“Afinal, para o
que servimos?
Por Leandro
Karnal
Tenho a tentação
de explicar para o que eu sirvo. A pergunta é complexa. Comecei a trabalhar aos
16 anos com carteira assinada. Desde a primeira formatura, em História,
aumentei minha carga horária sucessivamente. Dei aula em instituições públicas
e privadas e colaborei na educação de milhares de alunos. Há muitos anos formo
professores e pesquisadores na Unicamp e escrevo livros. Tenho escrito muitos
artigos, orientado pessoas, dado entrevistas, palestras, colaborado com
trabalho voluntário em instituições e outras questões menores. Volto à questão:
para que eu serviria?
O governo
federal fala em investir em áreas mais úteis para a sociedade. Oscar Wilde
achava que o Estado deve fazer o que é útil e o indivíduo, o que é belo. É um
terreno pantanoso. Vamos imaginar que útil seja aquilo que produza um bem
concreto e objetivo. Nesse caso, o marceneiro é muito útil. O padeiro é um
monumento à utilidade. Um agricultor e um operário são indispensáveis.
Precisaríamos de filósofos? Seriam necessários políticos? O mundo não
sobreviveria sem militares?
Voltemos ao
campo da definição. Se as faculdades de Filosofia pararem por um mês, poucos
notarão. Talvez o trânsito melhore, inclusive. Dez minutos de paralisação do
metrô causam um caos que Sócrates algum poderia supor. O Brasil não dispara
tiros contra um inimigo externo desde 1945. Seriam úteis as Forças Armadas? Se
o ministro da Educação passasse para outra dimensão e os mecanismos de
transferências de recursos estivessem no automático dos computadores, alguém
deixaria de existir? Afinal, para que poderia servir um filósofo, um ministro
ou um militar?
Como eu
indiquei, produtores de bens materiais de primeira linha, como pães, nunca
foram classificados como parasitas ou inúteis. Serviços estratégicos, como
metrô ou motoristas de caminhão, têm imenso poder de fogo. E os bens
imateriais? Os serviços que não apresentam algo muito concreto, com padres
rezando missas ou pastores celebrando cultos? De novo, o mundo pararia sem
rabinos, padres ou pastores? Se as zelosas freiras contemplativas de um
convento acompanhassem o doutor Weintraub para espaço distante da nossa visão,
como amanheceria o mundo? Para religiosos, a falta dos ministros de Deus seria
um desastre. Porém, e para o mundo do pão e do metrô? Fariam falta?
Imagine que o
Brasil amanheceu sem poetas, sem filósofos, sem críticos de arte, sem ministros,
sem palestrantes, sem decoradores, sem maquiadores de defuntos, sem capitães ou
sem pastores: que falta todos fariam? Para uma ilha deserta, você preferiria
qual profissão para salvar? O mundo vai acabar, selecione entre um ministro da
Educação e um agricultor, entre um médico e um capitão reformado. O que você
escolheria?
Quando eu era
criança, no meu livro do primário havia imagens de animais “úteis e nocivos”.
As vacas eram úteis, bem como as abelhas. Os mosquitos eram nocivos, claro. No
meio desse antropocentrismo especista, havia pouco questionamento sobre o
critério da utilidade. No livro didático dos camaleões, por exemplo, mosquitos
seriam muito úteis e humanos, muito nocivos. A ética camaleônica, insetívora,
apoiaria exterminar humanos e preservar o Aedes aegypti.
É preciso
reconhecer que o conceito de utilidade é um pouco mais elástico do que aquele
centrado no produto material. Os caminhoneiros são essenciais no Brasil. Eles
existem porque houve a invenção do motor a explosão e o surgimento de
cientistas que transformaram petróleo em combustível, muitos ligados à área de
pesquisa da universidade. As áreas de pesquisa cresceram quando filósofos como
Descartes criaram métodos racionais para pensar problemas específicos e paradigmas
físicos foram tratados por pensadores como Newton. O cientista inglês, aliás,
era também astrólogo nas horas vagas, vejam que coisa curiosa. O diálogo entre
o método científico, a universidade, os pesquisadores, os cientistas oficiais e
avulsos e os inventores privados deu origem ao mundo complexo que possibilita
ao caminhoneiro existir.
Compreender esse
mundo inclui saber que certas éticas religiosas do trabalho devem ter
colaborado para o progresso do capitalismo como previa o sociólogo Weber. Fundamental
supor que elementos religiosos, filosóficos, científicos e demandas de mercado
foram se tornando elos de uma corrente que possibilitava Pascal ser um grande
filósofo, renomado teólogo e inventor de teorias matemáticas usadas até hoje.
Aliás, ele também deduziu uma máquina de calcular muito engenhosa. O
conhecimento de um Leonardo da Vinci ou de um Pascal nunca pensou em utilidade,
porém no sentido socrático de que todo conhecimento que nos torna melhores é
útil. A realidade é mais complexa do que o tijolo feito pelo oleiro para um
muro. Ainda que o olho simples e comum só veja o tijolo (algo útil), a
concepção artesanal ou arquitetônica vai dialogar com sujeitos invisíveis além
do que tocamos.
O tema é vasto e
contém muitas bibliotecas de apoio para argumentos. Fiquemos apenas em um
questionamento: quando começamos a falar sobre o que é útil ou inútil, devemos
ter cuidado. Pela dialética clássica, podemos despertar a mesma pergunta para
nosso campo e alguém pode devolver a pergunta a quem a faz: você é útil ou inútil?
Além dessas categorias, existe uma pior: você faria alguma falta? É preciso ter
esperança.”
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