“Sobre chantagem
e amores bandidos
POR FERNÃO LARA
MESQUITA
Democracia é a
resposta natural que toda comunidade de iguais tende a dar aos seus problemas
comuns. São muito raros na História, entretanto, os “povos sem rei”. Com
exceção da Suíça, que nunca teve um e criou em 1291 o modelo que viria a ser o
de soberania absoluta do eleitor que hoje todo o mundo que funciona copia, essa
situação só se configurou pelo isolamento em territórios distantes de súditos
de monarquias europeias, como os que vieram colonizar as Américas. “Como
sobreviver? Quem vai cuidar de construir os abrigos e fortificações? De caçar e
plantar o que comer? Quem se dedicará à defesa? Quem ditará as leis? Quem se
encarregará de fazê-las cumprir?” Foi disso que trataram o Pacto do Mayflower e
os town meetings (assembleias em praça pública) das primeiras colônias de
Massachusetts. Foi para isso que evoluiu na prática, mais de cem anos antes, o
modelo das Câmaras Municipais do império português, onde durante séculos
comunidades isoladas nas vilas dos sertões votaram e foram votadas, em pacífica
e regularíssima sucessão, para organizar os meios de prover por si mesmas todas
as suas necessidades.
Desde 1808,
porém, um filtro de seleção negativa instalou-se no Rio de Janeiro. E cumpriu
darwinianamente o seu papel. Não era mais do feito d’armas nem da ousadia
empreendedora ou do financiamento privado de Bandeiras que se poderia subir na
vida. Surgira um meio mais fácil. E de lá a velha doença europeia veio
arrancando o Brasil à sua americanidade. Sai Reinado entra Império, sai Império
entra República, nunca a corrupção pelo privilégio foi tão extensamente
socializada. Impossível prosperar sem se compor com o Sistema. Quem não se
deixou contaminar já morreu, se não física, com certeza econômica e
politicamente. Afundou no lúmpen. Está reduzido a cuidar de sobreviver até
amanhã ao tiroteio...
Hoje os laços de
família, e não a ideologia, é que são o maior obstáculo à mudança. Está
invertida a lei antinepotismo. Nenhum brasileiro com voz ou algum grau de
acesso aos centros de decisão deixa de ter pelo menos “cônjuge, companheiro ou
parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau,
inclusive (...) investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, (...)
no exercício de cargo em comissão ou de confiança, ou, ainda, de função
gratificada na Administração Pública direta e indireta, em qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios”, ou de deter, ele
mesmo, um privilegiozinho corporativo menor que não está disposto a perder. E a
conta da Previdência é onde tudo isso deságua, no ponto mais alto das
remunerações por “direitos adquiridos” mediante aquele toque mágico que
transporta instantaneamente pobres mortais das incertezas deste vale de
lágrimas para a segurança da “estabilidade vitalícia no emprego”.
No contexto do
isolamento perfeito entre o País Real e o Oficial que atingimos em função do
monopólio até da prerrogativa de pedir votos ao povo reservado aos membros
dessa privilegiatura, o desafio que se apresenta ao solitário agente que os
governos importam do País Real para lidar com a economia dos desprivilegiados
que eles nunca viveram não é apenas o de convencer o povo do ponto de vista do
presidente e seu governo, mas antes o de convencer o presidente e seu governo a
firmarem um ponto de vista diverso daquele que formaram como agentes da
privilegiatura alienada que foram até ontem. Só então, e na medida do sucesso
sempre relativo dessa primeira operação, poderão partir para a tentativa de
convencer os caronas e os caronas dos caronas do Estado aqui fora de que não
haverá escapatória ao amargo fim se transferirem o tratamento do problema para
onde ele não está.
A minoria com
superprivilégios – a dos donos do Estado e seus funcionários – é de meros 0,5%
da população. E a minoria com hiperprivilégios é uma fração dentro dessa
fração. Só a cumplicidade da maioria pode, portanto, explicar a resiliência dos
privilégios de parcela tão ínfima do eleitorado num país que em algum momento
ainda vota.
Dois fatores
elucidam esse falso mistério. O primeiro é a falta de enraizamento do País
Oficial no País Real que enseja esse nosso sistema eleitoral, que não permite
identificação entre representados e representantes uma vez eleitos. A bordo de
um partido bem aquinhoado de dinheiro “público” de campanha eles não precisam
mais dos eleitores nem para se reeleger. Podem dedicar-se exclusivamente ao
único jogo de soma zero, que é o do poder, no qual o Brasil é meio, e não fim.
Daí o espantoso na afirmação do solerte Paulinho da Força de que para derrotar
Bolsonaro convém manter os 210 milhões de brasileiros semiafogados mais alguns
anos debaixo d’água ser apenas a sinceridade com que foi feita, e não o
significado do que foi dito, como este jornal lembrou em editorial.
Mas o segundo
fator é que é o mais insidioso. Agora mesmo, no Olimpo do Judiciário, está
sendo armada a cama para Rogério Marinho, o articulador da reforma. O
formidável poder de chantagem e intimidação que essa minoria dentro da minoria
privilegiada detém pelo controle do gatilho do acionamento (ou não) da lei é o
que tem decidido as paradas. A corrupção, inerente à condição humana, é
eventual. Mas a corrupção institucionalizada, aquela que nos rouba com a lei, e
não contra a lei, essa é sistemática e transfere todo santo dia montanhas de
dinheiro das favelas para os palácios, que, no entanto, podem continuar posando
de virtuosos, o que a faz triplamente subversiva.
Para que
possamos sair desta nossa Idade das Trevas, o Brasil inteiro terá de rever o
seu amor bandido pelo pequeno privilégio. Mas o Brasil “indignado”, em
especial, este terá de reconsiderar fria e racionalmente quanto do “pega
ladrão” em que se deixa a toda hora embarcar é gritado para fazer ou para
impedir que se faça justiça, ou o sol jamais voltará a brilhar.”
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