada com a educação – tema já presente no começo da independência –, o resultado foi a sequência de manifestações dos negros pelos direitos civis e estabelecimento de organizações próprias, como igrejas e faculdades; sobretudo no sul, onde a segregação era maior.

Os 13% de negros na sociedade norte-americana têm mais ativismo político que os 54% no Brasil.

Os negros e seus descendentes têm almejado igualdade de oportunidades e participação na sociedade civil. As resistências, porém, são muitas. O Brasil ainda não reconhece a dimensão do seu racismo.”

quinta-feira, 28 de novembro de 2019

Prisão por decisão de segunda instância




“Prisão por decisão de segunda instância
     
Por Ives Gandra da Silva Martins

O Supremo Tribunal Federal (STF), por 6 votos a 5, ao decidir que não poderia haver prisão, em execução de sentença, senão após o trânsito em julgado, privilegiando o disposto no artigo 5.º, inciso LVII, da Lei Suprema, teve, no pronunciamento do ministro Dias Toffoli – que reiterou sua posição anterior a favor da tese vencedora – o voto de desempate. Está o referido dispositivo constitucional assim redigido: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (...)”.

A justificação, todavia, levou tranquilidade ao Poder Legislativo federal, na medida em que declarou que o referido inciso do artigo 5.º não é uma cláusula pétrea, visto que o Código de Processo Penal, em seu artigo 283, permite prisões independentemente de qual seja a instância da decisão judicial. Em sua fundamentação, fez questão de realçar que são inúmeras as prisões sem trânsito em julgado permitidas, como preventiva, provisória, cautelar, civil e até mesmo administrativa, sem intervenção do Judiciário, como é o caso das de membros das Forças Armadas.

A sinalização do ministro Toffoli – em julgamento que foi acompanhado pela esmagadora maioria da população brasileira – deve ser mantida nos dois próximos anos, pois que até a aposentadoria do ministro Celso de Mello, prevista para fins de 2020, a composição do pretório excelso será a mesma. Minha convicção de que dificilmente qualquer dos ministros alterará sua posição decorre do fato de que as referidas ações de controle concentrado vinham sendo amplamente discutidas em universidades, congressos, livros e artigos de juristas, levando cada ministro a cuidadoso exame dos fundamentos de sua interpretação.

Ora, no momento em que o julgamento – o mais acompanhado da História do Brasil – foi realizado cada um dos supremos julgadores trouxe sua refletida e definitiva opinião sobre a matéria, razão pela qual a possibilidade de alteração de sua posição é praticamente nenhuma.

Nada obstante o apaixonado debate entre doutrinadores e juízes a respeito do tema, quero trazer para reflexão de meus escassos leitores dois aspectos que me parecem de particular relevância. O primeiro deles é que as duas teses jurídicas em questão são consistentes.

A primeira, de que o trânsito em julgado implica a presunção de inocência até que esse evento ocorra, tem seus seguidores, à luz de um argumento, além de outros, de fácil compreensão até por não operadores do Direito. Como alguém inocente, enquanto não transita em julgado uma decisão condenatória, pode cumprir a execução de pena, nessa condição? Como um inocente pode ser preso como culpado, sendo ainda inocente?

A tese contrária também se justifica, à luz de três fundamentos, entre outros, de fácil compreensão para leigos: 1) a possibilidade de recorrer a quatro instâncias (primeira, segunda, STJ e STF) leva muitos processos à prescrição da pena, pela lentidão da Justiça; 2) nas duas primeiras instâncias é que se discute toda a matéria fática; 3) os tribunais superiores (STJ e STF) só reexaminam questões jurídicas, e não mais matéria de fato, salvo fatos novos, relacionada aos processos, com o que o reexame não impediria a aplicação da pena pela última instância em que toda a matéria fática pode e deve ser reexaminada.

À evidência, nas duas correntes há inúmeros outros componentes que eu poderia abordar, mas para efeitos deste artigo e de sua compreensão, principalmente para pessoas não formadas em Direito, apresentei os de maior facilidade na compreensão.

Hart, em seu famoso livro The Concept of Law, em 1961 (Ed. Clarendon), declara que “direito é aquilo que a Suprema Corte diz que é”, pois, a segurança jurídica só se obtém pela certeza da decisão judicial na aplicação da lei. E no controle concentrado – ações diretas, declaratórias, de descumprimento de preceito fundamental ou repercussão geral– a decisão tem efeito impositivo sobre as instâncias inferiores e sobre a administração pública em geral.

Compreende-se, pois, que, em face da harmonia e independência de Poderes estabelecidas no artigo 2.º da Carta da República, a segurança é proposta pelo Poder Legislativo e, nos casos expressos previstos na Lei Suprema, pelo Executivo, mas a certeza é determinada pelo Judiciário.

Ora, nessa linha, o último voto do ministro Toffoli abriu indiscutível espaço para a presunção de legalidade de eventual explicitação legislativa, ao declarar – na decisão por 6 votos a 5 – que o “trânsito em julgado” não é cláusula pétrea, para efeitos de prisão de condenados em segunda instância.

Quando das conversas com os amigos e constituintes Bernardo Cabral, Ulysses Guimarães e Roberto Campos, assim como com os ministros Moreira Alves, Sydney Sanches e Francisco Rezek, da máxima Corte, à época da Constituinte – na oportunidade escrevi pequeno livro para 66 constituintes intitulado Roteiro para uma Constituição, veiculado pela Editora Forense –, defendia a tese de que os tribunais superiores deveriam ter a função de dar estabilidade às instituições, cabendo às instâncias inferiores fazer justiça. É o que ocorre com a Suprema Corte dos Estados Unidos e com os tribunais constitucionais dos regimes parlamentares europeus.

Creio que o pretório excelso ganharia em relevância perante a Nação e deixaria de ser objeto de manifestações populares, em que o debate ideológico se faz presente, se sua competência fosse semelhante à verificada na maioria dos países em que a democracia não sofreu ruptura depois da 2.ª Guerra, ou seja, exclusivamente constitucional. Foi o que propugnei naquele opúsculo de 1987.

Pessoalmente, entendo, ao concluir este artigo, que se o Congresso Nacional aprovar a execução de sentença a partir da decisão de segunda instância em matéria penal, por 6 votos a 5 a Suprema Corte confirmará sua constitucionalidade.”

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

As três leis da Era Digital




“As três leis da Era Digital

 Por Silvio Meira

Há 77 anos, Isaac Asimov publicava a primeira versão do que se conhece como as Três Leis da Robótica. A Primeira diz que “um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal”; A segunda reza que “um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei” e a Terceira estabelece que “um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis”.

Parece que ainda não chegamos perto do ponto onde há robôs capazes o suficiente para que as Leis sejam necessárias, apesar de haver sinais de que os primeiros robôs que podem, deliberadamente, ferir humanos estão sendo oferecidos no mercado.

Autor de obras como Eu, Robô, Isaac Asimov deu base às Leis da Robótica. Talvez seja hora de seguir seus preceitos
Autor de obras como Eu, Robô, Isaac Asimov deu base às Leis da Robótica. Talvez seja hora de seguir seus preceitos

Mas há um contexto digital ao nosso redor e talvez já seja preciso estabelecer um conjunto básico de Leis para a infosfera. Quase tudo o que fazemos já depende de dados, algoritmos e seu uso na prática, para decidir até o que podemos fazer ou não.

Muitas nações estão a escrever e aprovar leis, uma enxurrada de instrumentos que deveria governar o que algoritmos fazem ou deixam fazer. Os resultados até agora são duvidosos, por falta de princípios fundamentais para guiar ações legislativas que deveriam tratar do passado e do futuro. As tecnologias digitais, suporte da informaticidade global, são “de transição”, como foi a eletricidade.

Uma vez passando a depender de uma plataforma de transição, passamos a ter suas vantagens e problemas que sua chegada e permanência criam. Mas há uma diferença entre informaticidade e eletricidade: a primeira é programável por milhões de pessoas e muda o tempo todo. Ainda: as funções que executa dependem de muitos dados, de muita gente, ao mesmo tempo e por muito tempo.

Talvez precisemos de um pequeno conjunto de princípios básicos – como as Leis de Asimov para a robótica – para tratar a Era Digital a nosso favor. E tais princípios deveriam ser tão simples quanto fosse possível, mesmo que haja, e haverá, imenso debate sobre porque os princípios são esses.

Uma proposta para as Três Leis da Era Digital é a seguinte.

Primeira Lei: “Deve-se proteger os dados das pessoas”.

Segunda Lei: “Deve-se proteger as pessoas dos algoritmos”.

Terceira Lei: “Deve-se garantir que a Primeira e a Segunda Leis sejam bases para o Futuro e não caminhos para o Passado”.

Sem um conjunto pequeno e até simples de se entender, fora do discurso jurídico, será muito difícil escrever as próprias normas jurídicas desse futuro, que já não é mais opcional, mas certo. Ou incerto, no que tange a suas leis e regras...”

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Orgulho e preconceito




“Orgulho e preconceito
      
Por Ana Carla Abrão

Orgulho e Preconceito é o título do romance da novelista inglesa Jane Austen, publicado em 1813, que explora com ironia a dependência das mulheres em uma época onde o casamento das filhas era a única forma de garantir proteção e estabilidade financeira a uma família de cinco irmãs. Dois séculos se passaram e muita coisa mudou. Em quase todo o mundo, as mulheres ganharam independência e espaço, inclusive quando o assunto é finanças. Mas ainda há um caminho longo pela frente e enquanto ele não for percorrido, empresas desperdiçam recursos, países crescem menos do que poderiam e o mundo fica menos diverso do que deveria.

O relatório Mulheres nos Serviços Financeiros 2020 – WinFS (Women in Financial Services, na versão em inglês), publicado na semana passada pela Oliver Wyman, é a terceira edição de um trabalho sobre representatividade feminina na indústria financeira. O estudo deste ano mostra que houve avanços relevantes quando se considera a força de trabalho das empresas do setor financeiro. Observa-se uma postura diferente na indústria como um todo, com recorde de representação feminina nos cargos de liderança.

Ocupamos 20% das posições nos comitês executivos e 23% nos conselhos de administração de empresas financeiras, um avanço importante se tomarmos como base os 11% observados nas duas dimensões em 2003, quando o índice começou a ser calculado. Os avanços surgem também na forma como a diversidade de gênero passou a ser encarada. Garantir oportunidades para mulheres de talento leva a melhores resultados e passa a ser reconhecido como um tema estratégico pela grande maioria das empresas financeiras mundo afora. Tanto que atração, seleção e retenção de talentos femininos passam a estar ligados a metas e também à remuneração dos executivos.

Mas há um aspecto adicional a ser considerado na discussão de diversidade de gênero no setor financeiro que é a preocupação em garantir equilíbrio também na dimensão cliente. Ampliar oportunidades e equilibrar a oferta de serviços financeiros com a visão de diversidade e inclusão significa alavancar recursos e colher resultados. Esse é o passo que falta para que, além da mudança de atitude em relação à representatividade feminina na liderança e nos postos de trabalho, possamos também provocar uma nova onda de mudança na direção de maiores oportunidades para as mulheres de forma geral.

Os números são impressionantes. O WinFS calcula em cerca de US$ 700 bilhões o potencial de retorno a ser capturado com uma oferta mais equilibrada de serviços financeiros a mulheres que hoje são investidoras, gestoras de empresas ou empreendedoras.

Afinal, 2/3 dos orçamentos familiares são controlados por mulheres; 40% das empresas são geridas por mulheres e 40% da fortuna global é detida atualmente por mulheres. Além disso, enquanto nas grandes empresas somente 12% dos gestores das áreas financeiras são mulheres, esse número chega a 34% nas empresas menores. Por outro lado, a probabilidade de uma mulher empreendedora ter acesso a um financiamento para a sua empresa é 30% menor do que a de um homem e sua renda tende a ser, na aposentadoria, 30% a 40% menor do que a dos homens. Ainda segundo o estudo, mulheres são o grupo de consumidores com maior deficiência de atendimento no setor de serviços financeiros, apesar da sua crescente posição de influência nesse segmento.

A provocação vai além ao detalhar alguns cenários. Caso não houvesse desigualdade salarial entre homens e mulheres e as empresas de seguros vendessem seguro de vida para mulheres na mesma proporção que o fazem para homens, o valor dos prêmios na indústria de seguros aumentaria em cerca de US$ 500 bilhões. Nas relações de investimento, uma melhor gestão dos ativos detidos por mulheres geraria US$ 25 bilhões anuais adicionais em taxas de administração e outras receitas. No crédito, a expansão dos financiamentos ao consumo e imobiliário e a concessão de crédito para empresas pequenas e médias geridas por mulheres traria quase US$ 100 bilhões adicionais em retorno nas carteiras de crédito dos bancos. Ou seja, num mundo em que mais e mais mulheres tomam a frente das suas finanças, colocá-las no foco pode significar melhores resultados.

Equilíbrio de gênero no mercado financeiro vai, portanto, muito além de garantir igualdade de oportunidades de desenvolvimento profissional para mulheres cujo talento, disposição, comprometimento e potencial são limitados por barreiras culturais, conscientes ou não. Alavancar a representação feminina como cliente de serviços financeiros também dá retorno. Parafraseando Austen e tomando emprestada a sua ironia: trata-se de uma verdade universal que todo homem solteiro, detentor ou não de uma boa fortuna, busca uma mulher que saiba gerir suas finanças.”

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Toffoli ainda não é a Constituição




“Toffoli ainda não é a Constituição
     
Por Fernão Lara Mesquita

O Brasil, apesar de tudo, vai decolar. Porque quer, porque precisa e porque agora pode, com ou sem a anuência dos analistas que, ou porque ainda não entenderam ou porque já entenderam perfeitamente o que depende de quê, dão preferência absoluta ao Bolsonaro de sempre sobre o Paulo Guedes de nunca antes na História deste país ... que é o Bolsonaro que proporciona.

Vai decolar não só porque a necessidade tem muita força, mas porque vem aí o choque da energia industrial a gás, o mesmo tipo de impulso de raiz que, há um par de anos, teve força para virar o jogo nos EUA, está determinado a sair do seu isolamento e reintegrar-se às correntes financeiras e de comércio do mundo, retirou-se definitivamente do túmulo da bandalheira sindical getulista onde jazia ao lado da Argentina e quer mais...

Lula já entendeu que assim é e que se assim for o sonho acabou. Ele morre falando sozinho. Por isso anda azedo feito limão. A conferir se o Brasil fará dele mais uma dose de limonada purgativa ou, como prenunciam os primeiros ensaios, apenas uma omelete.

Por baixo da gordura retórica de que se costumam cercar as análises do drama brasileiro jaz, frio e muito básico, um país assaltado à mão armada de lei onde os roubados são roubados na primeira instância e os ladrões não são presos nem depois da quarta. Como consequência, o orçamento público foi apropriado praticamente inteiro pela privilegiatura que o lulismo tornou morbidamente obesa e o investimento público desapareceu. Não são mais que a amputação desses quase 40% do PIB e, principalmente, que a ressaca da sistematização da empulhação que se requer para tornar possível a convivência com uma iniquidade tão repulsiva essa miséria e essa violência crônicas em que o País anda mergulhado.

Não há argumento tragável contra a reforma radical disso tudo. Certamente não será apontando a Venezuela de Maduro e a Cuba dos Castros, defendendo a privilegiatura ou mantendo estatais nas mãos dos mais notórios barões da bandidocracia que “o homem mais honesto do Brasil” vai seduzir os brasileiros e expandir para muito além das fronteiras do Baixo Leblon o que resta da esquerda antidemocrática. PSOL, PCdoB e PCO, mais o MST, foi tudo o que ele conseguiu incluir na sua lista de agradecimentos na porta da cadeia.

A batalha final do lulismo, para além das incursões de praxe no território do crime, vai se ater, portanto, à tentativa de atribuir aos outros o “direito autoral” do PT sobre a miséria do Brasil. Jogar pobres contra ricos pra valer seria, aliás, a esta altura, o meio mais contundente de denunciar a privilegiatura. O IBGE pôs em R$ 27.213 o limite acima do qual está o 1% mais rico da população. Considerando 220 milhões de brasileiros, é de 2,2 milhões de pessoas que estamos falando. Desconte-se daí a dezena de milhares de “super-ricos” mais o que resta do Brasil meritocrático ainda não reduzido a viver de bico e o que sobra é um número muito parecido com o dos funcionários federais dos três Poderes ativos ou aposentados para os quais esses R$ 27 mil para cima são o mínimo que vem escrito no holerite, aquele documento feito para esconder o grosso do que recebem sob mil disfarces para sustentar o vidão que levam. 36,1 vezes, considerado só o valor nominal, os R$ 754 por mês de que tira o seu sustento a metade mais pobre dos brasileiros; 67% a mais do que ganham trabalhadores em funções idênticas na economia privada, a que cria e não apenas consome riquezas. No mesmo estudo o IBGE põe em R$ 5.214 o limite acima do qual estão os 10% mais ricos do País (haja miséria!). O salário de início das carreiras federais está, em média nos R$ 9 mil. E mesmo nos Estados e nos municípios cujo funcionalismo compõe a pequena nobreza do Império da Privilegiatura será difícil encontrar quem esteja abaixo desse nível. Tudo pago com o dinheiro que “não há” para investir nos requisitos mínimos para que os miseráveis saiam da miséria: educação, saúde e segurança públicas.

Seria moleza, portanto, ganhar uma discussão sobre pobres contra ricos e o papel do Estado como o “mais justo distribuidor da riqueza nacional”, não fosse o acesso à política um privilégio exclusivo da privilegiatura sem distinção de ideologia alegada, o que certamente inibirá uma clara exposição de quem são os ricos do Brasil pelas partes envolvidas nessa disputa. Sem povo na rua não vai...

Desde pelo menos 1956, quando o 20.º Congresso do Partido Comunista Soviético confirmou oficialmente ao mundo que “o sonho” não passara de um pesadelo afogado em sangue, a violência física, a corrupção e a violência semântica, vulgo mentira, têm sido os únicos argumentos dos inimigos da democracia. A conquista do sindicato dos bancários e do controle dos fundos de pensão das estatais, rezava o Plano Gushiken que o companheiro Dirceu, sob as ordens de Lula, executou à risca, seriam o “Abre-te Sésamo” da caverna do poder para o PT. Nasce aí o “jornalismo de acesso” aos pecadilhos financeiros dos adversários mais incômodos oferecidos pela “PT-POL”, como eram chamadas nas redações dos anos 90 as “fontes” sob o comando do companheiro Berzoini. Uma vez lá, “Ésley & Ésley Lavanderias Planetárias” fariam do dinheiro para sempre um não problema para os autores do “maior assalto a um Tesouro Nacional da história da humanidade”.

Mas no meio do caminho tinha um Sergio Moro. Tinha um Sergio Moro no meio do caminho. O Brasil nunca se esquecerá desse acontecimento na vida de suas retinas tão fatigadas…

Para que o excelentíssimo “amigo do amigo” do pai do Marcelo Odebrecht quer agora, depois da dos hackers da Lava Jato, a pacoteira de informações do Coaf sobre as “movimentações atípicas” de dinheiro da mulher dele e da daquele outro ministro de súbitas convicções jurídicas adquiridas e de mais 599.998 brasileiros, entre os quais se incluem todos os elementos-chave do jogo do poder, eu não faço a mais vaga ideia. Mas o certo é que ele não tem esse direito. Nenhuma lei, nenhuma norma constitucional lhe dá o poder de requerê-la. “C’est pas lui la Constitution”, ainda...”

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O Big Toffoli





“O Big Toffoli

Por Fernando Gabeira

Numa semana muita dura e cheia de eventos, pensei em trazer um tema novo. Já falei de Bolívia e Chile, comentei a saída de Lula e me debrucei, sem ânimo, sobre a invasão da embaixada da Venezuela em Brasília. Isto me interessou, pois poderia usar de novo a palavra quiproquó, tão sonora e fora de moda.

Sinceramente, meu tema de preferência era um chamado projeto Nightingale, no qual o Google é acusado de vender milhões de dados médicos e hospitalares das pessoas para grandes empresas do setor. A coleta e venda de informações é um grande negócio no mundo. Tende a ser o mais interessante, pois os dados valem dinheiro, sobretudo em grandes quantidades.

Iria refletir um pouco sobre a privacidade num mundo do Google e das redes sociais quando soube que o presidente do STF, Dias Toffoli, agora por um artifício legal, tem acesso aos dados financeiros de 600 mil contas de pessoas e empresas.

Ele proibiu a UIF (antigo Coaf) de partilhar esses dados com os órgãos de investigação. Um absurdo sem nome. Tenho escrito sobre isso e, para dizer a verdade, com pouca repercussão. É um ato de exceção. Os próprios funcionários da OCDE que estiveram no Brasil dizem que a medida de Toffoli está em contradição com as normas e os compromissos internacionais do Brasil.

Toffoli não se interessa por isso. Seu objetivo era congelar as investigações sobre Flávio Bolsonaro e impedir que a Receita continuasse pesquisando os movimentos financeiros de sua mulher e da mulher de Gilmar Mendes. Ele não se contentou em paralisar investigações. Ele quer acesso a todos os dados coletados pela inteligência financeira.

É o Big Toffoli navegando pelas contas de todo mundo, conhecendo os segredos financeiros que ele mesmo impede de serem investigados adequadamente. Como é possível o país conviver com essa barbaridade? Mesmo os aliados de Toffoli deveriam temer essa concentração de poder. Nos últimos tempos, aproximou-se de Bolsonaro para salvar a pele do filho senador. Mas, no passado, foi um funcionário do PT, um assessor de José Dirceu.

Acho que tanto o PT como Bolsonaro deveriam temer Toffoli. A quem servirá com esse acesso ilimitado aos dados pessoais e empresariais? Pode usá-los para fulminar Bolsonaro ou mesmo para enrascar mais ainda seu partido de coração, que é o PT.

Em muitos lugares do mundo, a Justiça se move na tentativa de preservar a privacidade das pessoas, acossando o Google e o Facebook, entre outros. Aqui no Brasil é diferente. É a própria Justiça que invade a privacidade alheia, na pessoa do presidente do STF. Não se trata mais nos trópicos de reduzir o poder das gigantescas empresas, mas de ampliar ao extremo o poder pessoal de Toffoli.

Num mesmo ano, Toffoli salvou Lula e Bolsonaro. Lula porque foi dele, fiel advogado do PT, o voto de Minerva que acabou com a prisão em segunda instância. E Bolsonaro, porque foi ele quem tirou as nádegas do jovem Flávio da seringa do controle de operações financeiras.

Podemos falar tudo de Lula ou Bolsonaro. Mas ninguém apanha mais do que eles nas redes ou na imprensa. Ambos reclamam, Bolsonaro tira verbas publicitárias de quem o critica; Lula, volta e meia, se lembra do controle social da imprensa. Mas nenhum dos dois chegou ao ponto de Toffoli: instalar uma delegacia, convocar Alexandre de Moraes como seu braço policial e partir para cima de quem o critica, com polícia revistando casas e computadores.

Lula precisou de Toffoli. Bolsonaro também. Mas eles ignoram, talvez, que Toffoli seja muito mais do que um simples auxiliar para encrencas. Diante da vulnerabilidade dos líderes populistas que polarizam o Brasil, ele vai construindo seu universo pessoal de poder. E um poder mais persuasivo que o deles.

Toffoli é o Big Toffoli. Assim com os homens e, além disso, é o único que tem poder de acessar os dados financeiros de quase todo mundo. Digo quase todo mundo, porque não me incluo nesses 600 mil. Minha conta bancária é de uma monotonia tediosa. Mas não me inibo em defender a privacidade dos outros, ricos ou pobres.

Em 13 anos de oposição, o PT nunca me fez mal. Espero o mesmo de Bolsonaro. Ambos têm seguidores agressivos. Mas nenhum pode como Toffoli mandar a Polícia Federal vasculhar meus computadores, incluir-me nos detratores do Supremo.

A democracia tropical, com a sua incessante troca de favores, está parindo um monstro. Uso a expressão num contexto institucional. Pessoalmente, Toffoli até se parece com um desses candidatos por quem suspiram velhas senhoras em busca de bons moços para votar.

Mas a ampliacão do seu poder pela captura de dados financeiros o transforma num Big Toffoli.”

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Jornada de otários





“Jornada de otários
     
Por Bolívar Lamounier

Na quarta década do século 17, na França, a rainha-mãe Maria de Médici e seus aliados na aristocracia pressionaram o rei Luís XIII a abrir-lhes mais espaço no poder, e sabiam que só lograriam tal objetivo forçando o rei a afastar o cardeal Richelieu do governo. Acharam que a pressão exercida entre 1630 e 1632 havia surtido efeito, mas erraram redondamente. O arguto cardeal ganhou a confiança do rei, deu a volta por cima, aumentou ainda mais sua influência e entrou para a História como um dos artífices da formação do Estado nacional francês. Desde então os historiadores passaram a se referir à jogada da rainha-mãe e seus amigos como une journée des dupes, ou uma jornada de otários.

A expressão foi também usada no Brasil, em 1840, por motivos de certa forma parecidos. A turbulência do período regencial e o recuo de uma ala liberal que havia exagerado na descentralização do poder forçou a elite política a buscar uma forma de estabilizar o País. A solução alvitrada foi uma medida legislativa mediante a qual anteciparam a maioridade de dom Pedro II, então um adolescente de 15 anos. Consumado o chamado “golpe parlamentar da maioridade”, o jovem monarca começou a governar, demonstrando personalidade, mantendo tanto os líderes liberais como os conservadores a conveniente distância. Tendo ficado a ver navios, restou-lhes o consolo de haverem herdado dos franceses a distinção de terem participado de uma jornada de otários.

Tenho para mim que tais jornadas ocorrem regularmente, embora assuma formas variadas, ao longo da História. Podem os meus leitores imaginar quantos milhares ou milhões de indivíduos desempenharam esse papel nos quatro séculos decorridos desde o dia em que Maria de Médici pisou em sua casca de banana?

Embora a condição de otário me pareça uma constante histórica, ando arqueado pela impressão de estar ela se manifestando com excepcional intensidade no momento atual, não só no Brasil, mas em numerosos países. Minha impressão se deve à crescente frequência com que grupos “identitaristas” se empenham em destroçar o convívio em sociedades até há pouco razoavelmente integradas e políticos anunciam e trabalham ativamente para pôr abaixo a democracia representativa.

Vejam o caso dos Estados Unidos. Sou leitor assíduo da edição digital da revista The Atlantic, uma das melhores do mundo, que diariamente me proporciona uma magnífica variedade de análises e relatos conjunturais. Senti um frio na espinha ao ler, na terça 12, uma nota em que seu diretor, Jeffrey Goldberg, anuncia para dezembro uma edição especialíssima, cujo título geral será Uma Nação se Esfacelando (A Nation Coming Apart). Com esse duro título, Golberg externa sua convicção de que os americanos estão se destroçando mutuamente. Mas tudo bem, vá lá que há exagero.

Pensemos no “fim da democracia”. Registros dessa “profecia” podem ser encontrados facilmente desde as primeiras décadas do século passado. É outra proposição que aparece com regularidade, com variações, mas com dois traços principais. Primeiro, por trás dela sempre há algum candidato a ditador querendo, por ações ou omissões, acabar com a competição eleitoral, o pluralismo, as garantias individuais, etc., a fim de enfeixar em suas mãos todo o poder. Essa ambição tanto pode motivar políticos que gozam efetivamente de certa popularidade (como Getúlio Vargas em 1937) como outros que nutrem o delírio de governar pacificamente um país mesmo conscientes da intensa rejeição que grande parte da sociedade sente por eles.

Um exemplo caseiro é o próprio Getúlio do segundo governo, levado ao suicídio em 1964. Outros são Lula, que se julga predestinado a voltar à Presidência, o boliviano Evo Morales, forçado à renúncia poucos dias atrás, e o húngaro Viktor Orbán, criador de um conceito preciosamente contraditório, a “democracia antiliberal”. Um dado novo nessa velha história é que agora tais líderes manobram para se perpetuarem no poder por meio de eleições fajutas ou da implementação de programas de governo que lhes permitam voar no tapete mágico da popularidade populista.

Outra constante nessa história é o desapreço pelas consequências. Os líderes a que aludi no parágrafo anterior nunca se dão ao trabalho de destrinchar o significado da expressão “fim da democracia”, muito menos indicar que outro sistema estável de poder e legitimidade irá substituir o regime representativo. Parecem ou são de fato incapazes de sequer balbuciar uma resposta para tal indagação. A democracia acaba e que outro modelo eles imaginam poder pôr no lugar dela? Muitos pensam que a democracia é um luxo que só pode ser gozado por sociedades que hajam atingido um alto grau de desenvolvimento, quando o certo é precisamente o oposto: ela é uma forma política estável e flexível que permite o paulatino equacionamento dos conflitos de interesse mesmo em sociedades pobres.

Em nossa triste América Latina, o day after dos golpes pode ser previsto com extrema facilidade. Cada país passa por alguns anos de instabilidade populista, depois tenta retornar, com a mesma falta de convicção ao regime representativo, depois o golpeiam novamente, etc., etc. Casos há em que os ciclos desse eterno retorno se mantêm por um dilatado período de tempo, praticamente tornando inviável o desenvolvimento econômico e social das respectivas sociedades. Eis aí a Argentina – outrora um dos países mais ricos do mundo – que não me deixa mentir. Evitemos, porém, qualquer nuance de regozijo ante a desgraça argentina. Os impasses que vêm travando nossa recuperação econômica e nosso pífio investimento anual de 16% do PIB poderão conduzir-nos a um precipício semelhante. Pelo menos desse ponto de vista, façamos o possível para não cair noutra jornada de otários.”

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Velha e desacreditada




Velha e desacreditada
     
Por Almir Pazzianotto Pinto

Para os padrões brasileiros, a Constituição de 1988 atingiu a velhice. Mais longevas, a Carta Imperial de 25 de março de 1824 e a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. A primeira durou 65 anos; a segunda, 40. Ambas foram emendadas uma só vez.

A Constituição de 16 de julho de 1934 foi abatida pelo golpe de 10 de novembro de 1937, aos três anos de vida. A Carta Constitucional editada no mesmo dia teve vida acidentada. Recebeu 21 emendas e sobreviveu até a queda de Getúlio Vargas, em 29 de outubro de 1945. A Constituição promulgada em 18 setembro de 1946 sofreu o impacto do Ato Institucional de 10 de abril de 1964, editado pelos comandantes-chefes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, em nome do “movimento militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva do seu futuro”, como escreveram no manifesto à Nação. Seguidos atos institucionais e complementares, baixados pelo presidente Castelo Branco, impuseram-lhe a pena de morte e a substituição pela Constituição de 24 de janeiro de 1967, de brevíssima duração. Ferida pelo Ato Institucional n.º 5, de 13/12/1968, sucumbiu diante da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1968, nossa sétima Constituição e a segunda de origem discricionária.

Depositária dos anseios dos miseráveis esquecidos, da classe média empobrecida, dos desempregados, a Assembleia Nacional Constituinte eleita em 15 sw outubro de 1986 foi instalada no em 1.º de fevereiro de 1987 sem pompa e circunstância, em sessão ruidosa e tumultuada. Deveria ser o primeiro passo na tarefa de erradicação de antigos problemas sociais, políticos, morais e econômicos. Passados mais de 30 anos, o exagerado otimismo foi desmentido pelos fatos.

Entre os 559 constituintes destacavam-se veteranos e escolados representantes da velha política, conhecidos como “raposas”. A maioria não tinha conhecimentos da história, de economia, da origem e do conteúdo das Constituições anteriores. Alguns poderiam ser qualificados como medíocres. Poucos juristas se confundiam entre deputados e senadores ávidos de poder e sob a pressão de lobistas. Para muitos a experiência parlamentar se reduziu a um único mandato. Nas eleições seguintes voltaram ao justo anonimato.

Construída ao sabor do acaso, sem arcabouço elaborado por especialistas imbuídos de espírito cívico, a oitava Constituição foi promulgada em 5 de outubro de 1988 com 245 artigos, ao qual veio apensado o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), trazendo 70 regras de transição. O artigo 3. º do ADCT fixou período de carência de cinco anos a partir do qual seriam admitidas emendas de revisão. Em 6 de outubro de 1993 abriram-se largos portões aos remendos, iniciados com a promulgação da Emenda n.º 1, em 2 de março de 1994. Desde então foram introduzidas seis emendas de revisão e cem emendas constitucionais, às vésperas da 101.ª, que tratará da reforma administrativa, à qual se seguirão outras à espera de movimentação.

O prazo de validade da Lei Fundamental está vencido. Não serão emendas que vão reconstruí-la, para aproximá-la do ideal. Ao contrário, quanto mais emendada, maior e mais aberta a violações e perigosas interpretações.

Sendo assim, por que não cobrar dos partidos que apresentem, nas eleições de 2022, como plataforma de governo, o projeto de nova e breve Lei Orgânica Nacional, limitada a descrever a composição e as competências dos três Poderes e as relações entre eles e os cidadãos? O que não é constitucional ficará para a legislação ordinária, flexível, facilmente reformável. Assim ordenava o artigo 178 da Carta Imperial de 1824, inspirado no constitucionalismo inglês, apontado como chave de seu êxito e durabilidade.

A nona Constituição poderá ser presidencialista ou parlamentarista. Preservará, porém, a República federativa, a pluralidade partidária, o voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos Poderes, o princípio da legalidade, o devido processo legal, o habeas corpus, a ordem econômica fundada na livre-iniciativa, a liberdade de imprensa, a função social da propriedade, a dignidade do trabalho, a busca do pleno emprego. Para assegurar-lhe estabilidade cláusula pétrea deverá defendê-la de alterações durante 20 anos.

Os candidatos se comprometerão a reduzir o tamanho do Estado, a robustecer o sistema federativo, a restabelecer o princípio do duplo grau de jurisdição, a extinguir o Fundo Partidário e o Fundo de Financiamento Eleitoral, a diminuir o número de deputados federais, estaduais e senadores, a reduzir a carga fiscal.

Imprimindo caráter plebiscitário às eleições de 2022, os partidos deverão apresentar como alternativas: 1) revisão integral da Constituição de 1988, destinada a enxugá-la de maneira definitiva, ou 2) convocação de Assembleia Constituinte exclusiva, destinada a referendar Lei Fundamental projetada por equipe de constitucionalistas de ilibada reputação e reconhecido saber jurídico, referendada em consulta nacional.

O defeito da Constituição de 1988 reside no texto minucioso, extenso, impreciso. Vêm à lembrança palavras de Pablo Lucas Verdú: “A prolixidade de uma Constituição se paga ao preço da dificuldade de interpretação. A dificuldade de interpretação, com o fracasso da aplicação” (Curso de Direito Político, Ed. Tecnos, Madri, 1986, vol. II, pág. 440). Transbordante de boas intenções, a Constituição foi elaborada com desprezo à realidade. Os resultados são conhecidos. Podem ser aferidos na radicalização do cenário político, na insegurança jurídica, na crise econômica, no aumento da litigiosidade, na corrupção, na expansão da miséria.

“Fazer um Estado que seja verdadeiro quer dizer fazer uma Constituição que seja verdadeira”, disse Charles de Gaulle e registrou André Malraux em Antimemórias. É inadiável a substituição, sem golpe de Estado, da Constituição. Não se incorrendo, porém, nos excessos da Assembleia Nacional Constituinte.”

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Como é na democracia




“Como é na democracia – 1
     
Por Fernão Lara Mesquita

Hoje, 5 de novembro, é dia de eleições nos EUA. Nada de muito importante. Alguma coisa está sendo votada pelo povo quase todos os dias lá. Tem as eleições de calendário (de 2 em 2 anos), tem votações para retomar mandatos (recall), desbancar juízes (dois anos atrás West Virginia cassou os cinco da sua suprema corte), aprovar ou reprovar leis ou decidir outras questões pontuais de interesse de um ou mais distritos eleitorais.

Lá cada cidade pode escolher o tipo de governo que quer ter. A maioria nem tem mais prefeito. Tem um CEO e uma espécie de diretoria (council) de profissionais para cuidar de cada área importante, como abastecimento de água, saneamento, segurança, agricultura, zoneamento, etc. Cada cidade é livre para decidir quais quer ter. Cidades e Estados elegem “secretários de Estado” cuja única função é organizar essas eleições, “deseleições” ou votações localizadas convocadas pelos cidadãos.

A de hoje [5 de novembro] vai eleger governadores e renovar algumas dezenas de cargos executivos em 8 Estados e dezenas de municípios. Tomando carona nas cédulas, como ocorre em toda eleição por lá, 32 leis de iniciativa popular de alcance estadual e 141 de alcance municipal estão qualificadas para pedir um “sim” ou um “não” dos eleitores na de hoje.

Eis alguns exemplos:

Washington convocou o Referendo 88 para modificar a legislação estadual de “ações afirmativas”. É uma rara iniciativa popular para vetar outra iniciativa popular. A I-1000 conseguiu em 2018 assinaturas bastantes para ser submetida ao Legislativo estadual, que a aprovou num processo de Iniciativa Indireta (leis que nascem na rua e acabam aprovadas no Legislativo). Como o eleitor é a fonte suprema do poder, o Referendo 88 quer derrubar, agora no voto direto, o que o Legislativo local aprovou “contra o princípio que proíbe o Estado de discriminar seus empregados ou os destinatários dos seus serviços por raça, gênero ou nacionalidade”. Nada de STF. O povo vai decidir o que quer.

A Iniciativa Popular 976, também de Washington, proíbe a cobrança de taxa superior a US$ 30 (sim, trintinha...) para o licenciamento de veículos de menos de 5 toneladas.

A Proposição CC, no Colorado, quer autorizar o Estado a gastar acima do teto estabelecido para transporte e educação. Hoje o Estado é obrigado a devolver aos contribuintes todos os gastos que ultrapassarem esse teto definido anualmente com base na inflação. Esses limites são estabelecidos na Tabor (Taxpayer Bill of Rights) uma iniciativa pioneira do Colorado que em 1992 instituiu com a aprovação de 19 leis de iniciativa popular limitando drasticamente a liberdade do Estado de criar ou alterar impostos sem consulta no voto a quem vai pagá-los, a primeira “Carta de Direitos dos Contribuintes” do país. Desde então esse pacote foi copiado por dezenas de Estados.

Ainda no Colorado, um dos sete Estados mais sujeitos a seca do país, estará nas cédulas a Proposição DD, que legaliza casas de apostas em esportes cobrando 10% de imposto dedicado a obras contra a seca.

A Pennsylvania vai decidir a adoção ou não do pacote de leis contra o relaxamento de prisão e penas alternativas para criminosos sem a participação das famílias das suas vítimas nas audiências onde são decididas, conhecido como Marsy’s Law. A campanha foi lançada nos anos 90 pelo irmão de uma moça assassinada cuja mãe teve um colapso dentro do tribunal que aliviou a pena do assassino de sua filha após poucos anos de reclusão. Doze Estados já adotaram esse pacote, que está qualificado para subir também às cédulas de Wisconsin na eleição presidencial de 2020.

A Proposição n.º 4 do Texas pretende emendar a Constituição estadual para tornar virtualmente irreversível a proibição de cobrança de imposto de renda sobre pessoas físicas, que já vigora por lá.

No âmbito municipal tem especial interesse a Proposição 205 de Tucson, Arizona, que pode declarar-se Cidade Santuário de Imigrantes, contra a política oficial de Donald Trump (sim, o zé-povinho manda mais também que o presidente). A lei, se aprovada, proíbe a polícia local de interpelar pessoas sobre sua condição de imigração ou que agentes federais ajam nesse sentido em seu território.

A Questão Municipal n.º 1 será apreciada pelos eleitores da cidade de Nova York alterando o sistema local de eleições. Em vez de turnos sucessivos, os eleitores poderão inscrever cinco nomes em ordem de preferência em suas cédulas para diversos cargos de funcionários eleitos. Se aprovado, NY será a jurisdição mais populosa a adotar esse sistema.

São Francisco avaliará a Proposição F, restringindo contribuições de empresas com interesse relacionados a leis de zoneamento para campanhas para prefeito, promotor público e outros cargos. A lei também estabelece novas condições de disclosure (informação ao eleitor) para contribuições de campanha.

Da reforma da escola do bairro ou a construção de uma nova ponte até temas como esses acima, tudo lá é decidido no voto por quem paga a conta. Na virada do século 19 para o 20, saindo de uma guerra civil e enfrentando um amplo processo de disrupção introduzido pela urbanização desordenada e a corrupção desenfreada decorrente do conluio entre donos de ferrovias (a “rede” de então), políticos e empresários corruptos pelo domínio monopolístico de setores estratégicos da economia, os americanos importaram da Suíça as ferramentas de controle dos representantes eleitos com que desinfetaram sua política e domaram os famigerados “robber barons” com uma inteligente legislação antitruste que defendia o consumidor impondo níveis mínimos de concorrência. Vêm, desde então, reformando sua democracia “no voto” um pouco a cada dia, a única maneira possível de gerenciar a vida de um país de diversidade continental num mundo mutante.

Se o seu jornal ou a sua TV nunca lhe contou que isso existe nem mostrou como funciona, atenção: você está sendo traído.”

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“Como é na democracia – 2
     
Por Fernão Lara Mesquita

O primeiro artigo desta série mostrou com exemplos da eleição de terça passada (5/11) como os americanos decidem no voto tudo o que afeta a sua vida, num processo permanente de reformas de iniciativa popular.

Como garantem a segurança e a legitimidade desse processo?

A primeira preocupação dos Fundadores, fugitivos de uma Europa onde qualquer um podia ter seus bens confiscados ou até perder a cabeça apenas porque sua majestade acordou de mau humor, foi tornar invulneráveis o cidadão comum e os frutos do seu trabalho com regras tão simples, econômicas e transparentes que pudessem ser compreendidas até pelo menos ilustrado dos mortais.

O resultado é uma obra-prima sem precedentes nem sucessores na História do mundo, tão solidamente amarrada a verdades indestrutíveis por argumentos que desde então só pôde ser desafiada pela violência. Física primeiro, intelectual agora, quando os inimigos da democracia tratam de destruir o próprio conceito de verdade, o que é o reconhecimento último da identificação perfeita que veem entre uma coisa e outra.

As instituições americanas distinguem “direitos negativos” de “direitos positivos” e estabelecem uma hierarquia entre eles. Só os direitos negativos, “naturais e reconhecidos pelos homens de todos tempos”, estão inscritos na Constituição federal, aos quais todos os outros estão subordinados. São eles os que decorrem da inviolabilidade da pessoa e, portanto, exigem que seu beneficiário não seja sujeitado por atos do governo ou de outras pessoas para tê-los satisfeitos: o direito à vida (e à legitima defesa), à propriedade (ao produto do seu trabalho), à liberdade de crença, de pensamento e de expressão, etc.

São direitos positivos (artificiais) os que requerem aportes de recursos de outras pessoas, diretamente ou através do governo, para que o seu beneficiário possa desfrutá-los: o direito a um determinado nível de vida, à educação, à moradia, à estabilidade no emprego, a salários e aposentadorias privilegiados, etc.

Como todo direito positivo viola o direito negativo de todos de não ser expropriado, estes só podem ser instituídos numa democracia mediante o consentimento explícito (no voto) de quem vai pagar por eles. Por isso, lá, tais direitos só podem ser inscritos em leis e Constituições estaduais ou municipais depois da aprovação, no voto, da comunidade interessada.

Para que esse processo pudesse tornar-se operacional numa democracia na qual “todo poder emana do povo”, que, pela extensão do território envolvido, tem de ser necessariamente “exercido por seus representantes eleitos”, definir as regras para tornar essa representação a mais fiel possível é a tarefa mais essencial de todo o conjunto.

Nasce daí o sistema de eleição distrital puro. Nele o tamanho de cada distrito eleitoral é dado pela divisão do número de habitantes pelo número de representantes desejados em cada órgão de representação. A menor célula é o bairro, que elege o conselho diretor da escola pública local. A maior, o distrito federal, que elege um deputado federal. Com 340 milhões de habitantes e 435 deputados, cada distrito federal tem, lá, aproximadamente 780 mil habitantes. Cada distrito federal incorporará um determinado número de distritos estaduais, que incluirão uma soma de distritos municipais, por sua vez resultantes de uma soma de distritos escolares. Todos são desenhados sobre o mapa real de distribuição da população e só podem ser alterados em função do que o censo apurar a cada dez anos.

Como cada candidato só pode se oferecer aos eleitores de um distrito, todo representante eleito sabe exatamente, pelo endereço, quem é cada um dos seus “donos”.

Ao longo do primeiro século depois da Constituição de 1787, com a memória ainda viva do poder dos reis, prevaleceu a preocupação dos Fundadores de blindar os representantes eleitos contra tentativas do Executivo de dominá-los. Foi um erro fatal. Intocáveis enquanto durasse o mandato, não demorou para que se corrompessem a ponto de quase destruírem a jovem democracia.

Na virada do século 19 para o 20, com o país tão podre quanto está o Brasil hoje, eles importaram as ferramentas de controle usadas na Suíça que tornam os representantes eleitos sujeitos à reconfirmação da confiança dos eleitores a qualquer altura do mandato. Os direitos de retomada de mandato, iniciativa legislativa e referendo das leis dos Legislativos foram o “pé de cabra” com que outros direitos foram sendo arrancados ao “Sistema”. Despartidarização das eleições municipais e eleições primárias acabaram com a força dos caciques políticos e eleições de retenção de juízes jogaram por terra a resistência do Judiciário.

O princípio operacional é sempre o mesmo. Como todo representante tem “donos” conhecidos e toda lei tem um alcance determinado, até o nível estadual leis e representantes podem ser desafiados por qualquer cidadão. Se colher o número estipulado de assinaturas no seu distrito (em geral de 5% a 10% dos eleitores), é convocada nova eleição no distrito para retomar um mandato, rejeitar ou aprovar uma lei, propor ou recusar uma obra ou uma despesa pública específica. Tudo direto, preto no branco, com cada cidadão com sua pequena parcela de poder e nenhum indivíduo ou “movimento social” autorizado a decidir pelos outros. Desde então o contribuinte é quem decide que nível de imposto e remuneração dos servidores é justo, a vítima é quem decide qual a punição suficiente para cada crime e assim por diante. Os aperfeiçoamentos são introduzidos dia após dia, voto após voto, como mostraram os exemplos da eleição da semana passada.

Longe dos olhos, longe do coração. A medida da eficácia do sistema é a quantidade de liberdade, dinheiro, saúde, segurança e inovação que sobram por lá e faltam lancinantemente nos países que, isolados pela língua e tolhidos na sua capacidade de visão à distância (tele-visão), são mantidos ignorantes da única versão de democracia que põe o povo de fato no poder, e continuam vivendo numa condição medieval de insalubridade institucional.”

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Bolsonaro é contra a segunda instância?




“Bolsonaro é contra a segunda instância?
     
Por José Nêumanne

Qualquer brasileiro com mais de 12 anos e quociente de inteligência acima de 30 sabe de duas coisas essenciais sobre o presidente da República. A primeira é que ele fez toda a carreira política de vereador e deputado federal como representante da extrema direita nostálgica do regime militar, armamentista e inimiga da esquerda, da indústria da multa e da votação eletrônica. A segunda, que só é presidente pelo eventual apoio de antipetistas, devotos do combate à corrupção e exaustos da crise da economia estatista. A fé dos primeiros levou-o à campanha e a esperança dos outros, à vitória.

Esses grupos foram essenciais para sua passagem para o segundo turno e, mais ainda, pelos 57.796.986 votos (55,13% dos válidos) com que afastou do mais poderoso posto Lula, encarnado no poste do PT Fernando Haddad. No 11.º mês de mandato, o vencedor tem mantido sua fidelidade aos seguidores de origem, comandados nas redes sociais pelo filho Carlos, vereador no Rio de Janeiro, que ele sempre trata como artífice do feito. Daí a pauta prioritária do combate à ideologia nas escolas, do decreto das armas, do cancelamento de radares nas rodovias, da ecologia tornada substrato da ideologia socialista e agora do uso da renúncia de Evo Morales na Bolívia para substituir o voto eletrônico pelo impresso.

A reforma da Previdência, a aprovação da Medida Provisória (MP) da Liberdade Econômica e o lançamento do Plano Guedes, propondo a maior reforma da gestão pública na História, demonstram que os entusiastas da economia liberal, à Escola de Chicago de Milton Friedman, têm algo a comemorar. Mas o mesmo não se pode dizer dos avessos ao líder do PT e suas práticas de corrupção no maior assalto aos cofres públicos da História. Nem do compromisso de campanha de não permitir a continuação do processo de desmoralização e desmantelamento da mais popular operação de combate à corrupção da História, a Lava Jato, personificada em Sergio Moro e Deltan Dallagnol.

Em 21 de novembro de 2018 ele anunciou seu advogado-geral da União, o funcionário de carreira André Mendonça, apadrinhado toda a vida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. Em 30 de outubro de 2002, Mendonça bajulara Lula, recém-eleito, sem lhe citar o nome, na Folha de Londrina: “O fato é notório e não admite discussões e assim o coração do povo se enche de esperança, o mundo nos assiste com um misto de surpresa e admiração, embora alguns confiem desconfiando, mas certamente convictos de que o Brasil cresceu e seu povo amadureceu, restando consolidada a democracia não só porque o novo presidente foi eleito pelo povo, mas porque saiu do próprio povo”.

Só quem não tivesse conhecimento dessa confissão de devoção se surpreenderia com duas decisões coerentes do pastor presbiteriano criacionista (que não admite a evolução das espécies de Darwin) de apoio ao permanente padrinho. No cargo, destacou-se do mar de críticas generalizadas nos meios jurídicos de vergonha na cara contra dois despautérios de seu patrono. O primeiro foi o banquete milionário de medalhões de lagosta e vinhos três vezes premiados. O segundo, o decreto infame autorizando a perseguição a quaisquer críticos dos 11 ministros do STF, seus parentes e aderentes, que se mantém sem aval do plenário. Com o recuo da ainda mais cretina censura à revista Crusoé, que havia revelado o codinome de Toffoli no propinoduto da Odebrecht, “amigo do amigo do meu pai”, segundo Marcelo em pessoa.

Isso não incomodou o chefe. Ao contrário. Durante o ano inteiro, Jair Bolsonaro anunciou a indicação de Mendonça para a vaga a ser aberta daqui a um ano pela aposentadoria do decano Celso de Mello, no STF. O afilhado de Toffoli, tido pelo chefe como “terrivelmente evangélico”, também já foi dado como “mais supremável” do que Moro.

Neste ínterim, Maquiavel Toffoli, seguido pelo colega Gilmar Mendes, proibiu, em novo escárnio jurídico, o Ministério Público do Rio de investigar eventual participação do primogênito do presidente, Flávio Bolsonaro, num esquema de “rachadinha” na Assembleia Legislativa daquele Estado. Entrementes, o Conselho de Atividades Financeiras (Coaf), que deu aos procuradores as evidências para abertura de inquérito, voltou do Ministério da Justiça de Moro para o da Economia e, depois, para o Banco Central, com anuência do presidente. A notícia foi dada como evidência do desgaste do ministro, avalista para o público do compromisso com o eleitor pela manutenção do combate à corrupção e de força à Lava Jato.

Enquanto outro festejado herói da operação, Dallagnol, enfrenta as feras de Renan Calheiros no Conselho Nacional do Ministério Público, Bolsonaro esqueceu o coordenador da força-tarefa de Curitiba na escolha do procurador-geral da República. Nomeou para o cargo o amigo de um amigo de algum filho, Augusto Aras, que faltou a duas sessões em que o STF soltou os chefões da quadrilha petista, tendo sido substituído pelo subprocurador José Bonifácio Borges de Andrada. E este deixou sem resposta calúnias cuspidas sem nenhuma prova no voto de Gilmar Mendes, que nada tinham que ver com o assunto votado.

Bolsonaro não criticou publicamente a distorção da Constituição para soltar bandidos de colarinho branco. Depois da repercussão popular, associou-se às críticas do ministro Moro para responder timidamente à acusação de um deles, Lula, de que governa para milícias cariocas. Como o novo secretário da Receita afastou auditores acusados por Gilmar de terem incluído o nome de sua mulher, Guiomar, e o da do colega Toffoli, Roberta Rangel, na lista de contribuintes suspeitos, convém questionar se ele discorda mesmo dos votos de ambos contra a jurisprudência que autorizava o começo de cumprimento de pena de condenados na segunda instância.”

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Emergência fiscal




“Emergência fiscal
      
Por Ana Carla Abrão

Emergência é um termo que cai como uma luva na atual situação fiscal dos entes federados brasileiros, em particular dos Estados e municípios, que continuam – em sua ampla maioria – passando ao largo do processo de consolidação fiscal que começou a ganhar corpo na União em 2015 e se estabeleceu de forma clara a partir de meados de 2016. Bem verdade que mesmo na União esse movimento foi machucado pelos reajustes salariais do funcionalismo público federal aprovados na segunda metade de 2016, quando o País já estava afundado na sua maior recessão. Mas, se há algum lado bom nisso tudo, esses reajustes serviram para reforçar o descompasso que vem caracterizando a trajetória das despesas de pessoal no setor público no Brasil e para escancarar a dualidade do nosso mercado de trabalho – com o excesso de proteção de algumas categorias no setor público contrastando com a vulnerabilidade no setor privado.

As propostas de emenda constitucional (PEC), apresentadas pelo governo na última semana, jogam luz nessa situação ao se concentrarem no controle dos gastos públicos e em mecanismos que possam levar a uma melhor gestão fiscal de União, Estados e municípios. Uma delas, apelidada de PEC emergencial, visa à implantação de medidas transitórias e permanentes que reduzam gastos obrigatórios e, consequentemente, abram espaço para o aumento do investimento público. Afinal, os gastos públicos obrigatórios vêm crescendo de forma contínua enquanto os recursos para investimento mínguam a cada ano, comprimidos que estão por avanços nos gastos com pessoal – ativos e inativos, em todos os níveis da Federação e em todos os Poderes.

A PEC emergencial se concentra em eliminar uma longa lista de aberrações fiscais que se acumularam ao longo do tempo. Boa parte dessas aberrações surgiu como reação à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e encontrou um porto seguro nos Tribunais de Contas dos Estados e até mesmo no Supremo Tribunal Federal. É uma pena precisarmos de uma PEC para estabelecer conceitos que já deveriam estar consolidados, mas não é bem assim que funciona o Brasil depois de 1988. Há que se reconhecer, portanto, que esse conjunto de medidas enfrenta distorções conhecidas há anos e que merecem uma correção se quisermos avançar na direção de uma gestão fiscal responsável no Brasil. Lembremos, contudo, que o que vale não é o que entra no Congresso, e sim o que sai de lá. E o que sai dependerá da qualidade do texto que entrou e da capacidade política desse governo.

As medidas que constam da PEC emergencial são relativamente simples. Buscam reduzir o espaço de irresponsabilidade fiscal de gestores que usam o orçamento público como instrumento de distribuição de benesses via aumentos retroativos, vantagens, auxílios ou verbas indenizatórias que passam ao largo das restrições fiscais e impõem limitações e exigem avaliação de impacto das isenções tributárias, corrigindo uma tendência de se distribuir outro tanto dos orçamentos públicos para setores específicos, sem data de validade e sem nenhuma garantia de retorno social. Além disso, a PEC coloca os poderes autônomos na mesma linha do Executivo, chamando-os à sua responsabilidade fiscal e corrigindo o tratamento até aqui desigual em que Judiciário e Legislativo (principalmente nos entes subnacionais) ignoram a crise e deixam para os orçamentos da saúde, educação e segurança pública toda a conta do desequilíbrio fiscal.

Mas é na situação de emergência fiscal que algumas medidas ganham relevância ainda maior. Tanto pela linha de receita – com a vedação à concessão ou ampliação de incentivos de natureza tributária – como na de despesas (com o congelamento dos gastos com pessoal e a redução da jornada de trabalho com proporcional redução de salários), devolve-se ao gestor público mecanismos de correção dos desequilíbrios fiscais, alguns deles que lhe foram suprimidos por diversas ações diretas de inconstitucionalidade que mutilaram a LRF desde sua promulgação.

Causa espanto, contudo, a exclusão dos membros do Judiciário, do Ministério Público, da carreira diplomática e das carreiras policiais das vedações a promoções e progressões no regime de emergência fiscal. Esse ponto mostra que, mesmo quando o conceito correto prevalece, não resistimos às pressões corporativistas e tendemos a reforçar as castas e os privilégios num País em que a maioria agoniza. Ou seja, na emergência fiscal de um País quebrado, são sempre os mesmos a conseguir tratamento especial enquanto a grande maioria agoniza na fila sem direito a atendimento.”

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Guedes quer novo direito




“Guedes quer novo direito
      
Por Pedro Fernando Nery

Associado a “corte de direitos” (46.400 ocorrências no Google), “retirada de direitos” (47.200) e “perda de direitos” (51.900), Paulo Guedes apresentou a PEC do pacto federativo, que inclui um novo direito no art. 6.º da Constituição (o artigo contém o rol dos direitos sociais). É o direito ao equilíbrio fiscal intergeracional, que condicionaria os demais.

É como um direito a ter direitos por parte das próximas gerações. Com uma dívida se aproximando de 80% do PIB, os brasileiros que nascem herdam juros altos e uma carga tributária maior, que inibem a criação de oportunidades para que prosperem. Nessa ótica, perdem também direitos, porque cortes em políticas públicas serão necessários para quitar a dívida deixada por gerações anteriores.

A dívida já é de R$ 20 mil por brasileiro. Mesmo com a reforma da Previdência, a dívida seguirá crescendo algo como 1 ponto porcentual por ano na dinâmica atual de PIB modesto. O próprio governo prevê que até o fim do atual mandato seguirá incorrendo em déficits primários (a diferença entre a arrecadação dos tributos e as despesas primárias, isto é, antes de se considerar qualquer gasto com a dívida). Para 2020, o déficit é previsto em cerca de R$ 120 bilhões.

Na verdade, a Constituição já possui mecanismos de proteção a gerações futuras e restrições ao endividamento da geração presente.

Mas eles estão colocados em artigos menos centrais e em linguagem menos acessível do que na proposta de Guedes. O texto original de 1988 proíbe que se deixe dívida sem um legado de investimento – uma ótima definição de equilíbrio fiscal intergeracional. Mas a redação da chamada regra de ouro é demasiado técnica e um convite ao esquecimento por parte dos operadores do direito: “São vedadas a realização de operações de créditos que excedam o montante das despesas de capital, ressalvadas as autorizadas mediante créditos suplementares ou especiais com finalidade precisa, aprovados pelo Poder Legislativo por maioria absoluta”.

Há ainda a previsão de equilíbrio atuarial nas previdências, mas as definições não são simples. A PEC da reforma da Previdência definiu como “garantia de equivalência, a valor presente, entre o fluxo das receitas estimadas e das despesas projetadas, apuradas atuarialmente, que, juntamente com os bens, direitos e ativos vinculados, comparados às obrigações assumidas, evidenciem a solvência e a liquidez do plano de benefícios”. Novamente, não é um texto de ganhar corações e mentes para o problema da dívida.

A PEC de Guedes pauta o tema em um artigo com cláusulas pétreas da Constituição e o associa a um direito: o de nossos filhos e netos. Nessa narrativa, os beneficiários pelo ajuste fiscal e o equilíbrio orçamentário deixam de ser bancos e o mercado para ser as gerações futuras. A saúde das contas não é um fim em si mesma.

O Prêmio Nobel Jean Tirole relaciona a dificuldade de fazer reformas com o que é chamado na psicologia de “efeito da vítima identificável”. Nosso cérebro tem mais empatia com vítimas claramente identificadas (uma pessoa que se aposentará mais tarde, um servidor que terá redução de jornada, uma empresa que perde subsídio) do que com vítimas definidas de forma mais vaga, que seriam “vítimas estatísticas”. Na PEC de Guedes, o equilíbrio das contas passa a ser direito de outros brasileiros, os mais jovens.

Caso aprovada, será apenas a segunda vez que nossa Constituição presentista usa alguma variação do termo “geração”. Hoje, consta somente no capítulo do meio ambiente, que prevê que todos têm direito a um meio ambiente equilibrado, sendo dever do Poder Público e da coletividade defendê-lo e preservá-lo para as próximas gerações. Por que não estender a lógica a uma economia saudável?

Na coluna Aviões que vão cair, exploramos como direita e esquerda no Brasil têm discursos contraditórios quando o assunto é as próximas gerações. Uma tem se apegado mais ao discurso na questão fiscal, menosprezando a ambiental – e vice-versa.

Contudo, o direito das próximas gerações ao equilíbrio fiscal não é necessariamente uma ideia de direita, embora esteja sendo usada para legitimar o atual ajuste fiscal. O princípio poderia ser usado, por exemplo, para pautar agendas como um aumento da carga tributária focado em grupos subtributados e bem posicionados na distribuição de renda, assim com o corte de renúncias tributárias.”


quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Lula e Bolsonaro




“Lula e Bolsonaro
     
Por Denis Lerrer Rosenfield

O Supremo Tribunal, em mais uma decisão contraditória com outra decisão anterior sua relativa à prisão em segunda instância, termina por criar uma insegurança jurídica que contribui para piorar a sua imagem perante a sociedade. A libertação de Lula da Silva, assim como a de outros criminosos, aparece como uma amostra de que a impunidade segue valendo para os ricos, para os que têm condições de pagar recursos inesgotáveis em cada uma das quatro instâncias do Judiciário. Infelizmente, conforme a tradição penal brasileira, os pobres serão os mais prejudicados, por não terem recursos para pagar advogados caros que atuam por anos, se não décadas, para os seus clientes. Os “garantistas” conseguiram fornecer, assim, uma grande garantia: o crime compensa para os poderosos!

Do ponto de vista político, algumas considerações se impõem imediatamente. A primeira é que os grandes ganhadores da decisão do STF são Lula e o presidente Jair Bolsonaro, ou seja, o petismo e o bolsonarismo. Como ambos agem segundo a concepção do político baseada na distinção entre “amigo e inimigo”, o “nós contra eles”, numa luta que adquire contornos existenciais, como se a eliminação do outro devesse ser a regra, eles vão surgir como os principais protagonistas das eleições de 2022. Entrarão na arena um de olho no outro, como se nenhuma outra alternativa fosse possível. Pode-se, nesse sentido, esperar um acirramento dessa disputa nas redes sociais.

A segunda é que convém observar que Lula continua impedido de se candidatar, pois a decisão do Supremo versa somente sobre a prisão após condenação em segunda instância, não tem por ora nenhuma repercussão no que diz respeito à Lei da Ficha Limpa. Lula pode manifestar-se politicamente, mas não pode ser candidato. Isso significa que deverá atuar por intermédio de um candidato laranja, o que diminui em muito a possibilidade de êxito eleitoral para o PT. Dito isto, Lula exerce um tipo de liderança carismática, muito abalada pela corrupção no exercício do Poder, mas ainda assim importante do ponto de vista político.

Terceira: as primeiras reações de Lula e do PT sinalizam para a radicalização. Conforme foi noticiado, o ex-presidente estaria se reaproximando do MST e já anunciou que não fará nenhum movimento em direção ao centro do espectro político. Além de Lula e o PT sofrerem hoje grande rejeição da sociedade, tal postura não ajudará a agregar votos dos que rejeitam Bolsonaro, mas tampouco querem a volta do radicalismo e da corrupção de outrora. Se seguir nessa linha, o PT se voltará apenas para os já convertidos, perdendo a persuasão relativamente aos que dele não são próximos. Mais importante: fortalecerá Bolsonaro como candidato preferido destes, fazendo o jogo do presidente, que só esperava que isso viesse a acontecer.

Quarta: Bolsonaro e o bolsonarismo estão sempre em busca do “inimigo” e o seu inimigo do coração é Lula. Observe-se que nos últimos tempos, seja a propósito da Argentina ou do Chile, sempre aparece o espectro da esquerda, do Foro de São Paulo, isto é, do PT e de Lula, que estariam agindo para abalar a ordem conservadora ou liberal. Os discursos de Bolsonaro e as mensagens de seus filhos sempre são contra a “esquerda”, o “petismo”, e assim por diante. Acontece que isso era ainda muito abstrato, considerando que Lula na cadeia era apenas um fantasma do que foi. Os dirigentes petistas, desorientados, seguiam as ordens desencontradas do seu “líder”. Agora o bolsonarismo ganha um inimigo real, aquele que deve eliminar nas próximas eleições.

A quinta é que os bolsonaristas estavam ao léu, precisando bater em alguém, criar um conflito qualquer, desperdiçando energia em suas brigas internas, rachando o PSL, afastando generais importantes, criticando a imprensa e os meios de comunicação em geral, vociferando na esfera internacional, sobretudo, recentemente, na América Latina. Eis que uma oportunidade única surge: Lula fora da cadeia. Dessa maneira, a tendência será de reagrupamento dos bolsonaristas, incluídos alguns de seus críticos, em torno do presidente, como o único capaz de enfrentar e vencer o PT. Diria que a libertação de Lula cabe como uma luva na estratégia do presidente. Suas declarações aparentemente desencontradas e contraditórias têm método. E o seu “método” começará a cobrar dividendos.

Sexta: Bolsonaro precisa de Lula para esmagar o centro. Seu objetivo consiste em reunir em torno de si todos os que não aceitam a volta de Lula e do PT ao poder. Ganhou as eleições por isso e espera poder repetir essa mesma fórmula. Com Lula na cadeia estava difícil, pois não seria fácil o convencimento acerca da real ameaça petista. Agora, contudo, o cenário é outro, uma vez que a sua situação ideal se pode concretizar: enfrentar em 2022, em segundo turno, um candidato laranja petista/lulista. Seria o sonho realizado. Se for o próprio Lula, será um pouco mais difícil, mas exequível. Se fosse uma candidatura de centro, a sua posição estaria ameaçada.

Sétima: as alternativas de centro para as próximas eleições ficam prejudicadas. A polarização entre Bolsonaro e Lula tende a reduzir o espaço de outras candidaturas, na medida em que terão de desbravar caminho seguindo uma estratégia de não radicalização, porém sabendo radicalizar contra a radicalização. Deverão saber esgrimir com as armas dos adversários, transmitindo a mensagem de que essas armas não são as mais apropriadas para o Brasil. Deverão ser capazes de mostrar que vale a pena perseverar nos compromissos e diálogos próprios da democracia, sem namorar inclinações autoritárias. As candidaturas já anunciadas direta ou indiretamente de João Doria e Luciano Huck deverão adotar uma estratégia condizente com esse novo cenário político. Se a lógica do bolsonarismo e do petismo prevalecer, estando então revigorados, esses outros candidatos não serão naturalmente alternativas. Deverão construir o seu protagonismo.”

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Bolsonaro e a Fortuna





“Bolsonaro e a Fortuna
      
Por William Waack

Demorou mas o que importa agora é que o governo Bolsonaro colocou diante do País a mais ambiciosa proposta de reforma do Estado das últimas décadas. A de Fernando Henrique ficou pela metade,– e Lula foi desistindo à medida em que a bonança do super ciclo das commodities o convenceu de que não precisaria fazer muita coisa. Vai dar certo com Jair Bolsonaro?

As dificuldades políticas são monumentais. Começando pelas mais óbvias e imediatas, a dissolução do PSL é apenas um exemplo das consequências negativas para os planos do governo quando o Executivo renuncia a construir uma base ampla e bem coordenada no Legislativo. O governo vai sentir falta dessa plataforma e corre perigo de cair na ilusão de que a aprovação da reforma da Previdência se repita nos mesmos termos, isto é, na base do “deixa que vai”.

O adversário escolhido para um ataque frontal é o mais poderoso: o funcionalismo público e suas corporações, extraordinariamente bem sucedidas em se defender. Na verdade, sequestraram para si o Estado. Vai vir chumbo grosso. As dificuldades políticas de articulação em sentido amplo também assustam. Basta como exemplo o emaranhado que se conhece das discussões sobre a reforma tributária, que ficou para depois, e o problemão que é fazer convergir todos os entes da federação.

Dito isso, grupos organizados da sociedade civil aprenderam com a luta pela aprovação da Previdência e estão avançados na tarefa de ajudar a equipe econômica e conseguir a reforma administrativa, através de corpo a corpo com legisladores e o empenho em “conscientização” da sociedade. Dividem com a equipe de Paulo Guedes o mesmo cálculo político: o de que um “reaquecimento” da economia no começo do ano que vem garanta um clima político favorável à aprovação de pelo menos partes do pacotaço.

Há notável semelhança entre essa aposta política e a que foi feita pela equipe econômica de Temer – torpedeada por uma gravação e a irresponsável conduta de grupos de mídia causada por sua medíocre visão jornalística, padrão que se repete. Ou seja, mais um exemplo de como a política é o campo do imponderável. O tal cálculo político da atual equipe econômica pressupõe a ajuda de forças organizadas, além da dedicada cooperação dos chefes das casas legislativas, enquanto a marca de Bolsonaro é a preferência por forças políticas simpáticas galvanizadas. Portanto, difusas, e às vezes dirigidas contra quem ele precisa de ajuda.

Paira ainda outro grave risco político “estrutural” (além do nosso sistema de governo), que é o da insegurança jurídica. Recente evento promovido pela Escola Superior do Ministério Público de Goiás, reunindo figuras de proa dos tribunais superiores eleitoral, trabalhista e de justiça, traçou um quadro horroroso: ativismo judicial, politização das decisões do STF, normas jurídicas ultrapassadas ou contraditórias e descaso dos legisladores compõe um sufocante ambiente que desanima, surpreende e golpeia quem toma decisões, pois a imprevisibilidade está aumentando.

Somando-se à nossa esquizofrenia tributária, fica claro que o nó brasileiro não tem uma ponta só a ser desatada. Precisa de várias mãos e de um claro sentido de conduta e direção políticas. A avaliação correta de Guedes e sua equipe é a de que o principal freio ao crescimento sustentável do País é um balofo e perdulário Estado patrimonialista suportado por elites dirigentes acomodadas e que carecem de qualquer sentido de urgência do que significa uma agenda de produtividade e competitividade, a verdadeira saída para combater os mesmos males de sempre: ignorância, miséria, e desigualdade. A janela histórica para destravar o País continua aberta. Mas vamos precisar daquilo que Maquiavel chamava de Fortuna.”