“Perdas
Por Zeina Latif
A escravidão esteve presente em várias civilizações ao longo
dos séculos, geralmente por conta de conquistas e guerras. O que distingue o
caso dos negros é o racismo e o fato de o tráfico de escravos ter sido uma
atividade muito lucrativa, com ampla rede de negócios, fornecedores e
prestadores de serviços, em terra e no mar. Um negócio que inclusive ajudou a
financiar as viagens dos descobrimentos.
Os números do comércio de negros impressionam. Entre 1500 e
1850, 24 milhões de indivíduos foram tirados de seus lares em todo continente
africano com destino às Américas. Algo como 11,5 milhões morreram antes mesmo
de embarcar, em decorrência das condições precárias e maus tratos no caminho
até o embarque, que poderia demorar vários meses. Apenas 10,7 milhões chegaram
ao continente americano; cerca de 1,8 milhão não sobreviveu à travessia.
O ambiente insalubre nos navios, os maus tratos e suicídios
explicam essa trágica mortalidade. Famílias e amigos eram separados, e
procurava-se misturar os diferentes grupos, para evitar a uniformidade
linguística, e assim reduzir fugas e rebeliões.
O Brasil era o principal destino. Ao longo de 350 anos, 47%
do tráfico negreiro veio para o Brasil, dez vezes mais do que para a América do
Norte, totalizando quase 5 milhões de pessoas.
Para os exploradores brancos, a justificativa moral para
tamanha crueldade era a necessidade de resgatar aquelas pessoas do seu atraso,
enquanto intelectuais enfatizavam a sua inferioridade. A servidão seria o
caminho para ascenderem à humanidade. Havia também uma componente religiosa: os
negros seriam descendentes de Canaã, filho de Cam, amaldiçoado por seu avô Noé.
Os índios, vistos como inocentes pelo jesuítas, tiveram
melhor “sorte”. A coroa portuguesa, em 1570, declarou que os nativos eram
súditos do rei e não poderiam ser escravizados, em que pese o fato de a
escravidão ter persistido, com base na autorização de captura por “guerra
justa”. Índios seguiram tutelados pelos jesuítas, que enfrentavam os colonos. O
padre Antônio Vieira acabou deportado por defender a liberdade dos índios. A
solução defendida pelo próprio Vieira foi substituir a mão de obra indígena por
escravos africanos.
Há indicações de que a escravidão no Brasil foi mais
violenta do que nos Estados Unidos. Por aqui, a taxa de natalidade dos negros
era menor, assim como a expectativa de vida. Por outro lado, alforrias eram
mais comuns, o que pode ter contribuído para uma maior miscigenação. Tudo somado,
na época da abolição da escravidão, havia “apenas” 700 mil cativos.
Os anos que se seguiram à abolição foram de negação da elite
sobre a nossa triste história. Mal comparando, algo como o “pacto do silêncio”
na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. A negação do passado escravocrata
nos levou a ignorar os negros, algo diferente da segregação racial nos EUA –
difícil saber o que é pior.
O passado escravista deixou marcas na nossa sociedade, pela
violência e por alimentar posturas oportunistas – a proximidade na casa grande
garantia vantagens e poupava punições. Mas há uma herança ainda mais trágica: o
descaso com os negros pode estar na base do descaso com a educação de massas e
com os direitos da cidadania.
Nos EUA, a segregação racial resultou em conflito aberto. Em
uma sociedade zelosa com as instituições e preocupada com a educação – tema já
presente no começo da independência –, o resultado foi a sequência de
manifestações dos negros pelos direitos civis e estabelecimento de organizações
próprias, como igrejas e faculdades; sobretudo no sul, onde a segregação era
maior.
Os 13% de negros na sociedade norte-americana têm mais
ativismo político que os 54% no Brasil.
Os negros e seus descendentes têm almejado igualdade de
oportunidades e participação na sociedade civil. As resistências, porém, são
muitas. O Brasil ainda não reconhece a dimensão do seu racismo.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário