“A política
brasileira entre dois passados
POR BOLÍVAR
LAMOUNIER
Em 1958, quando
publicou Os Donos do Poder (Editora Globo), mestre Raymundo Faoro introduziu o
conceito de patrimonialismo, estabelecendo por meio dele a mais clássica das
clássicas interpretações da História brasileira.
Mas,
parafraseando Ortega y Gasset, podemos dizer que toda grande obra é ela mesma e
sua circunstância. Nós, leitores preguiçosos, lemos o título e deixamos de lado
o subtítulo do livro. Neste – Formação do Patronato Político Brasileiro – Faoro
esclareceu melhor o sentido de seu trabalho. O Estado patrimonialista deitava
raízes na era medieval portuguesa, mas Faoro quis manter a dignidade do
substantivo formação. Nós, imbuídos da ideologia desenvolvimentista que à época
emergia com todo o vigor, não quisemos perceber o paradoxo que o grande
historiador gaúcho ali deixara, de caso pensado. Otimistas, só queríamos pensar
no futuro e acreditávamos piamente que a industrialização liquidaria todos os
resquícios do passado colonial. Portanto, o próprio patrimonialismo haveria de
fenecer naturalmente. Morreria de morte morrida logo que as chaminés das
fábricas de São Paulo enchessem o céu com sua espessa fumaça. Não nos passou
pela cabeça que o Estado patrimonialista era uma estrutura poderosa, capaz de
resistir a pressões contrárias à sua índole.
De nossa
incapacidade de perceber a resiliência do patrimonialismo decorreram vários
equívocos, o mais óbvio dos quais é que ele simplesmente se recusou a morrer.
Está aí, perceptível a olho nu, agigantado e cada vez mais forte. Seu hábitat
natural é, obviamente, Brasília, onde, sem dificuldade alguma, seus tentáculos
sufocam e interligam os três Poderes. Estado patrimonialista, uma estrutura que
vive em função de si mesma, que persegue os objetivos que ela mesmo escolhe, e
o faz distribuindo o grosso da riqueza e as melhores oportunidades de ganho entre
os “amigos do rei”. É certo que admite novatos, mas por cooptação, não como
protagonistas autônomos, como bem explicou Simon Schwartzman no também clássico
Bases do Autoritarismo Brasileiro (Editora da Unicamp).
Do equívoco que
acima enunciei no atacado, penso que três outros merecem ser abordados no
varejo: somos um país sem elites autônomas, sem classe média e sem partidos
políticos.
Teríamos elites
autônomas se as tivéssemos fora do Estado, capazes de balizar as ações do
núcleo estatal, impelindo-o a levar mais em conta o que, para abreviar,
chamarei de bem comum. Os poderosos “de dentro do Estado” obviamente não são
elites no sentido que acabo de definir; são o próprio Estado, os amigos do rei,
vale dizer, de si mesmos. Os que não se deixam balizar por nenhum poder
externo, pois detêm em caráter privativo a função de balizar a sociedade, de
fixar e aplicar as normas, com a parcialidade que lhes parece adequada em
relação a qualquer assunto e a cada conjuntura.
Do ponto de
vista histórico, como aconteceu isso? Ora, sabemos todos que a grande atividade
econômica do Brasil colonial era a lavoura canavieira. O consórcio colonial
luso-brasileiro deteve o monopólio mundial do produto até meados do século 17.
Começou a perdê-lo com a invasão holandesa, iniciada em 1624. Expulsos, entre
1654 e 1661, os holandeses pegaram seus volumosos capitais, a técnica dos
engenhos e o respaldo da Holanda, então a rainha dos mares, e foram para a
América Central, de onde, num abrir e fechar de olhos, destruíram a hegemonia luso-brasileira.
Rápida no gatilho, a camada dominante da lavoura açucareira percebeu que dali
em diante sua sobrevivência dependeria mais da política que da economia. E
pulou para dentro do Estado, onde até hoje se encontra.
Algo semelhante,
mas em menor escala, ocorreu com a extração do ouro e dos diamantes em Minas
Gerais, mas o caso verdadeiramente instrutivo é o da cafeicultura paulista.
Tendo viabilizado a passagem do trabalho escravo ao assalariado, ela também
deteve por algum tempo um quase monopólio do mercado mundial do produto. Não
menos importante, como esclareceu Celso Furtado, ela permitiu o surgimento de
uma elite muito mais qualificada, capaz de pensar grande e de operar com
tirocínio no mercado internacional. Mas a História se repetiu, embora por
outros caminhos. A superprodução e a competição internacional não tardaram a
aparecer e a brilhante elite cafeicultora o que fez? Reuniu-se em Taubaté, em
1906, e pleiteou também seu lugarzinho no colo do Estado. Nos primórdios da
industrialização, a elite nem precisou pleitear nada, pois já nasceu
aconchegada na estrutura corporativista montada por Getúlio Vargas,
encaixando-se no sindicalismo de empregadores.
Demonstrar que
tampouco dispomos de uma classe média capaz de sobreviver com os rendimentos da
pequena empresa ou de empregos de boa qualidade é uma tarefa bem mais simples.
Poucos anos atrás trombeteamos muito o surgimento de uma “nova classe média”,
não nos dando conta de que toda série numérica pode ser subdividida em quantas
subséries quisermos, e uma delas será “média”. Uma pena que os limites mínimo e
máximo de tal subsérie eram constrangedoramente baixos. Nada que ver com uma
classe média numerosa, robusta e autônoma, e é por isso, evidentemente, que
temos uma das piores distribuições de renda do mundo: nossa “classe média” é um
conjunto vazio entre a pífia minoria que maneja o Estado patrimonialista e a
massa de miseráveis à qual tal Estado nem uma escolarização decente
proporciona.
E os partidos
políticos? Ora, um partido político digno de tal designação tem como requisito
fundamental a capacidade de se superpor a interesses demasiado estreitos,
balizando-os no sentido do bem comum. Os nossos são incapazes de fazer isso
porque no fundo eles não passam disto: são meros grupos de interesse,
protagonistas do corporativismo desatinado a que nosso país chegou.”
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