“Jornada de otários
Por Bolívar Lamounier
Na quarta década do século 17, na
França, a rainha-mãe Maria de Médici e seus aliados na aristocracia
pressionaram o rei Luís XIII a abrir-lhes mais espaço no poder, e sabiam que só
lograriam tal objetivo forçando o rei a afastar o cardeal Richelieu do governo.
Acharam que a pressão exercida entre 1630 e 1632 havia surtido efeito, mas
erraram redondamente. O arguto cardeal ganhou a confiança do rei, deu a volta
por cima, aumentou ainda mais sua influência e entrou para a História como um
dos artífices da formação do Estado nacional francês. Desde então os
historiadores passaram a se referir à jogada da rainha-mãe e seus amigos como
une journée des dupes, ou uma jornada de otários.
A expressão foi também usada no
Brasil, em 1840, por motivos de certa forma parecidos. A turbulência do período
regencial e o recuo de uma ala liberal que havia exagerado na descentralização
do poder forçou a elite política a buscar uma forma de estabilizar o País. A
solução alvitrada foi uma medida legislativa mediante a qual anteciparam a
maioridade de dom Pedro II, então um adolescente de 15 anos. Consumado o
chamado “golpe parlamentar da maioridade”, o jovem monarca começou a governar,
demonstrando personalidade, mantendo tanto os líderes liberais como os
conservadores a conveniente distância. Tendo ficado a ver navios, restou-lhes o
consolo de haverem herdado dos franceses a distinção de terem participado de
uma jornada de otários.
Tenho para mim que tais jornadas
ocorrem regularmente, embora assuma formas variadas, ao longo da História.
Podem os meus leitores imaginar quantos milhares ou milhões de indivíduos
desempenharam esse papel nos quatro séculos decorridos desde o dia em que Maria
de Médici pisou em sua casca de banana?
Embora a condição de otário me
pareça uma constante histórica, ando arqueado pela impressão de estar ela se
manifestando com excepcional intensidade no momento atual, não só no Brasil,
mas em numerosos países. Minha impressão se deve à crescente frequência com que
grupos “identitaristas” se empenham em destroçar o convívio em sociedades até
há pouco razoavelmente integradas e políticos anunciam e trabalham ativamente
para pôr abaixo a democracia representativa.
Vejam o caso dos Estados Unidos.
Sou leitor assíduo da edição digital da revista The Atlantic, uma das melhores
do mundo, que diariamente me proporciona uma magnífica variedade de análises e
relatos conjunturais. Senti um frio na espinha ao ler, na terça 12, uma nota em
que seu diretor, Jeffrey Goldberg, anuncia para dezembro uma edição
especialíssima, cujo título geral será Uma Nação se Esfacelando (A Nation
Coming Apart). Com esse duro título, Golberg externa sua convicção de que os
americanos estão se destroçando mutuamente. Mas tudo bem, vá lá que há exagero.
Pensemos no “fim da democracia”.
Registros dessa “profecia” podem ser encontrados facilmente desde as primeiras
décadas do século passado. É outra proposição que aparece com regularidade, com
variações, mas com dois traços principais. Primeiro, por trás dela sempre há
algum candidato a ditador querendo, por ações ou omissões, acabar com a
competição eleitoral, o pluralismo, as garantias individuais, etc., a fim de
enfeixar em suas mãos todo o poder. Essa ambição tanto pode motivar políticos
que gozam efetivamente de certa popularidade (como Getúlio Vargas em 1937) como
outros que nutrem o delírio de governar pacificamente um país mesmo conscientes
da intensa rejeição que grande parte da sociedade sente por eles.
Um exemplo caseiro é o próprio
Getúlio do segundo governo, levado ao suicídio em 1964. Outros são Lula, que se
julga predestinado a voltar à Presidência, o boliviano Evo Morales, forçado à
renúncia poucos dias atrás, e o húngaro Viktor Orbán, criador de um conceito
preciosamente contraditório, a “democracia antiliberal”. Um dado novo nessa
velha história é que agora tais líderes manobram para se perpetuarem no poder
por meio de eleições fajutas ou da implementação de programas de governo que
lhes permitam voar no tapete mágico da popularidade populista.
Outra constante nessa história é
o desapreço pelas consequências. Os líderes a que aludi no parágrafo anterior
nunca se dão ao trabalho de destrinchar o significado da expressão “fim da
democracia”, muito menos indicar que outro sistema estável de poder e
legitimidade irá substituir o regime representativo. Parecem ou são de fato
incapazes de sequer balbuciar uma resposta para tal indagação. A democracia
acaba e que outro modelo eles imaginam poder pôr no lugar dela? Muitos pensam
que a democracia é um luxo que só pode ser gozado por sociedades que hajam
atingido um alto grau de desenvolvimento, quando o certo é precisamente o
oposto: ela é uma forma política estável e flexível que permite o paulatino
equacionamento dos conflitos de interesse mesmo em sociedades pobres.
Em nossa triste América Latina, o
day after dos golpes pode ser previsto com extrema facilidade. Cada país passa
por alguns anos de instabilidade populista, depois tenta retornar, com a mesma
falta de convicção ao regime representativo, depois o golpeiam novamente, etc.,
etc. Casos há em que os ciclos desse eterno retorno se mantêm por um dilatado
período de tempo, praticamente tornando inviável o desenvolvimento econômico e
social das respectivas sociedades. Eis aí a Argentina – outrora um dos países
mais ricos do mundo – que não me deixa mentir. Evitemos, porém, qualquer nuance
de regozijo ante a desgraça argentina. Os impasses que vêm travando nossa
recuperação econômica e nosso pífio investimento anual de 16% do PIB poderão
conduzir-nos a um precipício semelhante. Pelo menos desse ponto de vista,
façamos o possível para não cair noutra jornada de otários.”
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