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terça-feira, 19 de novembro de 2019

Como é na democracia




“Como é na democracia – 1
     
Por Fernão Lara Mesquita

Hoje, 5 de novembro, é dia de eleições nos EUA. Nada de muito importante. Alguma coisa está sendo votada pelo povo quase todos os dias lá. Tem as eleições de calendário (de 2 em 2 anos), tem votações para retomar mandatos (recall), desbancar juízes (dois anos atrás West Virginia cassou os cinco da sua suprema corte), aprovar ou reprovar leis ou decidir outras questões pontuais de interesse de um ou mais distritos eleitorais.

Lá cada cidade pode escolher o tipo de governo que quer ter. A maioria nem tem mais prefeito. Tem um CEO e uma espécie de diretoria (council) de profissionais para cuidar de cada área importante, como abastecimento de água, saneamento, segurança, agricultura, zoneamento, etc. Cada cidade é livre para decidir quais quer ter. Cidades e Estados elegem “secretários de Estado” cuja única função é organizar essas eleições, “deseleições” ou votações localizadas convocadas pelos cidadãos.

A de hoje [5 de novembro] vai eleger governadores e renovar algumas dezenas de cargos executivos em 8 Estados e dezenas de municípios. Tomando carona nas cédulas, como ocorre em toda eleição por lá, 32 leis de iniciativa popular de alcance estadual e 141 de alcance municipal estão qualificadas para pedir um “sim” ou um “não” dos eleitores na de hoje.

Eis alguns exemplos:

Washington convocou o Referendo 88 para modificar a legislação estadual de “ações afirmativas”. É uma rara iniciativa popular para vetar outra iniciativa popular. A I-1000 conseguiu em 2018 assinaturas bastantes para ser submetida ao Legislativo estadual, que a aprovou num processo de Iniciativa Indireta (leis que nascem na rua e acabam aprovadas no Legislativo). Como o eleitor é a fonte suprema do poder, o Referendo 88 quer derrubar, agora no voto direto, o que o Legislativo local aprovou “contra o princípio que proíbe o Estado de discriminar seus empregados ou os destinatários dos seus serviços por raça, gênero ou nacionalidade”. Nada de STF. O povo vai decidir o que quer.

A Iniciativa Popular 976, também de Washington, proíbe a cobrança de taxa superior a US$ 30 (sim, trintinha...) para o licenciamento de veículos de menos de 5 toneladas.

A Proposição CC, no Colorado, quer autorizar o Estado a gastar acima do teto estabelecido para transporte e educação. Hoje o Estado é obrigado a devolver aos contribuintes todos os gastos que ultrapassarem esse teto definido anualmente com base na inflação. Esses limites são estabelecidos na Tabor (Taxpayer Bill of Rights) uma iniciativa pioneira do Colorado que em 1992 instituiu com a aprovação de 19 leis de iniciativa popular limitando drasticamente a liberdade do Estado de criar ou alterar impostos sem consulta no voto a quem vai pagá-los, a primeira “Carta de Direitos dos Contribuintes” do país. Desde então esse pacote foi copiado por dezenas de Estados.

Ainda no Colorado, um dos sete Estados mais sujeitos a seca do país, estará nas cédulas a Proposição DD, que legaliza casas de apostas em esportes cobrando 10% de imposto dedicado a obras contra a seca.

A Pennsylvania vai decidir a adoção ou não do pacote de leis contra o relaxamento de prisão e penas alternativas para criminosos sem a participação das famílias das suas vítimas nas audiências onde são decididas, conhecido como Marsy’s Law. A campanha foi lançada nos anos 90 pelo irmão de uma moça assassinada cuja mãe teve um colapso dentro do tribunal que aliviou a pena do assassino de sua filha após poucos anos de reclusão. Doze Estados já adotaram esse pacote, que está qualificado para subir também às cédulas de Wisconsin na eleição presidencial de 2020.

A Proposição n.º 4 do Texas pretende emendar a Constituição estadual para tornar virtualmente irreversível a proibição de cobrança de imposto de renda sobre pessoas físicas, que já vigora por lá.

No âmbito municipal tem especial interesse a Proposição 205 de Tucson, Arizona, que pode declarar-se Cidade Santuário de Imigrantes, contra a política oficial de Donald Trump (sim, o zé-povinho manda mais também que o presidente). A lei, se aprovada, proíbe a polícia local de interpelar pessoas sobre sua condição de imigração ou que agentes federais ajam nesse sentido em seu território.

A Questão Municipal n.º 1 será apreciada pelos eleitores da cidade de Nova York alterando o sistema local de eleições. Em vez de turnos sucessivos, os eleitores poderão inscrever cinco nomes em ordem de preferência em suas cédulas para diversos cargos de funcionários eleitos. Se aprovado, NY será a jurisdição mais populosa a adotar esse sistema.

São Francisco avaliará a Proposição F, restringindo contribuições de empresas com interesse relacionados a leis de zoneamento para campanhas para prefeito, promotor público e outros cargos. A lei também estabelece novas condições de disclosure (informação ao eleitor) para contribuições de campanha.

Da reforma da escola do bairro ou a construção de uma nova ponte até temas como esses acima, tudo lá é decidido no voto por quem paga a conta. Na virada do século 19 para o 20, saindo de uma guerra civil e enfrentando um amplo processo de disrupção introduzido pela urbanização desordenada e a corrupção desenfreada decorrente do conluio entre donos de ferrovias (a “rede” de então), políticos e empresários corruptos pelo domínio monopolístico de setores estratégicos da economia, os americanos importaram da Suíça as ferramentas de controle dos representantes eleitos com que desinfetaram sua política e domaram os famigerados “robber barons” com uma inteligente legislação antitruste que defendia o consumidor impondo níveis mínimos de concorrência. Vêm, desde então, reformando sua democracia “no voto” um pouco a cada dia, a única maneira possível de gerenciar a vida de um país de diversidade continental num mundo mutante.

Se o seu jornal ou a sua TV nunca lhe contou que isso existe nem mostrou como funciona, atenção: você está sendo traído.”

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“Como é na democracia – 2
     
Por Fernão Lara Mesquita

O primeiro artigo desta série mostrou com exemplos da eleição de terça passada (5/11) como os americanos decidem no voto tudo o que afeta a sua vida, num processo permanente de reformas de iniciativa popular.

Como garantem a segurança e a legitimidade desse processo?

A primeira preocupação dos Fundadores, fugitivos de uma Europa onde qualquer um podia ter seus bens confiscados ou até perder a cabeça apenas porque sua majestade acordou de mau humor, foi tornar invulneráveis o cidadão comum e os frutos do seu trabalho com regras tão simples, econômicas e transparentes que pudessem ser compreendidas até pelo menos ilustrado dos mortais.

O resultado é uma obra-prima sem precedentes nem sucessores na História do mundo, tão solidamente amarrada a verdades indestrutíveis por argumentos que desde então só pôde ser desafiada pela violência. Física primeiro, intelectual agora, quando os inimigos da democracia tratam de destruir o próprio conceito de verdade, o que é o reconhecimento último da identificação perfeita que veem entre uma coisa e outra.

As instituições americanas distinguem “direitos negativos” de “direitos positivos” e estabelecem uma hierarquia entre eles. Só os direitos negativos, “naturais e reconhecidos pelos homens de todos tempos”, estão inscritos na Constituição federal, aos quais todos os outros estão subordinados. São eles os que decorrem da inviolabilidade da pessoa e, portanto, exigem que seu beneficiário não seja sujeitado por atos do governo ou de outras pessoas para tê-los satisfeitos: o direito à vida (e à legitima defesa), à propriedade (ao produto do seu trabalho), à liberdade de crença, de pensamento e de expressão, etc.

São direitos positivos (artificiais) os que requerem aportes de recursos de outras pessoas, diretamente ou através do governo, para que o seu beneficiário possa desfrutá-los: o direito a um determinado nível de vida, à educação, à moradia, à estabilidade no emprego, a salários e aposentadorias privilegiados, etc.

Como todo direito positivo viola o direito negativo de todos de não ser expropriado, estes só podem ser instituídos numa democracia mediante o consentimento explícito (no voto) de quem vai pagar por eles. Por isso, lá, tais direitos só podem ser inscritos em leis e Constituições estaduais ou municipais depois da aprovação, no voto, da comunidade interessada.

Para que esse processo pudesse tornar-se operacional numa democracia na qual “todo poder emana do povo”, que, pela extensão do território envolvido, tem de ser necessariamente “exercido por seus representantes eleitos”, definir as regras para tornar essa representação a mais fiel possível é a tarefa mais essencial de todo o conjunto.

Nasce daí o sistema de eleição distrital puro. Nele o tamanho de cada distrito eleitoral é dado pela divisão do número de habitantes pelo número de representantes desejados em cada órgão de representação. A menor célula é o bairro, que elege o conselho diretor da escola pública local. A maior, o distrito federal, que elege um deputado federal. Com 340 milhões de habitantes e 435 deputados, cada distrito federal tem, lá, aproximadamente 780 mil habitantes. Cada distrito federal incorporará um determinado número de distritos estaduais, que incluirão uma soma de distritos municipais, por sua vez resultantes de uma soma de distritos escolares. Todos são desenhados sobre o mapa real de distribuição da população e só podem ser alterados em função do que o censo apurar a cada dez anos.

Como cada candidato só pode se oferecer aos eleitores de um distrito, todo representante eleito sabe exatamente, pelo endereço, quem é cada um dos seus “donos”.

Ao longo do primeiro século depois da Constituição de 1787, com a memória ainda viva do poder dos reis, prevaleceu a preocupação dos Fundadores de blindar os representantes eleitos contra tentativas do Executivo de dominá-los. Foi um erro fatal. Intocáveis enquanto durasse o mandato, não demorou para que se corrompessem a ponto de quase destruírem a jovem democracia.

Na virada do século 19 para o 20, com o país tão podre quanto está o Brasil hoje, eles importaram as ferramentas de controle usadas na Suíça que tornam os representantes eleitos sujeitos à reconfirmação da confiança dos eleitores a qualquer altura do mandato. Os direitos de retomada de mandato, iniciativa legislativa e referendo das leis dos Legislativos foram o “pé de cabra” com que outros direitos foram sendo arrancados ao “Sistema”. Despartidarização das eleições municipais e eleições primárias acabaram com a força dos caciques políticos e eleições de retenção de juízes jogaram por terra a resistência do Judiciário.

O princípio operacional é sempre o mesmo. Como todo representante tem “donos” conhecidos e toda lei tem um alcance determinado, até o nível estadual leis e representantes podem ser desafiados por qualquer cidadão. Se colher o número estipulado de assinaturas no seu distrito (em geral de 5% a 10% dos eleitores), é convocada nova eleição no distrito para retomar um mandato, rejeitar ou aprovar uma lei, propor ou recusar uma obra ou uma despesa pública específica. Tudo direto, preto no branco, com cada cidadão com sua pequena parcela de poder e nenhum indivíduo ou “movimento social” autorizado a decidir pelos outros. Desde então o contribuinte é quem decide que nível de imposto e remuneração dos servidores é justo, a vítima é quem decide qual a punição suficiente para cada crime e assim por diante. Os aperfeiçoamentos são introduzidos dia após dia, voto após voto, como mostraram os exemplos da eleição da semana passada.

Longe dos olhos, longe do coração. A medida da eficácia do sistema é a quantidade de liberdade, dinheiro, saúde, segurança e inovação que sobram por lá e faltam lancinantemente nos países que, isolados pela língua e tolhidos na sua capacidade de visão à distância (tele-visão), são mantidos ignorantes da única versão de democracia que põe o povo de fato no poder, e continuam vivendo numa condição medieval de insalubridade institucional.”

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