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sexta-feira, 31 de maio de 2019

Bagunça institucional





“Bagunça institucional
      
POR JOSÉ NÊUMANNE

Economia em queda. Desemprego em alta. Vivemos “a depressão depois da recessão”, de acordo com estudo divulgado pela equipe da consultoria AC Pastore, do ex-presidente do Banco Central (BC) Affonso Celso Pastore. Estes dados dos dois anos apavoram: o produto interno bruto (PIB) cresceu 1,1% em 2017 e também em 2018, enquanto a população aumentou 0,8% por ano, e isso produziu a redução de 8% em relação a 2015, ano marcado como o do início da recessão. O desemprego de 12,7% no primeiro trimestre de 2019 aponta para a terrível realidade de 13,4 milhões de trabalhadores que procuram e não conseguem emprego. O quadro é mais do que assustador para despertar os mandatários dos três Poderes para a necessidade de começarem um processo de retirada do “fundo do poço”, diagnosticado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Mas é exatamente o oposto que ocorre.

Das manifestações de rua de domingo 26 de maio, convocadas em apoio ao presidente Jair Bolsonaro, à reforma da Previdência, preparada pela equipe de Guedes, e ao pacote anticrime e contra a corrupção, da lavra do ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro, aflora a consciência popular difusa dessa bagunça institucional. A intenção delas foi fortalecer o chefe do governo, eleito por expressiva maioria de votos válidos, e também conter os ímpetos golpistas dos privilegiados atingidos pelas mudanças para conter a hemorragia dos recursos públicos para financiar o bem-bom das castas da alta burocracia e da politicagem sem freios éticos. E, principalmente, o pânico pelas operações de combate à roubalheira dos parlamentares suspeitos, acusados, processados e condenados diante da perspectiva da perda da impunidade garantida pela produção de leis que satisfazem apenas os seus interesses pessoais, familiares e partidários.

Isso inspirou o sincericídio do deputado Paulinho da Força (SD-SP) ao confessar a intenção de desidratar a reforma da Previdência para evitar a reeleição de Bolsonaro em 2022.

O spoiler do naufrágio se inscreve na Constituição de 1988, que resultou de uma disenteria provocada pelo consumo excessivo em que os grupos expurgados pelo regime militar se refestelaram mais do que se lambuzaram no melado do poder que nunca antes haviam provado. Só que não adianta chorar sobre o leite derramado. Deus queira que ainda seja possível tomar providências necessárias para evitar a agonia. Os deputados do Centrão, coligação informal especializada em criminalizar de fato, e não na retórica, a política, protagonizam a cena mais recente do embate, ao tomarem o poder do Executivo em golpes como orçamento impositivo e intromissão indevida na reorganização dos ministérios.

A redução do número de pastas não é um capricho autoritário do presidente da República, mas um compromisso que ele assumiu com a cidadania de que o faria. Assim como também o combate à corrupção e ao crime organizado não é uma promessa de palanque, mas um pacto com o eleitorado pela manutenção do rigor na única forma à mão para impedir que a República Federativa do Brasil se torne um território sem lei, como o foram o sertão do cangaço e o oeste longínquo dos EUA na época da corrida do ouro na Califórnia. A retaliação à Operação Lava Jato, que assusta vários deputados federais e senadores, com a devolução do Conselho de Controle da Atividade Financeira (Coaf) do Ministério da Justiça para o da Economia, torna evidente o uso torpe da lei para proteger quem a infringe.

Paulinho da Força pretende restaurar a escravidão do trabalhador formal aos sindicatos pela volta da obrigatoriedade da “contribuição” de um dia de trabalho por ano para sustentar uma máfia que nem tem de prestar contas do dinheiro público gasto sem controle. Para isso ele luta por um Estado Novo parlamentar, substituindo a representação popular por um regime corporativista.

Outro chefão do Centrão, o líder do DEM, Elmar Nascimento (BA), antes das manifestações expôs a vontade dos pares de tirarem os milhões de eleitores de Bolsonaro da frente da trupe: “Temos que ter o mínimo de estabilidade no País. Para fazer isso vai ser necessário ignorar o governo, não tem outra saída”. Depois mudou o discurso, mas manteve a intenção golpista: “Ninguém governa sozinho”. Ungido por Onyx Lorenzoni, chefe da Casa Civil, Davi Alcolumbre (AP), do mesmo partidinho e presidente do Senado, sugere convocar recall para depor o presidente, em infame ruptura.

De seu lado, Bolsonaro recusa a missão de chefe do Executivo de governar para todos e dá as costas para sua tarefa de trabalhar pela ocupação dos brasileiros sem emprego. O Ministério por ele composto lembra Jano, com uma face vislumbrando o futuro e outra maldizendo o passado, que precisa ser sepultado ou superado, jamais combatido, pois seus adversários já perderam a eleição. Chega a ser inimaginável que Paulo Guedes, Sergio Moro, Tarcísio de Freitas, Tereza Cristina e Salim Mattar, travando o bom combate descrito pelo apóstolo Paulo, convivam com Ernesto Araújo, Damares Alves e Abraham Weintraub.

Quem saiu de casa para execrar o Centrão aclamou, de forma inédita, dois ministros do governo federal, Sergio Moro e Paulo Guedes, evidência de que economistas liberais e cruzados do combate ao furto do erário, estranhos no ninho de olavistas sob o comando de Carlos Bolsonaro, deveriam ter as bandeiras deles empunhadas pelo chefe do governo.

Outro vilão das ruas, o STF compraz-se em comprar vinhos premiados quatro vezes para banquetes da nova nobreza, que pune sem dó quem ouse criticar seus nababos, que se julgam acima da lei e de quem os mantém. A dupla Toffoloi & Moraes declara amor à liberdade de expressão, mas restaura a censura da tirania, ícone da desfaçatez da republiqueta de pirralhos mimados que deveriam ser mantidos nos limites de seus quadradinhos.”

quinta-feira, 30 de maio de 2019

O bolsonarismo existe





“O bolsonarismo existe
      
Por Eliane Cantanhêde

O principal resultado das manifestações de domingo foi confirmar que a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência não foi só um episódio e que o bolsonarismo vingou. Ocupou um vácuo político na campanha e se consolida com a rejeição ao que o próprio presidente chama de “velha política” e os seus filhos e os olavistas desdenham como “establishment”, mas tem um nome: instituições, à frente os Poderes da República.

O bolsonarismo fecha os olhos, os ouvidos e a razão ao despreparo e aos erros crassos de Jair Bolsonaro em nome de “algo maior”: uma ideologia, o conservadorismo de costumes, as reformas liberais (que, aliás, vários outros candidatos defendiam) e o combate ao crime (que eles também pregavam), mas a liga mais poderosa é a rejeição contra o Congresso, o Supremo, a mídia. Ou seja, o “sistema”.

A economia derrete, mas o presidente dá prioridade a armas e transforma suas crenças pessoais em política de Estado, contra a defesa do meio ambiente, as universidades, as pesquisas, a área de Humanas. E ele rechaça os políticos, mas dá um excesso de poder nunca visto aos próprios filhos – aliás, políticos, um deles enrolado com um esquema no Rio que pode ser tudo, menos uma saudável “nova política”.

Bolsonaro já derrubou ações da Petrobrás, criou sobressaltos na CEF, assustou a comunidade internacional, gerou temores na China e no mundo árabe e se mete despudoradamente nas eleições da Argentina.

O bolsonarismo, porém, não está nem aí para isso. Prefere acreditar, e alardear pelas redes sociais, que é tudo fake news, perseguição de uma imprensa esquerdista e mal-intencionada. O que importa para o bolsonarismo não é Bolsonaro, é o que ele representa. Bolsonaro é fraco, mas a simbologia (ou o marketing) dele é forte.

Quem foi às ruas no domingo, em mais de 150 municípios, de todas as unidades da Federação, comprou a ideia de que ele é como um Dom Quixote contra os males e os maus do Brasil. Mas eles precisam tomar cuidado. A existência do bolsonarismo automaticamente projeta o antibolsonarismo. Manifestações a favor (aliás, inéditas em início de governos) chamam manifestações contra. Isso significa uma polarização perigosa: o “nós contra eles” da era do PT, com o sinal contrário.

As multidões de domingo foram uma demonstração de força e produziram fotos poderosas, mas elas já lançam até os potenciais líderes de hoje e do futuro. Quem desponta entre os bolsonaristas é Sérgio Moro, mas ele é muito além disso: rechaçado por petistas, é endeusado por diferentes frentes e setores da sociedade.

E quem surge no horizonte para comandar o antibolsarismo? O presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Quanto mais o bolsonarismo eleger Maia como inimigo número um, mais ele ganha força no antibolsonarismo, difuso e ainda confuso, mas real.

Maia e o DEM, porém, devem se descolar o quanto antes do Centrão, que Jair Bolsonaro chama de “palavrão” e transformou, habilmente, na síntese de tudo o que há de ruim, de podre, de execrável na política. Apesar de ter sido filiado a siglas que são, ou bem poderiam ser, desse bloco, como PP, PTB, PRB e o próprio PFL, que deu origem ao DEM de Rodrigo Maia.

Outra ironia nessa história é que Centrão e bolsonarismo estão unidos em torno de pelo menos uma bandeira: a reforma da Previdência. Nunca se viu manifestação a favor da reforma, só contra. Pois, agora, os bolsonaristas nas ruas e o Centrão no Congresso é que vão aprovar a reforma e garantir não apenas a aposentadoria das novas gerações, mas também as chances de recuperação econômica do País. Tudo o que Bolsonaro precisa fazer é não atrapalhar. Ou parar de atrapalhar.”

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Um país cansado





“Um país cansado
      
Por Ana Carla Abrão

Manifestações populares são expressões legítimas da democracia. São também termômetros da sociedade, indicando preferências da população. O Brasil assistiu a duas manifestações recentes. Uma motivada pelo contingenciamento de recursos na educação e outra por uma pauta mais difusa, mas que surpreendentemente acabou por se firmar como um grito em favor da reforma da Previdência.

Educação é o grande motor de transformação e o maior instrumento de combate à desigualdade social. Apesar disso, o tema nunca mobilizou as massas no Brasil, tampouco foi prioridade absoluta nas ações públicas. A par de ações de pouco efeito prático como o batismo de “pátria educadora” há alguns anos, as conquistas recentes se limitam à alocação de volumes crescentes de recursos, mas sem que um avanço proporcional de qualidade seja observado. Há melhorias a serem celebradas, como a universalização do acesso e o número médio de anos de escolaridade da nossa população, que dobrou nos últimos 20 anos. Mas ainda estamos muito longe de ombrearmo-nos a países pares e nossos níveis de aprendizagem ainda são muito baixos. Particularmente no ensino básico, a qualidade da educação brasileira nos coloca no topo dos rankings que medem ineficiência dos gastos, com os baixos resultados andando com volumes elevados de gastos. Um contrassenso amplamente documentado por estudos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Com gastos que equivalem a 6% do PIB, o Brasil investe em educação mais do que a média dos países desenvolvidos, mas nossos níveis de aprendizagem estão abaixo dos do Chile ou do México, que investem bem menos. Há algo errado, portanto, no modelo, na alocação e gestão dos recursos, nas políticas implantadas e nos seus controles e avaliações, e nos processos que consomem muito dinheiro público e não geram resultados.

Infelizmente não foram essas constatações que levaram as pessoas às ruas no último dia 15 de maio. Motivados pelo tema certo, brasileiros (dentre eles vários estudantes) empunhavam bandeiras que pouco têm a ver com a realidade da educação brasileira e em nada ajudarão a melhorá-la. Precisamos priorizar a educação no Brasil. Mas para que isso aconteça, há que se cobrar que políticas públicas sejam eficientes e constantemente avaliadas e não defender o desperdício de recursos, perdidos em projetos desconexos, de baixo impacto e sem controle. Há que se entender (e questionar) as despesas com pessoal, que consomem quase que a totalidade dos orçamentos das universidades públicas, não sobrando espaço para investimentos em pesquisa e desenvolvimento – e possibilitando tragédias como as do incêndio do Museu Nacional. Melhorar a educação não é gritar contra contingenciamento de recursos sem também defender o foco na educação básica, na capacitação de professores e sua devida valorização, desde que acompanhadas de avaliação de desempenho e remuneração com base no aprendizado do aluno – e não nas pautas sindicais cujos pleitos ignoram a educação. Há que se defender a criação de uma nova carreira do magistério, que leve em conta o desenvolvimento do profissional da educação, remunere e valorize o professor cuja vocação e esforço estejam voltados ao aluno e o incentive a se capacitar em trilhas de conhecimento que reverterão em prol do seu desempenho em sala de aula. Mas nada disso estava lá. Perdemos a oportunidade de, uma vez reunidos em prol da educação no Brasil, a defendermos de verdade. Faltou entendimento e faltou informação.

Neste último domingo, a população voltou às ruas. Em reação à manifestação anterior, o mote inicial era se posicionar pró-governo e contra o establishment – como se nisso não houvesse uma contradição. Mas o que se viu, ao fim e ao cabo e descontados os excessos que já se tornaram norma, foi uma massa de pessoas clamando por reformas. Em particular aquela que era tratada como a mais impopular de todas, a reforma da Previdência. Isso não é pouca coisa. Num país em que a coletividade difusa paga a conta cada vez mais alta dos privilégios daqueles que abocanham fatias crescentes do Orçamento público, ver o povo se manifestando a favor da reforma é um sinal claro de que a população se cansou. Se cansou do desemprego, do desalento, da falta de perspectivas, da procrastinação. Não se pode mais adiar as pautas prioritárias e continuar a condenar o País à mediocridade e à pobreza. Chega, estamos todos cansados.”

terça-feira, 28 de maio de 2019

Sem carta branca





“Sem carta branca

POR MERVAL PEREIRA

A relação do presidente Jair Bolsonaro com seus assessores militares, além da amizade com a maioria, e do respeito à hierarquia inerente à corporação – o presidente da República é o Comandante em Chefe das Forças Armadas – tem um ingrediente especial: o respeito pela sua vivência na vida partidária dentro do Congresso.

 Quando algum assunto relativo à política está sendo tratado, Bolsonaro é direto com quaisquer de seus interlocutores militares e civis não políticos: “Quem entende de política aqui sou eu”.

Os militares são os mais impressionados com essa habilidade, pois, ao entrarem no ministério, entraram também em um mundo político que desconhecem.

Ao dizer que as manifestações de domingo foram “maiores do que se esperava”, o General Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), estava refletindo essa admiração pela atuação de Bolsonaro na arena política.

Para muitos que estão de fora, o presidente tem feito trapalhadas seguidas, sendo obrigado a se retratar e a voltar atrás frequentemente. Esses já são a maioria, segundo as pesquisas.

 Os militares, no entanto, estão convencidos de que tudo não passa de uma estratégia muito bem montada por Bolsonaro. A força das manifestações de domingo demonstraria o acerto do comportamento errático do presidente.

Um dia replicou em seu twitter convocação para as passeatas, quando elas ainda eram focadas em atacar o Congresso e o Supremo, defendendo até mesmo o fechamento das instituições simbólicas da democracia. No outro, orientou seus ministros e assessores a não irem às manifestações. E desautorizou usarem seu nome em reivindicações não democráticas.

A tática do morde e assopra, como agora, que se desculpou por ter chamado os estudantes que “idiotas inúteis”, seria uma maneira de manobrar entre os obstáculos políticos para chegar a um objetivo, no caso, a aprovação da reforma da Previdência.

Da mesma maneira, as freqüentes gafes que comete, como se reunir com ministros usando uma camisa do Palmeiras, ou servir pão com leite Moça para o assessor de Segurança Nacional dos Estados Unidos John Bolton fariam parte de um jogo de cena para manter sua imagem popular.

 Parecido com Jânio Quadros (olha ele aí novamente), que comia sanduíche de mortadela em público, ou espalhava caspa no terno. Collor também usou esse estratagema.

No domingo, Bolsonaro conseguiu o que os dois tentaram em vão. Jânio renunciou pensando que o povo o levaria de volta ao governo. Collor pediu para saírem de verde e amarelo, e todos saíram de preto. Bolsonaro conseguiu uma vitória parcial.

As manifestações não foram desprezíveis, como ressaltou o General Heleno, mas não foram suficientes para levá-lo a ter poderes acima do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), que continuarão, como a imprensa, a fazer o papel de contraponto ao poder do Executivo.

Haveria outros objetivos, de maior profundidade, como a tentativa de impedir a política de troca de favores com os parlamentares, e fazer o enfrentamento das corporações que dominam o espaço público a seu favor. Logo ele, representante do “baixo clero” que passou 28 anos na Câmara defendendo corporações militares e assemelhadas, e convivendo com a “velha política” sem denunciá-la.

 Apesar de ser uma figura  tosca, verborrágica, contraditória, Bolsonaro estaria sendo útil ao país ao emparedar e pressionar a classe política. Deixando o poder e seus beneficiários expostos

Esse comentário interessante, que recebi de um leitor, resume a opinião de vários outros. O resultado prático pode ser esse, mas, no entanto não é confirmado, pelo menos integralmente, pela prática presidencial.

A partir da escolha de ministros por critérios ideológicos, e não técnicos. E de decisões que levam em conta esses interesses ideológicos, como no caso do meio-ambiente, contra posições já sedimentadas nas maiores democracias ocidentais. Ou no caso da liberação de armas.

O combate à corrupção é contraditório, quando um filho senador está envolvido em diversas denúncias, que transbordam para o próprio Bolsonaro. Ou quando o ministro do Turismo, acusado de ter usado “laranjas” para desviar recursos da campanha eleitoral, é claramente protegido pelo presidente.

Os embates com os poderes constituídos da República, que limitam suas ações, seriam mais a demonstração da incapacidade de Bolsonaro de agir dentro dos parâmetros constitucionais do que intenção de moralizar o país. As ruas, no entanto, não lhe deram essa prerrogativa. “

sexta-feira, 24 de maio de 2019

Receita para a revolução





“Receita para a revolução
        
POR FERNÃO LARA MESQUITA

Não há saída para o Brasil sem a arrumação fiscal?

O buraco é mais embaixo...

Não haverá arrumação fiscal sem o fim desse regime de escravização de 99,5% do País aos “direitos adquiridos” dos 0,5% da privilegiatura.

Não há inocentes na tragédia brasileira. O Sistema não muda porque ninguém está pleiteando que mude. Ninguém admite perder nada. A divergência que essa polarização burra traduz circunscreve-se à disputa pelo comando da coisa. Não é o Brasil que está em discussão. O Brasil é só o prêmio dessa disputa.

Temos quatro anos pela frente e nada que não provoque calafrios no radar do futuro eleitoral da Nação. Mesmo considerando a culpa dos Bolsonaros pelos estragos que fazem a boquirrotice do presidente e as fogueiras ateadas pelos moleques do clã, não se admitiria que a imprensa atirasse nelas gasolina, em vez de água, nem que Rodrigo Maia e cia. as recebessem “fazendo beicinho” e “ficando de mal” à custa de afundar 200 milhões de brasileiros dez andares mais para baixo no inferno se fosse neles que estivessem pensando.

“O governo perdeu.” “O governo ganhou.” A imprensa não investiga as estatais nem expõe as mordomias que nos devoram. Só cobre a disputa de que o Brasil é o prêmio. Fornece tijolos para Babel. E o País Oficial, se vivesse no território que arrasou, trataria de consertá-lo com a urgência que nós temos. Como habita um Brasil só dele onde tudo sobra, pode dar-se o luxo de não ter pressa. A lei, quando não a própria Constituição com que nos assaltam, manda cortar antes remédio de criança com câncer e o pescoço da Nação que as lagostas do STF ou os cavalos de salto dos nossos generais.

A privilegiatura não está só sufocando o País. Está amputando as pernas de que vamos precisar para retomar a marcha quando conseguirmos arrancá-la da nossa jugular. O mundo está cheio de gente com coragem para mudar e de lugar para dinheiro ir. A única vantagem do Brasil é o tamanho do desastre que nos infligimos. Somos o maior potencial de upside do mercado. Ninguém fez tanto mal a si mesmo. A China da hora. Um país inteiro por reconstruir. Os últimos egressos de um socialismo bandalho. Mas a privilegiatura não quer estrangeiros intrusos que lhe custem despregar os dentes do osso. E como todo mundo aqui, menos o lúmpen sob o fogo cruzado, que não tem voz, tem uma tetinha para chamar de sua, a nave vai.

É hora de encarar a vida adulta. Sangue e barulho tem a dar com pau, mas revolução de verdade só teve uma na História da Humanidade. A que tomou o poder das mãos das minorias que, desde que o mundo é mundo, fosse “por ordem de deus”, fosse só porque “sempre foi assim”, disputavam exclusivamente dentro do círculo de uma “nobreza” (com suas respectivas “direita” e “esquerda”) o comando do aparato de exploração da maioria. O instrumento da revolução foi a transferência das mãos da minoria para as da maioria dos poderes de, a qualquer momento, eleger e deseleger os seus representantes, contratar e demitir os servidores do Estado, dar a palavra final sobre as leis sob as quais aceita viver.

Noventa e nove por cento da literatura política que jaz nas bibliotecas do mundo não vale um tostão. Não passa de esforços de prestidigitação para dar à maioria a impressão de que a realidade muda quando muda o discurso da minoria que passa a se apropriar do resultado do trabalho dela, ou até para convencê-la de que há razões muito nobres para que ela aquiesça de bom grado nessa expropriação. A que se salva é a que trata de tornar operacional essa transferência do comando do Sistema da minoria para a maioria dentro de um contexto de segurança institucional e com garantia de legitimidade.


Municipais, estaduais, federais, os distritos eleitorais com um número semelhante de habitantes (e, portanto, de eleitores) seguem a mesma lógica. Só o censo pode alterar os seus limites geográficos se e quando for constatada mudança importante na sua população. E em cada um desses círculos, o eleitor é rei. Ele escolhe o regime de governo do seu município, ele propõe leis aos seus coeleitores, ele aceita ou veta, por referendo, as leis “maiores” e “menores” dos seus legisladores.

A essência da humanidade não muda com isso. Continua-se a errar como sempre. Mas deixa de haver compromisso com o “erro”, que é o fundamento de todo privilégio. Tudo o mais, senão a definição desse modo de operar em seus contornos mínimos e essenciais, deixa de ser “pétreo” e “imexível”. Cada pessoa, instituição ou lei passa a estar sujeita a avaliação. Todo erro pode ser corrigido sem hora marcada e sem pedir licença aos não interessados.

Como é que se consegue implantar isso? Exigindo. O povo é rei. Consegue tudo o que realmente quer. O problema é que o brasileiro continua hesitando em deixar de querer a coisa errada.”

quinta-feira, 23 de maio de 2019

Afinal, para o que servimos?





“Afinal, para o que servimos?
        
Por Leandro Karnal

Tenho a tentação de explicar para o que eu sirvo. A pergunta é complexa. Comecei a trabalhar aos 16 anos com carteira assinada. Desde a primeira formatura, em História, aumentei minha carga horária sucessivamente. Dei aula em instituições públicas e privadas e colaborei na educação de milhares de alunos. Há muitos anos formo professores e pesquisadores na Unicamp e escrevo livros. Tenho escrito muitos artigos, orientado pessoas, dado entrevistas, palestras, colaborado com trabalho voluntário em instituições e outras questões menores. Volto à questão: para que eu serviria?

O governo federal fala em investir em áreas mais úteis para a sociedade. Oscar Wilde achava que o Estado deve fazer o que é útil e o indivíduo, o que é belo. É um terreno pantanoso. Vamos imaginar que útil seja aquilo que produza um bem concreto e objetivo. Nesse caso, o marceneiro é muito útil. O padeiro é um monumento à utilidade. Um agricultor e um operário são indispensáveis. Precisaríamos de filósofos? Seriam necessários políticos? O mundo não sobreviveria sem militares?

Voltemos ao campo da definição. Se as faculdades de Filosofia pararem por um mês, poucos notarão. Talvez o trânsito melhore, inclusive. Dez minutos de paralisação do metrô causam um caos que Sócrates algum poderia supor. O Brasil não dispara tiros contra um inimigo externo desde 1945. Seriam úteis as Forças Armadas? Se o ministro da Educação passasse para outra dimensão e os mecanismos de transferências de recursos estivessem no automático dos computadores, alguém deixaria de existir? Afinal, para que poderia servir um filósofo, um ministro ou um militar?

Como eu indiquei, produtores de bens materiais de primeira linha, como pães, nunca foram classificados como parasitas ou inúteis. Serviços estratégicos, como metrô ou motoristas de caminhão, têm imenso poder de fogo. E os bens imateriais? Os serviços que não apresentam algo muito concreto, com padres rezando missas ou pastores celebrando cultos? De novo, o mundo pararia sem rabinos, padres ou pastores? Se as zelosas freiras contemplativas de um convento acompanhassem o doutor Weintraub para espaço distante da nossa visão, como amanheceria o mundo? Para religiosos, a falta dos ministros de Deus seria um desastre. Porém, e para o mundo do pão e do metrô? Fariam falta?

Imagine que o Brasil amanheceu sem poetas, sem filósofos, sem críticos de arte, sem ministros, sem palestrantes, sem decoradores, sem maquiadores de defuntos, sem capitães ou sem pastores: que falta todos fariam? Para uma ilha deserta, você preferiria qual profissão para salvar? O mundo vai acabar, selecione entre um ministro da Educação e um agricultor, entre um médico e um capitão reformado. O que você escolheria?

Quando eu era criança, no meu livro do primário havia imagens de animais “úteis e nocivos”. As vacas eram úteis, bem como as abelhas. Os mosquitos eram nocivos, claro. No meio desse antropocentrismo especista, havia pouco questionamento sobre o critério da utilidade. No livro didático dos camaleões, por exemplo, mosquitos seriam muito úteis e humanos, muito nocivos. A ética camaleônica, insetívora, apoiaria exterminar humanos e preservar o Aedes aegypti.

É preciso reconhecer que o conceito de utilidade é um pouco mais elástico do que aquele centrado no produto material. Os caminhoneiros são essenciais no Brasil. Eles existem porque houve a invenção do motor a explosão e o surgimento de cientistas que transformaram petróleo em combustível, muitos ligados à área de pesquisa da universidade. As áreas de pesquisa cresceram quando filósofos como Descartes criaram métodos racionais para pensar problemas específicos e paradigmas físicos foram tratados por pensadores como Newton. O cientista inglês, aliás, era também astrólogo nas horas vagas, vejam que coisa curiosa. O diálogo entre o método científico, a universidade, os pesquisadores, os cientistas oficiais e avulsos e os inventores privados deu origem ao mundo complexo que possibilita ao caminhoneiro existir.

Compreender esse mundo inclui saber que certas éticas religiosas do trabalho devem ter colaborado para o progresso do capitalismo como previa o sociólogo Weber. Fundamental supor que elementos religiosos, filosóficos, científicos e demandas de mercado foram se tornando elos de uma corrente que possibilitava Pascal ser um grande filósofo, renomado teólogo e inventor de teorias matemáticas usadas até hoje. Aliás, ele também deduziu uma máquina de calcular muito engenhosa. O conhecimento de um Leonardo da Vinci ou de um Pascal nunca pensou em utilidade, porém no sentido socrático de que todo conhecimento que nos torna melhores é útil. A realidade é mais complexa do que o tijolo feito pelo oleiro para um muro. Ainda que o olho simples e comum só veja o tijolo (algo útil), a concepção artesanal ou arquitetônica vai dialogar com sujeitos invisíveis além do que tocamos.

O tema é vasto e contém muitas bibliotecas de apoio para argumentos. Fiquemos apenas em um questionamento: quando começamos a falar sobre o que é útil ou inútil, devemos ter cuidado. Pela dialética clássica, podemos despertar a mesma pergunta para nosso campo e alguém pode devolver a pergunta a quem a faz: você é útil ou inútil? Além dessas categorias, existe uma pior: você faria alguma falta? É preciso ter esperança.”

quarta-feira, 22 de maio de 2019

A política brasileira entre dois passados





“A política brasileira entre dois passados
        
POR BOLÍVAR LAMOUNIER

Em 1958, quando publicou Os Donos do Poder (Editora Globo), mestre Raymundo Faoro introduziu o conceito de patrimonialismo, estabelecendo por meio dele a mais clássica das clássicas interpretações da História brasileira.

Mas, parafraseando Ortega y Gasset, podemos dizer que toda grande obra é ela mesma e sua circunstância. Nós, leitores preguiçosos, lemos o título e deixamos de lado o subtítulo do livro. Neste – Formação do Patronato Político Brasileiro – Faoro esclareceu melhor o sentido de seu trabalho. O Estado patrimonialista deitava raízes na era medieval portuguesa, mas Faoro quis manter a dignidade do substantivo formação. Nós, imbuídos da ideologia desenvolvimentista que à época emergia com todo o vigor, não quisemos perceber o paradoxo que o grande historiador gaúcho ali deixara, de caso pensado. Otimistas, só queríamos pensar no futuro e acreditávamos piamente que a industrialização liquidaria todos os resquícios do passado colonial. Portanto, o próprio patrimonialismo haveria de fenecer naturalmente. Morreria de morte morrida logo que as chaminés das fábricas de São Paulo enchessem o céu com sua espessa fumaça. Não nos passou pela cabeça que o Estado patrimonialista era uma estrutura poderosa, capaz de resistir a pressões contrárias à sua índole.

De nossa incapacidade de perceber a resiliência do patrimonialismo decorreram vários equívocos, o mais óbvio dos quais é que ele simplesmente se recusou a morrer. Está aí, perceptível a olho nu, agigantado e cada vez mais forte. Seu hábitat natural é, obviamente, Brasília, onde, sem dificuldade alguma, seus tentáculos sufocam e interligam os três Poderes. Estado patrimonialista, uma estrutura que vive em função de si mesma, que persegue os objetivos que ela mesmo escolhe, e o faz distribuindo o grosso da riqueza e as melhores oportunidades de ganho entre os “amigos do rei”. É certo que admite novatos, mas por cooptação, não como protagonistas autônomos, como bem explicou Simon Schwartzman no também clássico Bases do Autoritarismo Brasileiro (Editora da Unicamp).

Do equívoco que acima enunciei no atacado, penso que três outros merecem ser abordados no varejo: somos um país sem elites autônomas, sem classe média e sem partidos políticos.

Teríamos elites autônomas se as tivéssemos fora do Estado, capazes de balizar as ações do núcleo estatal, impelindo-o a levar mais em conta o que, para abreviar, chamarei de bem comum. Os poderosos “de dentro do Estado” obviamente não são elites no sentido que acabo de definir; são o próprio Estado, os amigos do rei, vale dizer, de si mesmos. Os que não se deixam balizar por nenhum poder externo, pois detêm em caráter privativo a função de balizar a sociedade, de fixar e aplicar as normas, com a parcialidade que lhes parece adequada em relação a qualquer assunto e a cada conjuntura.

Do ponto de vista histórico, como aconteceu isso? Ora, sabemos todos que a grande atividade econômica do Brasil colonial era a lavoura canavieira. O consórcio colonial luso-brasileiro deteve o monopólio mundial do produto até meados do século 17. Começou a perdê-lo com a invasão holandesa, iniciada em 1624. Expulsos, entre 1654 e 1661, os holandeses pegaram seus volumosos capitais, a técnica dos engenhos e o respaldo da Holanda, então a rainha dos mares, e foram para a América Central, de onde, num abrir e fechar de olhos, destruíram a hegemonia luso-brasileira. Rápida no gatilho, a camada dominante da lavoura açucareira percebeu que dali em diante sua sobrevivência dependeria mais da política que da economia. E pulou para dentro do Estado, onde até hoje se encontra.

Algo semelhante, mas em menor escala, ocorreu com a extração do ouro e dos diamantes em Minas Gerais, mas o caso verdadeiramente instrutivo é o da cafeicultura paulista. Tendo viabilizado a passagem do trabalho escravo ao assalariado, ela também deteve por algum tempo um quase monopólio do mercado mundial do produto. Não menos importante, como esclareceu Celso Furtado, ela permitiu o surgimento de uma elite muito mais qualificada, capaz de pensar grande e de operar com tirocínio no mercado internacional. Mas a História se repetiu, embora por outros caminhos. A superprodução e a competição internacional não tardaram a aparecer e a brilhante elite cafeicultora o que fez? Reuniu-se em Taubaté, em 1906, e pleiteou também seu lugarzinho no colo do Estado. Nos primórdios da industrialização, a elite nem precisou pleitear nada, pois já nasceu aconchegada na estrutura corporativista montada por Getúlio Vargas, encaixando-se no sindicalismo de empregadores.

Demonstrar que tampouco dispomos de uma classe média capaz de sobreviver com os rendimentos da pequena empresa ou de empregos de boa qualidade é uma tarefa bem mais simples. Poucos anos atrás trombeteamos muito o surgimento de uma “nova classe média”, não nos dando conta de que toda série numérica pode ser subdividida em quantas subséries quisermos, e uma delas será “média”. Uma pena que os limites mínimo e máximo de tal subsérie eram constrangedoramente baixos. Nada que ver com uma classe média numerosa, robusta e autônoma, e é por isso, evidentemente, que temos uma das piores distribuições de renda do mundo: nossa “classe média” é um conjunto vazio entre a pífia minoria que maneja o Estado patrimonialista e a massa de miseráveis à qual tal Estado nem uma escolarização decente proporciona.

E os partidos políticos? Ora, um partido político digno de tal designação tem como requisito fundamental a capacidade de se superpor a interesses demasiado estreitos, balizando-os no sentido do bem comum. Os nossos são incapazes de fazer isso porque no fundo eles não passam disto: são meros grupos de interesse, protagonistas do corporativismo desatinado a que nosso país chegou.”

terça-feira, 21 de maio de 2019

Etiquetas virtuais





“Etiquetas virtuais
        
Por Leandro Karnal

Fascista! Reaça! Petralha! Esquerdopata! O universo das redes sociais é constituído de átomos de veneno e moléculas de adjetivação. Palavras usadas em demasia costumam perder sentido prático. O insulto é sempre um espelho bizarro.

Como quase todos sabem, esquerda e direita são termos surgidos com a Revolução Francesa do século 18. Ampliaram-se nos séculos 19 e 20 e ganharam matizes. Por exemplo, apesar de serem ambos de “esquerda”, anarquistas e marxistas tinham atritos teóricos e rixas práticas sobre a concepção do Estado. A Grande Guerra (1914-1918) aumentou a cisão. Uma parte da esquerda apoiou a “união sagrada” contra os inimigos externos e deu origem, grosso modo, a partidos socialistas. Os que se negaram a formar uma frente única interna, por considerarem que a guerra era um choque de capitalistas, foram chamados de comunistas.
                                                              
Coisas bizarras: você é conservador e desconfia do Estado? Você postou que o governo de Stalin foi autoritário e repressor? Cuidado!

Você pode receber likes de anarquistas, pois eles consideram a URSS exemplo de socialismo autoritário e abominam o Estado.

Rótulos escondem quase tudo e atendem a necessidades de simplificação rasteira, especialmente em ambientes superficiais e regados a sangue e bílis como redes sociais. O que significa ser conservador? Parto das ideias de Edmund Burke. No fim do século 18, o irlandês desconfiava de processos de mudança brusca na França. A primeira característica dos conservadores passa a ser a desconfiança de quebras repentinas da tradição. Para Burke, o presente é um compromisso entre dois mundos: o que nos antecedeu e o futuro. Rupturas como a Revolução Francesa ou a Russa (1917) causam mais danos do que avanços.

O conservador, inspirado em Burke, desconfia da perfectibilidade humana, ou seja, de que estejamos fadados à perfeição. Acima de tudo, o conservador clássico desconfia do Estado como elemento de resolução dos problemas.

Dependendo de onde está quem escreve, sua opção política pode ser descrita com nomes distintos. Liberal, por aqui, é signo aberto.

Nos EUA, republicanos nasceram ligados a profissionais liberais e eram pró-livre iniciativa. Seus radicais defenderam o fim da escravidão antes da Guerra da Secessão, e a integração irrestrita dos negros à cidadania americana no pós-guerra. Criaram cotas, associações de reparação e leis que favoreceram por alguns anos a ascensão dos ex-escravos à condição de proprietários e eleitores/eleitos. Hoje, ser republicano parece ser desconfiar de todos esses princípios.

Os democratas nasceram ligados às elites agrárias sulistas. O panorama muda na Grande Depressão dos anos 1930. O laissez-faire de Hoover deu lugar ao New Deal e ao Welfare State de Roosevelt/Truman. Democratas passaram a simbolizar o trabalhador mais simples e as minorias.

Hoje, nos EUA, se dizer um “liberal” é se afirmar como alguém de esquerda, pois se exige Estado presente, provendo serviços aos cidadãos, direitos às minorias, etc. No Brasil, ambos os lados da política majoritária americana (e suas muitas divisões internas) estariam classificados como centro (numa lógica de social-democracia) ou direita. A polarização ao redor de Trump está dando cada vez mais voz à esquerda democrata e à direita republicana.

Na Europa, muitos conservadores clássicos adotam posturas que aqui seriam denominadas como “liberais” ou de “esquerda”. Na França, o líder da campanha da extrema direita de Le Pen, Florian Philippot, passeava feliz de mãos dadas com seu namorado. Pim Fortuyn, conservador nacionalista holandês, inimigo da imigração islâmica, era gay. Foi assassinado por um militante defensor dos animais. Para muitos como eles, o conservadorismo era o respeito a sua orientação sexual, já que não caberia ao Estado dizer o que ele deve ser, especialmente no que toca a questões pessoais que em nada afetam as alheias. O modelo “liberal na economia e conservador nos costumes” não é único, mas é mais próximo das jabuticabas tupiniquins do que das tulipas de clima temperado.

Diferentemente de tudo isso, surge o reacionário. Ele idealiza um passado glorioso onde as famílias eram sólidas e perfeitas, a religião dominava, o Estado era eficaz e nunca corrupto e todos andavam felizes nas ruas. O reacionário quer restaurar esse passado mítico reprimindo o que ele considera modernidades inaceitáveis. Um exemplo histórico seria o conde Joseph-Marie De Maistre (1753-1821). O problema do reacionário é que ele parte do mesmo equívoco de alguns revolucionários autoritários. Um clássico membro do Exército Vermelho, por exemplo, durante a Revolução Cultural Chinesa (uma lavagem cerebral somada a genocídio), estava disposto a destruir tudo o que existia para construir uma nova ordem gloriosa. Um clássico reacionário também quer barrar tudo para que se restaure uma ordem perfeita que sua avó inventava da cadeira de balanço minutos antes de abandonar a lucidez de forma definitiva.

Há dezenas de outras posições políticas possíveis, da social-democracia, passando pelos “verdes”, até o anarcocapitalismo. O espaço não permite mais. O espectro político plural permite muitas coisas, menos o ataque ao Estado Democrático de Direito e aos princípios contidos no artigo 5.º da nossa Constituição. Se você nega o artigo quinto (combate ao racismo, igualdade diante da lei, criminalização da tortura, etc.), você não é de direita ou de esquerda, você é apenas um canalha. É preciso ter esperança.”

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Os dilemas de Moro





“Os dilemas de Moro
        
POR FERNANDO GABEIRA

Não posso dizer que o ministro Sergio Moro me surpreenda, porque não o conheço bem. Nem posso avaliar o êxito de sua escolha, pois o governo apenas começa, apesar de tantos episódios cheios de som e fúria, significando nada.

Nos últimos meses, o Brasil vem reduzindo o número de assassinatos. A queda foi de 12,5% em 2018. Leio que em fevereiro a queda dos assassinatos no Ceará foi de 58%. Já analisei a situação do Ceará em artigos anteriores. Parte da derrocada do crime se deve à suicida ofensiva militar das facções. Derrotadas, tiveram de unir objetivos e parou a matança mútua.

Mas houve trabalho também por trás dessa redução. Do governo petista e de Moro. Um dos fatores foi a apreensão rápida dos carros roubados, graças às câmeras que identificam as placas e acionam o alarme. Carros roubados são fundamentais em ações criminosas.

Era o momento de dizer: o índice de assassinatos está caindo, é possível reduzi-los, vamos discutir o que aconteceu e traçar os rumos do próximo avanço.

Moro parece-me indiferente a esses dados. É provável que, no caso do Ceará, exista um pequeno incômodo: o sucesso parcial se deve a um trabalho conjunto com o governo petista. Reconhecer as vantagens de uma ação republicana não repercute bem nas hostes radicais governistas. Mas, no meu entender, existe outro fator que condena o pequeno sucesso ao anonimato. Ele se deve também à tecnologia. Assim como em Guararema (SP), são as câmeras que fazem o trabalho – um trabalho decisivo.

Num governo preocupado com espingardas e trabucos, a grande expectativa é a posse de armas para todos. O sucesso não interessa porque ele é resultado do avanço tecnológico, não comprova a ideologia oficial que vê nas armas a única salvação.

Moro assistiu meio constrangido à assinatura de um decreto claramente ilegal para a liberação das armas. É uma espécie de estatuto próprio de Bolsonaro, atropelando o Congresso e a lei.

De que adianta ser ministro da Justiça e concordar com esse amadorismo bélico? De certa forma, Moro lembra a obra mestra da literatura alemã: Fausto, de Goethe.

Bolsonaro sabe que Moro engole sapos no governo e tende a ser derrotado no Congresso. E relembra a compensação para tantos transtornos: um lugar no Supremo Tribunal Federal.

Com todo o respeito pelo Supremo e pelos juízes que querem chegar lá como ápice de suas carreira, isso é um enredo modesto e provinciano diante das oportunidades que se abrem de construir uma eficaz política de segurança pública no Brasil. As afirmações de Bolsonaro sobre o compromisso de levar Moro ao Supremo, entre outras coisas, apenas reduzem a dimensão do que parecia ser até para ele um tema de grande importância.

Isso sem contar o absurdo de indicar um ministro para o Supremo com mais de um ano de antecedência, abstraindo as condições da Corte e os potenciais candidatos, algo que só pode ser levado em conta no momento da escolha.

Moro tem um pacote anticrime e se empenha em aprová-lo, o que acho improvável em curto prazo e na integridade do texto. Mas isso não esgota o trabalho. Há muita coisa a fazer no campo da segurança pública e nem tudo está contido no pacote.

Uma das coisas mais lamentáveis nos políticos é ocuparem um cargo pensando em outro. Alguns são derrotados por causa disso. Outros escapam pela tangente, como é o caso do governador de São Paulo.

Essa história do Supremo acabou colocando Moro no mesmo patamar das pessoas que estão fazendo de seus postos apenas uma espécie de alavanca para o que consideram um salto maior.

E nem sempre consideram com precisão. De fato, seria uma bela carreira começar como juiz no interior do Paraná, conduzir importantes processos e conquistar ainda jovem uma cadeira no Supremo. Mas isso é um capítulo do livro “pessoas que deram certo”, que realizaram seus sonhos.

Muitos podem achar que a soma de pessoas que deram certo faz um país vitorioso. Mas é um engano. É preciso um trabalho específico de recuperação do Brasil, que independe de promoções, promessas compensatórias.

Uma política de segurança pública é algo essencial. No entanto, apesar de eleito com essa bandeira, Bolsonaro confia apenas nas armas e aponta os dedos como se estivesse atirando. Ao seu lado, numa foto meio patética, políticos e aspones apontam o dedo também como se estivessem atirando.

A base deixada por Temer e implementada por Jungmann precisa ser desenvolvida. Visitei no Ceará um centro de informações que será vital para o Nordeste. Agora foi inaugurado de vez. Inteligência e tecnologia, aos poucos, vão transformando o caos na segurança pública em algo administrável.

Movidos por sua ideologia bélica, os dirigentes atuais seguem apontando os dedos como se atirassem. Não há provas da eficácia dessa visão. É um pouco como as cerimônias religiosas dos antigos para garantir a chuva e fertilidade.

É preciso problematizar a solução pelas armas e Moro até agora não se dispôs a fazê-lo. Não foi pelas armas que a Lava Jato rendeu muitos elogios e prestígio internacional.

Apoiei a operação por considerá-la a única capaz de desatar o nó da impunidade no Brasil, unindo instituições, estabelecendo a cooperação internacional, usando da melhor forma os recursos tecnológicos. Se alguém me dissesse que o sonho de Moro era fazer tudo isso para ganhar uma cadeira no Supremo Tribunal, perguntaria: mas só isso?

Moro decidiu entrar no governo para completar seu trabalho, uma vez que a Lava Jato dependia de novas leis. Agora, corre o risco de retrocesso e tudo o que lhe prometem é uma compensação, um cargo de ministro, uma capa preta, lagosta com manteiga queimada, vinhos quatro vezes premiados e espaço na TV para falas intermináveis. Mesmo o Doutor Fausto queria mais.”

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Tá lá o corpo estendido no chão





“Tá lá o corpo estendido no chão

Por Mônica De Bolle

A reforma da Previdência tem ocupado as páginas dos jornais, o espaço dos colunistas de economia, as discussões nas redes sociais, os blogs especializados, as discussões na TV, essencialmente sugando o oxigênio de qualquer outro tema que deva ser discutido com urgência. A educação brasileira é algo que deve ser discutido com a mesma urgência. Não falo apenas dos cortes arbitrários nas verbas das universidades públicas ou na decisão precoce de eliminar as bolsas de estudos concedidas pela Capes e pelo CNPq. Advirto que sem as bolsas, dezenas de milhares de alunos deixarão de fazer o mestrado ou o doutorado, dezenas de milhares de pesquisadores ficarão sem recursos para seu trabalho acadêmico. No Brasil, o desenvolvimento da pesquisa depende dessas bolsas, ao contrário dos EUA – onde dou aulas e pesquiso – em que há amplo financiamento privado, ou público e privado. Esses temas são de extrema importância, mas nesse artigo quero chamar a atenção para o corpo estendido no chão com o governo fechando a janela para não ver o crime: a educação. Toda a educação no Brasil.

Como deve ser do conhecimento de muitos leitores, há vários indicadores para avaliar a qualidade da educação no País. Tratarei de um deles, o exame Pisa da OCDE aplicado a cada três anos em mais de 70 países abrangendo alunos de 15 anos – ou seja, jovens que estão perto de concluir o ensino fundamental, prestes a entrar na fase que deveria prepará-los para a universidade, o ensino médio.

O último retrato que temos da educação brasileira vem do Pisa de 2015, e a fotografia do corpo estendido no chão é de uma violência chocante. O Pisa de 2015 teve como foco principal a área de ciências, portanto começarei por ela. Os alunos brasileiros obtiveram uma média de 401 pontos em ciências, abaixo do nível 2 da OCDE, faixa que define o mínimo de proficiência. Estar abaixo do nível 2 significa que o aluno não aprendeu a interpretar dados ou a identificar a principal pergunta nas experiências mais simples. De acordo com a OCDE, 40% dos alunos brasileiros avaliados expressaram o desejo de ter uma carreira futura em áreas de ciências, maior do que o interesse médio de apenas 25% demonstrado por alunos de países da OCDE. Contudo, de modo geral os alunos brasileiros não têm o conhecimento mínimo para alcançar o sonho de se tornarem cientistas.

Na avaliação de matemática, 70% dos alunos brasileiros estão abaixo do nível 2. Ou seja, acachapantes 70% dos jovens no ensino fundamental não conseguem usar conhecimentos básicos da matéria para resolver problemas simples. Sem o embasamento mínimo em ciências e matemática, proporção enorme dos alunos brasileiros não estará preparada para os empregos do futuro, cada vez mais influenciados pelas inovações tecnológicas que haverão de influenciar o mercado de trabalho e as vagas disponíveis. Nossos jovens não estão minimamente qualificados para um futuro que chega rapidamente – pensem no drama social e no desperdício inominável que isso significa.

Em leitura, metade dos nossos alunos não consegue alcançar o nível 2 do Pisa. Não alcançar o nível 2 do Pisa equivale a ser um analfabeto funcional. Portanto, vou repetir: metade dos alunos brasileiros avaliados pela OCDE é composta por analfabetos funcionais aos 15 anos, às vésperas de ingressar no ensino médio.

que o problema está concentrado nas faixas de renda mais baixas? Pois não está. O Pisa abre os dados por faixa de renda, e mostra inequivocamente que a educação estraçalhada é problema universal. A elite brasileira, os que estão no topo da distribuição de renda, tem desempenho muito abaixo do aluno mais pobre de Hong Kong, e desempenho mais ou menos equivalente ao do aluno de classe média baixa do Chile. Os filhos da nossa elite não chegam a alcançar o nível 3 da OCDE, enquanto os filhos da elite do México, do Chile, do Uruguai o ultrapassam. Na classificação geral do Pisa, o México está apenas 5 posições acima do Brasil – o Brasil está entre os 10 últimos colocados – o que significa que embora a educação por lá seja ruim, alguns se beneficiam. No Brasil, nem isso. Estamos nivelando todos os nossos jovens por baixo.

“Ah, mas é por isso que devemos cortar as verbas das universidades!”, muitos dizem. Os que dizem esquecem de algo absolutamente fundamental: são as universidades que formarão os professores, os diretores de escola, os secretários de educação, enfim, todos os responsáveis por educar os filhos do Brasil. Está lá um silêncio servindo de amém.”

quinta-feira, 16 de maio de 2019

Suspeitos do Centrão é que mandam no Brasil





“Suspeitos do Centrão é que mandam no Brasil
        
POR JOSÉ NÊUMANNE

Nestes últimos dias, nossa insana República, proclamada num golpe militar por um marechal enfermo, tem dado exemplos em que cada um dos três Poderes atropela o princípio da autonomia, invadindo e deixando-se invadir, ao contrário do que previa o velho Montesquieu. Este ambiente de confusão e anarquia causa uma situação de anomia e desarmonia que debilita as instituições no que elas têm de mais relevante: as próprias prerrogativas.

O Executivo, sob comando de Jair Bolsonaro, tem sido a maior vítima desse estado anômalo de coisas, mas não deixou também de invadir seara alheia sem mostrar cerimônia nem pedir anuência do Legislativo ou do Judiciário. Ao dar, por exemplo, licença para matar a proprietários rurais a pretexto de evitarem invasões ilegais de suas terras, o chefe do governo transferiu para ruralista que se sentir agredido poderes de policial, dispensando-se de inquérito por homicídio, de promotor, declarando-se inimputável, de juiz, absolvendo-se, e de carrasco num país cujo ordenamento jurídico não prevê pena de morte.

Ao anunciar um pacote de flexibilização do porte de armas para 19 categorias profissionais, atendendo não a um clamor social, mas a reivindicações de campanha de uma elite com poder aquisitivo para adquiri-las, o mesmo Bolsonaro deu vazão a reclamações que podem levar a ações na Justiça.

Mas antes de tais processos serem julgados no ritmo de cágado de nossas ações judiciais, o Judiciário assumiu o papel de moderador, que era do imperador e na República se foi tornando uma espécie de herança fidalga para os togados de nosso Supremo Tribunal Federal (STF). A pretexto de suprir omissões do Congresso, o STF interfere em temas que não são de sua alçada, mas dos legisladores. Os 11 membros do “pretório excelso” chegam a absurdos extremos, como o de permitir o sacrifício de animais em rituais religiosos, em desumano desrespeito à vida dos irracionais. Com a devida vênia, a impiedosa decisão unânime renega os melhores instintos de quem se diz racional.

Não se deve presumir desse exemplo que os legisladores não cometam o mesmo pecado. Nada disso. Fazem-no muitas vezes e em doses cavalares. Acabamos de ter fartos exemplos disso nos cinco meses e meio do exercício paralelo da nova administração federal e do início da atual legislatura. O citado ex-deputado Bolsonaro é legitimamente presidente da República, eleito por sufrágio de 57 milhões 796 mil e 986 votos no segundo turno. Parte dessa vitória deve ser atribuída à promessa que ele fez em campanha de reduzir o total de ministérios existentes. Tão logo foi empossado, encaminhou ao Congresso a Medida Provisória n.º 870/19 em cumprimento do compromisso.

A medida provisória (MP) foi adotada para evitar solução de continuidade nas trocas de governo que são frequentes nos regimes parlamentaristas. O Congresso constituinte no Brasil, que se encaminhava para a solução da chefia parlamentar de governo, teve de dar uma guinada de 180 graus para adaptar providências como essa ao presidencialismo, a que seu plenário foi levado a aderir por pressão do presidente de então, José Sarney. No presidencialismo de coalizão, adotado pela Carta de 1988, os presidentes passaram a legislar abusando das MPs, enquanto o Congresso, que pode aprová-las, rejeitá-las ou deixar que caduquem, recorre aos “jabutis”. Essa gíria define intromissões indevidas em seus textos.

Embora a Constituição não proíba tais truques, espera-se que presidentes e parlamentares consequentes obedeçam, no mínimo, à boa e velha lógica. Na democracia brasileira, em âmbito federal só o chefe do Executivo e os senadores são eleitos diretamente pelos cidadãos. Deputados federais são escolhidos pelo sistema proporcional, que possibilita distorções que ferem a aritmética e a representação legítima. Sua intromissão na gestão é nociva ao interesse público.

Esgueirando-se por esses desvãos institucionais, parlamentares processados, denunciados, acusados e condenados por crimes de colarinho-branco em operações do Ministério Público, da Polícia Federal e da Justiça dão as cartas. Bolsonaro “dormiu no ponto” ao negligenciar a ação de legisladores que infringem leis que eles próprios aprovaram. Percebe-se a ação de uma quinta-coluna no Palácio do Planalto e em gabinetes de liderança do governo no Congresso. O chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, é suspeito de usar o mesmo caixa 2 que o ministro da Justiça, Sergio Moro, quer criminalizar. O senador Fernando Bezerra Coelho, descendente do primeiro capitão-mandatário da capitania de Pernambuco, ex-ministro de Dilma e denunciado por seis delatores da Odebrecht, é, na verdade, líder do Senado no governo.

Nada disso, contudo, elimina o absurdo da intromissão do Congresso ao desfazer não a vontade monocrática do presidente, mas o compromisso que ele assumiu com a cidadania para impedir o desmanche das operações de combate à corrupção e ao crime organizado. Ao devolver o Comitê de Controle das Atividades Financeiras (Coaf) da Justiça para a Economia, mesmo que não venha a ter o resultado esperado pelos artífices da manobra, e, sobretudo, ao impedir a colaboração entre a Receita e o Ministério Público na investigação de malversação do dinheiro público, o Legislativo não representa o cidadão. Mas o trai.

O governo é exercido, de fato, pela troica Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre e Valdemar Costa Neto. O presidente da Câmara teve em outubro 74.232 votos (0,96% dos votos válidos) no Estado do Rio. O do Senado, que perdeu a eleição para governador do Amapá em 2018, conseguiu 131.695 (36,26% dos votos válidos) em 2014 para senador. Sem voto, Valdemar, condenado a sete anos de prisão por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no escândalo do mensalão petista, é a eminência parda do ominoso Centrão, que manda no País. Pode acreditar.”

quarta-feira, 15 de maio de 2019

A inutilidade da compra de certificados





“Da inutilidade da compra de certificados

Por Fernão Lara Mesquita

O problema do Brasil é a total independência do País Oficial em relação ao País Real. Tudo o mais é nada perto disso. A sobrevida desse País Oficial desenhado como uma privilegiatura depende dessa independência. Eles sabem que estarão mortos quando o País Real renascer. Daí ano perdido para nós ser ano ganho para eles. Já vamos em duas “décadas perdidas” desde que o país parou. Mas ele vem desacelerando desde 1988 quando a privilegiatura plantou o marco da sua independência do Brasil que foi a Constituição profeticamente chamada “dos Miseráveis”, hoje um compêndio de 250 artigos e 80 emendas, todos menos um especificamente desenhados para anular a soberania do povo que o primeiro dos seus Princípios Fundamentais afirma.

O Brasil anda perdido. Além do que já está pronto para o consumo, só importa do mundo que funciona as obsessões que o tédio e as doenças correlatas da abundância lhe inflingem: os ódios de raça, de gênero, de religião e seus sub-departamentos; as deformações alimentares, os vícios, o ridículo. O componente conspiratório pesa menos do que parece. O canal preferencial dessa linha de contaminação é a arte, a escola e a imprensa vira-latas. O professor, o artista e o jornalista vira-latas integram um grupo auto referente que vive de chamar mediocridade de talento e vício de virtude (e, claro, de transformar o pertencimento ao grupo em verbas públicas e privilégios vitalícios). Tudo referir a esses temas, o preço a pagar pelas graças recebidas, é a “credencial de modernidade” com a qual sentem-se autorizados a retrucar com “carteiradas” qualquer argumento racional em contrário. Conjecturar sobre o quê e como fazer para mudar nossa realidade como outros pedaços mais humildes da humanidade fizeram não é, para eles, “aprender”, é aceitar a acusação de “lacaio”, condição que todos, aliás, estão treinados para assumir de bom grado desde que seja do feitor certo.

A elite empresarial de boa fé, imersa nesse processo de deseducação, “compra certificados” de progressismo criando cursos de capacitação e empreendedorismo em favelas e comunidades quilombolas, espalhando bandeiras do Brasil pelas ruas, financiando candidaturas de quem tope receber vagos cursos de honestidade na política… Para ser exato, não sabe o que fazer. Quer, como a maior parte dos outros brasileiros de boa fé, até os políticos, plantar aqui o resultado das profundas reformas feitas pelas sociedades “de sucesso” sem antes passar por elas.

Não é que nossas elites não acreditem na liberdade. Nunca a experimentaram. Não sabem o que é. Por isso morrem de medo dela. Não têm a menor ideia de como “a desordem” que a liberdade cria trabalha para impulsionar o crescimento, o empreendedorismo, a inovação. Com os dois pés nos estágios mais básicos do mandonismo – positivista no caso da elite política; da revolução industrial no da empresarial – nenhuma aceita com naturalidade a submissão ao povo e à alternância no poder político, uns, e à “destruição criativa” e à alternância no poder econômico, os outros. Consciente ou inconscientemente, trabalham todos contra a mudança ao tratar de proteger o povo dele mesmo, porque não existe mudança possível antes da mudança da fonte de legitimação do poder.

Em toda a parte os salários mais altos atraem as maiores ambições, os mais dispostos a tudo e, no sentido darwiniano da expressão, os mais aptos. Cria-se então uma elite que trata de perpetuar-se comprando a melhor educação, a melhor informação, a melhor medicina. Nos EUA, do final dos 70 em diante, o setor financeiro, de instrumento assessório do desenvolvimento se foi transformando, ele próprio, “no” poder, tão estratosférico foi o nivel a que chegaram os salários. Depois da crise de 2008 metade do governo passou a “emanar” … do Goldman Sachs. Os americanos “pés-duros”, porém, contam com poderosas defesas contra isso. Além da constituição mais sólida do planeta, copiaram há mais de 100 anos, quando estiveram tão podres quanto estamos hoje, o remédio que os suiços inventaram há mais de 700 (isso mesmo, desde 1291!) para transformar escravos em senhores que os fez a maior renda per capita e o povo mais educado do mundo. O mesmo que os japoneses adotaram a partir de 1945, os coreanos desde 1954 e que o resto do mundo que funciona vai copiando hoje.

O estado brasileiro paga os maiores salários relativos do planeta. Tão altos que fora dele só restou miséria e brejo. A disputa de poder – o político e o econômico – dá-se, por isso, exclusivamente pelo controle do estado. Mas nas nossas condições de extrema fragilidade institucional a elite que se reveza no poder não se apropriou apenas do governo, apropriou-se da própria Constituição, que transformou no instrumento incontestável da sua auto-reprodução.

O único ponto fraco do “Sistema” é a ilegitimidade que a morte à míngua da economia nacional põe, agora, numa evidência impossível de abafar. O único inimigo capaz de derrota-los é a força que a opinião pública apenas começa a desconfiar que tem e usa, ainda, a esmo, sem foco, como uma adolescente estabanada. A vitória só virá se e quando entender que, sendo o jogo institucional, é preciso definir quais instituições fazem-se necessárias para reverter dawinianamente o processo darwiniano com que se defronta. O que é preciso exigir para transformar em fator decisivo de fracasso o que antes era fator decisivo de sucesso do inimigo, e deixar que a natureza, agora através de um filtro de seleção positiva, faça o resto.

O povo brasileiro perde todas porque não tem representação no País Oficial. “Democracia representativa” é uma hierarquia onde os representados mandam e os representantes obedecem mas o Brasil não dispõe dos instrumentos capazes de criar uma. Isso só é possível se e quando o sistema eleitoral permite saber quem, exatamente, representa quem, e o representado traído pode demitir no ato o representante traidor.

O resto – todo o resto – é só “me engana que eu gosto”.

terça-feira, 14 de maio de 2019

Os vencedores levam tudo





“Os vencedores levam tudo

Por Fernando Gabeira

Mas que briga é aquela que tem acolá? É o filho do homem com o seu general. Não pretendo analisar uma luta interna no governo, cheia de insultos escatológicos.

Pergunto apenas se vale a pena tantos militares no governo, com ataques permanentes contra eles e uma certa ambivalência de Bolsonaro. Se a ideia é apanhar pelo Brasil, talvez não seja a melhor aposta. O risco de desgaste das Forças Armadas é grande. E os resultados até agora, desanimadores.

Os termos que certos setores do bolsonarismo colocam são, na verdade, uma armadilha. Não respondê-los significa um silêncio constrangedor para quem participa do mesmo projeto de governo. Respondê-los é cair numa discussão de baixo nível, um filme onde todos morrem no final.

A única experiência que tive com Olavo de Carvalho foi um trecho de seu livro “O imbecil coletivo”. Nele, Olavo diz que não tenho competência nem para ser sargento do Exército de Uganda ou do Zimbábue, não me lembro.

Foi há muito tempo. Minha reação foi esperar que o Exército de Uganda, ou o do Zimbábue, protestasse. Como não disseram nada, também fiquei na minha.

Todo esse vespeiro no governo Bolsonaro é também resultado da fragilidade da oposição. Mas, observando as consequências, percebo que o Congresso vai preenchendo o vazio de poder não para oferecer uma alternativa mais sensata à sociedade, mas para garantir um retrocesso no aparato de controle da corrupção. Um dos pilares da Lava-Jato é a integração das instituições. O Congresso quer impedir que a Receita Federal e o Ministério Público compartilhem informações. Numa comissão da Câmara, tiraram o Coaf das mãos de Moro, um outro desmanche dos pressupostos da Operação Lava-Jato.

E não é só o Parlamento. O STF sente-se mais tranquilo para blindar os deputados estaduais, que só podem ser presos com autorização das Assembleias. Algo que sabemos muito improvável.

Outro passo: autorizar anistia para crimes de colarinho branco, validando o decreto de Temer.

Bolsonaro se apresentou com a bandeira anticorrupção. No entanto, no mundo real, há vários indícios de retrocesso. Não houve competência nem para evitá-los, quanto mais avançar numa agenda que interessou a milhões de eleitores.

Os tropeços de Bolsonaro e dos seus ardentes defensores abrem um espaço de poder, até agora percorrido pelo Congresso com seus objetivos claros.

Enquanto isso, ele se diverte dando tiros de retórica. Ele prometeu que vai fazer de Angra dos Reis uma Cancún brasileira. São ideias de quem está no mar e pisou pouco em terra firme, nos morros e favelas de Angra.

Esta semana, houve tiroteio, dias depois da passagem do governador Wilson Witzel. Ele foi a Angra num helicóptero e disse: “Vou acabar com a bandidagem.” Deu uns tiros, inclusive em tendas de oração, felizmente desertas, hospedou-se num hotel de luxo e voltou para o Rio.

Outra fixação de Bolsonaro é acabar com a Estação Ecológica de Tamoios, próxima ao lugar onde foi multado por pesca. Estação ecológica é de acesso limitado aos cientistas porque é uma permanente fonte de pesquisa.

No passado, critiquei publicamente o senador Ney Suassuna, que comprou um barraco de um posseiro dentro da Estação de Tamoios e nela queria construir sua mansão. Uma década depois, a ideia do senador acaba se impondo sobre a minha. Cancún implica construir muitas mansões e hotéis, e mandar para o espaço nossa riqueza biológica concentrada ali naquela unidade de conservação.

A política de meio ambiente de Bolsonaro parte da negação do aquecimento global, e em todas as áreas ambientais tem dado sinais negativos. O consolo é que há mais gente lutando para proteger seu território. No entanto, certos danos podem ser irreversíveis. O licenciamento de agrotóxicos é o mais liberal da história, num momento em que o mundo se preocupa não apenas com a saúde humana, mas também com o desaparecimento das abelhas, dos insetos e das borboletas.

O processo vai ser acentuado também no Brasil. E, sem abelhas, como é que vão polinizar nossas plantas? Dando tiros de espingarda? Se apenas brigassem entre si, os bolsonaristas provocariam menos danos que a briga permanente do governo contra a natureza.

Governos passados nos levaram a esperança e alguns bilhões de dólares. Bolsonaro ameaça levar pedaços vivos do Brasil.”