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quarta-feira, 31 de julho de 2019

A face oculta de Bolsonaro





“A face oculta de Bolsonaro
      
Por José Nêumanne

Nos 200 dias de governo do capitão reformado e deputado federal aposentado, além do Bolsonaro óbvio das declarações sobre o Nordeste reduzido a “paraíba” e da insistência descabida em fazer o filho caçula embaixador em Washington, há outro, cuidadosamente escondido para evitar perdas. Por falta de espaço nesta página e excesso de exposição de seu acervo de frases infelizes, convém tentar lançar uma luz sobre o que ele, subordinados, prosélitos e fanáticos não conseguem mais esconder de sua face oculta.

Aos 23 dias iniciais do mandato, Bolsonaro disse a um repórter da agência Bloomberg em Davos, na Suíça: “Se, por acaso, ele (o filho Flávio) errou e isso ficar provado, eu lamento como pai, mas ele vai ter que pagar o preço por essas ações que não podemos aceitar”. De volta ao Brasil, contudo, tirou a máscara de “isentão” (definição preferida de outro filho, Carlos, para desqualificar quem ouse discordar após concordar com algo) para fazer exatamente o contrário. Após decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, proibindo o compartilhamento de dados da Receita Federal, do Banco Central e do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), com Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal (PF), ele até tentou escapulir de comentar, argumentando: “Somos Poderes harmônicos independentes. Te respondi? Ele é presidente do STF. Somos independentes, você acha justo o Dias Toffoli criticar um decreto meu? Ou um projeto aprovado e sancionado? Se eu não quisesse combater a corrupção, não teria aceitado o Moro como ministro”. Mas terminou deslizando em truísmos e platitudes, ao afirmar: “Pelo que eu sei, pelo o (sic) que está na lei, dados repassados, dependendo para quê, devem ter decisão judicial. E o que é mais grave na legislação. Os dados, uma vez publicizados (sic), contaminam o processo”. O quê?

O feroz cobrador das falhas do PT não explicou por que o caçula interrompeu o inquérito, em vez de provar inocência.

A revista Crusoé, do site O Antagonista, revelou que clientes da banca da mulher de Toffoli, Roberta Rangel, do qual este foi sócio, foram procurados pela Receita para explicar depósitos. Dias antes um colega por quem o presidente do STF tem manifestado apreço (e vice-versa), Gilmar Mendes, comparara o MPF e a PF à Gestapo, polícia política nazista, após averiguações sobre a contabilidade da banca de Sérgio Bermudes, de quem sua mulher, Guiomar, é sócia. Essa descoberta pode lançar um véu de suspeição sobre a decisão de Toffoli de suspender todos os inquéritos (segundo consta, 6 mil) de lavagem de dinheiro no País. Mas não altera a origem da decisão, tomada a partir da defesa de Flávio Bolsonaro.

Pode ser mera coincidência, até prova em contrário, mas o fato é que recentemente, a pretexto de reclamar de uma decisão do STF criminalizando a homofobia, o presidente, do alto de sua prerrogativa de indicar os membros do colegiado, queixou-se de não haver ali um ministro “terrivelmente evangélico”. Na segunda vez o fez saudando um dos ministros numa reunião com vários membros de titulares na Esplanada dos Ministérios, o advogado-geral da União, André Mendonça. Na última vez em que apelou para a expressão, originalmente usada pela ministra da Família, Damares Alves – uma impropriedade, pois “terrível” é definido no Houaiss como algo “que infunde ou causa terror” –, em 11 de julho, disse que ele é cotado para preencher essa lacuna, 16 meses antes da prevista aposentadoria do decano, Celso de Mello. Não seria o caso de indagar se é hora de tratar do assunto antes de ser aprovada a reforma da Previdência, tida e havida como a primeira providência a ser tomada para destravar a economia e reduzir as mais relevantes taxas de desemprego?

Aos 46 anos, há 19 na Advocacia-Geral da União (AGU), Mendonça está longe de ser popular como Moro e Bretas.

De Mendonça só se sabe que dirigiu o Departamento de Patrimônio Público e Probidade Administrativa da AGU, indicado pelo presidente do STF, antes de migrar para a Controladoria-Geral da União, no governo Temer (!), representando a AGU em acordos de leniência com empresas acusadas de corrupção. Dali foi promovido a advogado-geral por Bolsonaro, que o anunciou em novembro. Segundo fontes ouvidas pelo UOL, o presidente do STF já trabalha pela aprovação dele na sabatina do Senado, caso seja indicado para o STF.

Sua conexão com o PT, do qual o ex-advogado-geral foi subordinado em toda a carreira, é revelada em artigo publicado na Folha de Londrina de 30 de outubro de 2002, resgatado pela repórter Constança Rezende, do UOL. No texto Mendonça não cita o nome de Lula, mas afirma, três dias após a vitória do petista, que o triunfo “enchia os corações do povo de esperanças”. Além disso, escreveu à época que as urnas haviam revelado “o primeiro presidente eleito do povo e pelo povo”. “O fato é notório e não admite discussões e assim o coração do povo se enche de esperança, o mundo nos assiste com um misto de surpresa e admiração, embora alguns confiem desconfiando, mas certamente convictos que o Brasil cresceu e seu povo amadureceu, restando consolidada a democracia não só porque o novo presidente foi eleito pelo povo, mas porque saiu do próprio povo”. Criacionista, ele diz respeitar quem não é, mas no texto revela dogmas sobre os quais “não admite discussões”. Tolerante até a página 2.

Pode-se dizer que o também pastor presbiteriano nunca foi ingrato. Mesmo já estando sob ordens de Bolsonaro, foi o único chefe de uma instituição importante relacionada ao Direito a assinar parecer defendendo o decreto do padrinho para impedir críticas a seus pares (além de censurar a Crusoé) e a compra por este de lagostas e vinhos premiados para os banquetes da casa. Só em 16 meses o Brasil saberá se, de fato, a espécie não evoluiu e se Darwin, afinal, tinha ou não razão.”

terça-feira, 30 de julho de 2019

Inflacionistas





“Inflacionistas
      
Por Pedro Fernando Nery

Há no Facebook uma bem-humorada página de economia, em que usuários reúnem diversas soluções mágicas propostas para a política econômica. Normalmente elas ignoram a presença de restrições, especialmente de recursos públicos, e boa parte é análoga à simples impressão de dinheiro. O irônico movimento defendido pela página, e que a batiza, é o dos “Inflacionistas”. No debate da Previdência, o “inflacionismo” também está presente: é o impressionante argumento de que a reforma é ruim para a economia porque some com R$ 1 trilhão de circulação.

Paulo Guedes conseguiu pautar a reforma da Previdência em termos que não faziam parte dela, ancorando a avaliação da reforma na sua capacidade de “poupar” R$ 1 trilhão em dez anos. Por isso, falamos tanto nos últimos meses em economizar R$ 1 trilhão. Essa foi uma simplificação boa para o debate, mas que esconde uma realidade clara: não se economiza o que não se tem.

Sem a reforma, o déficit previdenciário continuaria crescendo rapidamente, elevando a carga tributária e o endividamento da União, que chegaria em poucos anos a 100% do Produto Interno Bruto (PIB). A reforma do R$ 1 trilhão atenua o crescimento dessa trajetória. Significa R$ 1 trilhão a menos em relação ao cenário sem reforma: daí a se falar em R$ 1 trilhão de economia. O que não significa: que o governo ficará com R$ 1 trilhão sobrando ou ainda que R$ 1 trilhão vai sumir da economia.

Este seria o argumento sarcástico típico dos Inflacionistas, orgulhosos do passado glorioso de desastres como calotes e hiperinflações, sempre alarmados com a agenda de reformas neoliberais. Mas o argumento de que R$ 1 trilhão vai sair da economia foi levado a sério nas últimas semanas: do editorial de um grande jornal à coluna de um dos principais presidenciáveis de 2018, passando por um “estudo” de uma importante universidade federal.

A lógica inflacionista é expressada por chavões como “fazer a roda da economia girar”; “reativar” ou “aquecer” a economia. O papel central aqui é do consumo: com menos pessoas aposentadas e recebendo aposentadorias menores, ele colapsaria e derrubaria a economia pelo seu papel multiplicador. A reforma seria recessiva.

O inflacionismo é fundado na análise benefício-benefício, substituta da análise custo-benefício por não ter a desvantagem de ter um lado negativo. Se o governo não tem o R$ 1 trilhão sobrando e se o consumo move a economia, ele não deveria ser prejudicado pelo trilhão de impostos que os consumidores vão pagar, inclusive e, principalmente, no consumo? Ou só o aposentado consome? E o consumidor desempregado pelos juros altos e incerteza provocados pela alta da dívida?

Agora suponha que o governo tivesse todo esse dinheiro, não precisando emitir dívida, criar impostos ou imprimir dinheiro para se financiar. O R$ 1 trilhão de impacto da reforma ainda não sumiria da economia. Ele poderia, por exemplo, ser usado em outras despesas: das ruins, como aumentos para o funcionalismo, às boas, como investimento em infraestrutura ou políticas sociais mais voltadas aos mais pobres. No jargão, em gastos com multiplicador ainda maior.

Não sendo assim, os defensores do argumento da reforma recessiva não deveriam se conter em opô-la, mas deveriam promover manifestações por uma contrarreforma. Por que não aposentadoria aos 40 anos de idade para todos, com 5 anos de contribuição? E aumentar o valor de todos os benefícios? Não teríamos uma massa de consumidores fazendo a tal roda girar? O multiplicador do consumo não iria fazer a economia crescer a taxas chinesas?

Ocorre que, fundamentalmente, a Previdência não cria dinheiro. Seus trilhões dos próximos anos não surgem no INSS: resultam de um grande esforço contributivo das famílias, diretamente pela contribuição sobre a folha ou indiretamente pelas contribuições sociais e impostos. E competem com outras despesas que podem receber esse dinheiro.

Mas é da lógica fácil da criação de dinheiro por vontade, da ausência de escassez e da indiferença com o contribuinte que sobrevive o inflacionismo. Ele é primo da lacroeconomia, que prefere aplausos e curtidas à lógica. O inflacionismo permite dizer sim para qualquer grupo, porque nunca há custo a ser observado. Mas ele existe e recai de forma difusa sobre o conjunto de cidadãos. No caso limite e literal da inflação, vai pesar mais sobre os mais pobres sem aplicativo do banco enquanto desorganiza a economia e impede o investimento.

O leitor que não se convenceu pode ficar tranquilo. O R$ 1 trilhão “economizado” com a reforma é cerca de 10% do gasto previdenciário federal nos próximos dez anos. Sobrarão R$ 9 trilhões!”

segunda-feira, 29 de julho de 2019

Buraco Negro





“Buraco Negro
      
Por Ana Carla Abrão

O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) foi instituído pela Lei 9.613, de março de 1998. Além de criar o Coaf, a lei dispõe sobre “os crimes de ‘lavagem’ ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nessa lei e dá outras providências”, reforçando um conjunto de avanços econômicos e institucionais que aconteceram na segunda metade dos anos 90, durante o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Além disso, o Coaf surge também com o objetivo de acompanhar importantes movimentos internacionais, complementando um conjunto de medidas que visavam ao fortalecimento do ambiente institucional brasileiro, com ênfase em temas cujas implicações iam além das nossas fronteiras e exigiam cooperação e integração com órgãos similares em outros países.

As competências do Coaf ficaram claras na lei, abrangendo o recebimento, exame e identificação das ocorrências suspeitas de atividades ilícitas com o objetivo de disciplinar e aplicar penas administrativas. Cabe ainda ao conselho coordenar e propor mecanismos de cooperação e de troca de informações que viabilizem ações rápidas e eficientes no combate à ocultação ou dissimulação de bens, direitos e valores e, não menos importante, quando concluir pela existência de crimes previstos na lei, de fundados indícios de sua prática, ou de qualquer outro ilícito, comunicar às autoridades competentes para que façam a instauração dos procedimentos cabíveis.

Mas o Coaf não atua sozinho. Juntamente com a sua criação, a Lei 9.613 estabeleceu exigências e diretrizes que deram origem a uma complexa e importante estrutura de monitoramento e controles internos por parte das diversas instituições financeiras.

São essas estruturas, hoje incorporadas nos processos de conduta de bancos e corretoras, a exigência de conformidade com a lei e com os critérios definidos pelo Coaf e a consequente atuação do conselho na consolidação e processamento dessas informações, que hoje permitem que transações que até pouco tempo eram feitas na obscuridade, sejam passíveis de investigações que, não raro, levam à identificação de ações criminosas. É toda uma cadeia de informações e processos, criada em torno dessa estrutura e que merece ser valorizada, melhorada e fortalecida. Não o contrário.

O primeiro ataque ao Coaf veio do Congresso Nacional, que rejeitou a proposta do governo de transferir o conselho para o Ministério da Justiça. Sob o argumento nada velado de não deixar nas mãos do ministro Sergio Moro esse importante instrumento de combate à lavagem de dinheiro, a maioria dos nossos parlamentares preferiu mantê-lo no Ministério da Economia – como se ali o órgão não fosse ter o tratamento e a prioridade necessárias para continuar a exercer o seu papel. Mas o golpe mais forte veio com a decisão do ministro Dias Toffoli de suspender todas as investigações que fossem baseadas em dados repassados pelo Coaf sem autorização judicial.

A decisão do presidente do STF, mesmo que amparada em interpretações de leis não necessariamente sensíveis aos anseios da sociedade, tem como resultado uma insegurança institucional inédita nos 20 anos de existência do conselho. Relativizando, equivale a jogar o Coaf num Buraco Negro, aquela região do espaço da qual uma vez lá dentro, nem mesmo partículas que se movem à velocidade da luz conseguem sair. É esse o tratamento que as informações do Coaf podem vir a ter se não se corrigir essa decisão e se condicionar o uso das informações a uma decisão judicial.

Há que se lembrar que o nosso passado recente muito se beneficiou e que nosso futuro como nação desenvolvida, integrada, íntegra e ética, depende da continuidade dos avanços no combate à corrupção, à lavagem de dinheiro e ao financiamento ao terrorismo. E isso só se faz com acesso a informação, capacidade de processar essas informações e produção de inteligência financeira. Esse é o papel do Coaf, que merece ser fortalecido para que possa cumprir sua missão de promover a proteção da nossa economia e a prevenção e o combate ao crime.

Jogar as informações do Coaf no Buraco Negro significa fazer deixar de existir crimes que precisam ser combatidos – e não esquecidos.”

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Nossas instituições e sua circunstância





“Nossas instituições e sua circunstância
      
Por Fernão Lara Mesquita

No primeiro debate entre os 20 concorrentes à indicação para candidato a presidente pelo Partido Democrata, nos EUA, o principal “argumento de venda” foi apresentar-se como quem conseguiu o maior numero de contribuições abaixo de US$ 200 e recusou mais doações milionárias. Está aí um exemplo de como a boa regra induz o bom comportamento. Naquele país, a única que existe para financiamento de campanhas é que os concorrentes estão obrigados a declarar cada contribuição recebida no prazo de cinco dias. Cabe ao eleitor avaliar se elas o comprometem ou não. Aqui, onde preferimos que o Estado fiscalize tudo, inclusive a si mesmo, a perspectiva mais palpável é que na próxima eleição nos seja arrancado mais que o dobro do que nos foi arrancado na última, que cada partido receba seu quinhão segundo o desempenho na eleição anterior, e não pelo que tiver feito de bom ou de ruim com o mandato recebido, e que jamais saibamos quem, dentro deles, ficou com quanto desse dinheiro.

As instituições, como as pessoas, são elas e sua circunstância. Não é à toa que a expressão que define a ordem institucional democrática é checks and balances, “freios e contrapesos”. Cada instituição só produz o efeito desejado quando referida a todas as outras. Tomadas isoladamente ou encaixadas num contexto pervertido, elas quase sempre produzem o efeito inverso do que se propõem.

No Estado Democrático de Direito “todo o poder emana do povo” e toda lei só se torna lei mediante o seu consentimento explícito. O primeiro direito que condiciona todos os outros é, portanto, o de o eleitor livrar-se na hora do representante que só age em prol de si mesmo. E para que isso seja possível é preciso, primeiro, que o sistema eleitoral permita saber exatamente quem é o representante de quem e que os representados, e não os representantes, tenham a prerrogativa exclusiva de acionar os instrumentos de força criados para constrangê-los a lhes serem fiéis. Inverter essa hierarquia é inverter toda a cadeia das lealdades. Nada é “consertável” no Brasil antes que consertemos isso.

São as circunstâncias reais, e não a teoria, que põem o corte de um lado ou do outro da lâmina de cada instituição. Afirmar como “óbvio” na ordem institucional brasileira, onde o Estado tem todas as prerrogativas e o cidadão nenhuma, o que é óbvio na ordem institucional americana, onde se dá exatamente o contrário, é manter o País no beco sem saída dos falsos silogismos em que andamos perdendo sangue, suor e lágrimas há 519 anos.

Assumir que a decisão monocrática do sr. Toffoli é desinteressada, nada tem que ver com Flávio Bolsonaro, nem tira da porta da cadeia e põe na da rua todos os criminosos com e sem mandato mais perigosos da República é tão falso quanto negar que o sigilo bancário (até dos agentes do Estado) é um direito que deve ser protegido em princípio... se todas as outras instituições estiverem estruturadas para manter o Estado nas mãos dos cidadãos, e não o contrário.

Se, por exemplo, os promotores públicos, aqui como lá, fossem eleitos pelo povo, e não nomeados pelos políticos que têm por função fiscalizar e contra cujos poderes têm obrigação de nos defender; se os juízes passassem por eleições periódicas de confirmação; se tivéssemos os direitos à retomada de mandatos e ao referendo do que vem dos Legislativos, é provável que não nos ocorresse considerar uma lei específica de abuso de autoridade. Mas sem a ancoragem de tudo à palavra final do eleitor e com todo cargo ou emprego público sacramentado como um “direito adquirido” inalienável, é certo que até a lei de abuso que vier será usada seletivamente, como todas as outras, na defesa de privilégios, contra qualquer tentativa de eliminá-los.

O trabalho jornalístico que não parte desta que é a nossa realidade, esta, sim, pra lá de óbvia, já começa falso. A justificativa do instituto do sigilo da fonte, por exemplo, é sacrificar a transparência da informação em nome do valor mais alto do aperfeiçoamento da democracia, a primeira e inegociável razão de existir da imprensa democrática. Mas publicar como se fosse produto de jornalismo investigativo os grampos e dossiês que as partes que disputam o poder livres de qualquer compromisso exigível pelos eleitores atiram umas contra as outras e manter anônima a fonte, quando não é um ato de cumplicidade, é um convite para o aparelhamento do jornalismo.

A virtude sempre precisou de incentivos. A boa regra para estes tempos em que o crime se especializou em usar em vez de fugir da imprensa e da lei seria a do full disclosure, ou “transparência absoluta”, nas redações. O jornalista que exige que servidores em atividade, como Deltan Dallagnol, sejam obrigados a relatar as palestras que fazem, indicando quem pagou por elas e quanto, além das atividades conflituosas de suas esposas e seus parentes próximos, não terá nenhuma dificuldade de entender a importância do full disclosure, não só das peças de “jornalismo de acesso” onde saber de onde vêm os tiros contribui muito mais para o aperfeiçoamento da democracia que o apedrejamento do alvo visado, mas até de contemplar a criação de uma versão doméstica da lei antinepotismo.

Não há conflito obrigatório no fato de jornalistas com cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade até o terceiro grau assalariados ou detentores de privilégios concedidos pelo Estado participarem da cobertura da guerra do Brasil plebeu contra a privilegiatura. Mas a obrigação de declará-lo sob o hiperlink de cada assinatura certamente os incentivaria a ser mais equilibrados no direcionamento das suas investigações, além de ter um efeito fulminante contra a instrumentalização anônima da arma da imprensa.

Os destinos do jornalismo e da democracia sempre estiveram amarrados. O choque de transparência, para além de distingui-lo definitivamente da luta pelo poder e da guerra suja da internet, teria para a qualidade do jornalismo e da democracia brasileiros um efeito restaurador.”

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Privilegiados, uni-vos!





“Privilegiados, uni-vos!
      
Por Denis Lerrer Rosenfield

A reforma da Previdência terminou, no campo da esquerda, por provocar desalinhamentos entre os seus membros, com deputados se demarcando da posição de seus respectivos partidos, sobretudo no PSB e no PDT, com PT, PSOL e PCdoB mantendo a fidelidade de seus parlamentares. Os primeiros mostraram uma salutar desavença interna, os últimos mantiveram-se firmes em suas origens leninistas, em suas várias vertentes.

Contudo, para além do problema partidário de ordem conjuntural, com ameaças de punições e expulsões, lideradas por chefões partidários fazendo o seu teatrinho, existe uma questão de monta, concernente ao que significa ser de esquerda. Ou seja, qual é o tipo de esquerda que se alinha com os privilegiados de funções públicas e abandona os que não usufruem os mesmos privilégios? Será que a mensagem da esquerda brasileira – e para além dela – é uma mensagem particularista, corporativa?

A mensagem da esquerda, em sua vertente marxista, era efetivamente universal. Estava voltada para a emancipação da classe trabalhadora, naquele então denominada proletária, e, por intermédio dela, da humanidade. A defesa dos proletários se faria por sua libertação das amarras do capitalismo, instituindo um tipo de sociedade cuja característica central seria a igualdade em todos os níveis, sem nenhum tipo de particularismo, nem de interesse particular.

Para o presente propósito, não cabe a discussão sobre a exequibilidade ou não dessa proposta, mas tão somente ressaltar sua universalidade, sem a qual ela se torna claramente ininteligível. A contraposição principal se estabelecia em relação aos burgueses, que deveriam ser eliminados ou, em sua versão mais branda, tornados iguais. Não se tratava, na posição marxista, de defender os interesses corporativos de funcionários públicos em detrimento dos outros trabalhadores.

Em linguagem corrente: não tem cabimento político, nem moral, que os trabalhadores comuns, com ganhos pequenos, financiem o regime dos funcionários públicos, mediante aposentadorias precoces, integralidade de seus vencimentos e paridade, entre outros benefícios. Seria a própria mensagem da esquerda que estaria sendo traída, em proveito de um punhado de privilegiados, que se arvoram, hipocritamente, em defensores dos “direitos sociais”, como se fossem os direitos de todos os trabalhadores.

Os deputados rebeldes têm, dentre outros méritos, o de terem resgatado uma mensagem de cunho universal, abandonando o corporativismo e o particularismo de seus respectivos partidos. Os que não se rebelaram ficaram atados à usurpação ideológica. Pensaram eles na sociedade como um todo, não no caráter restritivo da conjuntura partidária. Partido, em sua definição, defende uma parte, porém devendo integrá-la ao interesse coletivo, sem o qual cai nas armadilhas do corporativismo e do fisiologismo.

A pauta previdenciária é uma pauta da sociedade e do Estado, não apenas dos partidos políticos. Não se trata de ser a favor ou contra o governo, mas de ser ou não a favor da coletividade, do bem maior. O cálculo meramente partidário é particular, restrito às suas lideranças e a seus interesses. Não tem nenhuma dimensão social.

Do ponto de vista da esquerda em geral, a mensagem dos rebeldes foi de renovação, de sacudida das carcaças partidárias. Pensaram no todo, e não na parte; no coletivo, e não no particular. Apesar das incompreensões de seu gesto, estão proclamando por um reposicionamento da esquerda e de seus respectivos programas.

Democracias contemporâneas dependem de uma esquerda moderna e plural. Dependem de uma esquerda que pense os desafios do mundo atual, acompanhando as enormes mudanças políticas, econômicas, sociais, culturais, tecnológicas e científicas das últimas décadas, que transformaram a face da humanidade. Pense-se no conceito marxista e positivista de proletário, para melhor aquilatarmos a grande transformação. Perdeu seu significado, quanto mais não seja, porque o mundo mudou.

O que tinha a esquerda a propor na reforma da Previdência? Além do não dogmático, voltado para a defesa dos privilegiados e de suas corporações, tinha algo a dizer? Não poderia ter apresentado uma proposta mais universal do que aquela que, após laboriosas negociações, foi finalmente aprovada em primeira votação? Não teria sido o momento de a esquerda dizer não aos privilegiados e sim aos trabalhadores em geral?

Em vez disso, optou por abandonar os trabalhadores, refugiando-se numa suposta fidelidade partidária e doutrinária. Ora, é precisamente essa doutrina que está em questão. Ela não responde ao espírito do tempo, funciona como óculos às avessas, que só vêm para dentro, retirando-se do exterior.

O PT continua firme em suas posições esquerdizantes, à sua origem leninista, apesar de seu namoro com a social-democracia no primeiro governo Lula. O PCdoB e o PSOL seguem na mesma linha dogmática. O PSB tem também um programa partidário de cunho marxistizante, cuja leitura remete a uma peça de ficção política, própria de outro tempo. O PDT, originário do antigo PTB, por sua vez, é fruto de outra concepção, oriunda do trabalhismo inglês e, nesse sentido, já não segue a orientação leninista, algo próprio, então, dos comunistas ingleses. Historicamente, correspondem ambos os partidos a uma primeira versão da social-democracia no País, embora tampouco tenham seguido o caminho da modernização. Haveria aí uma proximidade com os tucanos, com a atual social-democracia brasileira, por terem fontes comuns.

Os debates da reforma da Previdência, extremamente pobres na perspectiva das esquerdas, mostraram os impasses de uma modernização necessária, mas claudicante e já atrasada. O seu dilema poderia ser assim traduzido: O “proletários de todo o mundo, uni-vos!” tornou-se “privilegiados, uni-vos!”. Triste destino!”

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Dúvidas e polêmicas





“Dúvidas e polêmicas

POR MERVAL PEREIRA

O ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), pretende conversar com seus colegas para ver as condições de antecipar o julgamento do compartilhamento de provas em investigação criminal, marcado para novembro.

A decisão que tomou, suspendendo todas as investigações que tenham sido feitas sem autorização judicial, está provocando polêmicas que precisam ser esclarecidas o mais cedo possível.

Um debate que haverá logo na reabertura do Judiciário, no fim do recesso, em agosto, é sobre os processos que estão suspensos. A tese dos advogados dos investigados é que esses processos não poderão ser retomados, mesmo com a autorização judicial, pois os dados já revelados invalidam as provas.

Por essa tese, o senador Flavio Bolsonaro, cuja investigação pelo Ministério Público Federal do Rio motivou o recurso que foi o estopim da decisão de Toffoli, ficaria livre da investigação.  Há outra linha de ação que diz que, como nos Estados Unidos, esses processos podem ser retomados, adequados às novas normas, se o Supremo aderir à tese de Toffoli de que os dados detalhados das movimentações só podem ser dados com autorização judicial.

Há ministros no Supremo, como Celso de Mello e Marco Aurélio de Mello, que consideram que nenhum dado, mesmo genérico, pode ser entregue pelo Coaf sem decisão judicial. Mesmo derrotado, Marco Aurélio disse que teme não ser constitucional a decisão do presidente do Supremo.

O STF tem diversas decisões, seja no plenário, seja nas Turmas, autorizando as investigações das operações atípicas detectadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), sem necessariamente passar pela autorização judicial.

O ministro Toffoli, que em 2016 votou a favor dessas investigações, salientou em seu voto que as informações deveriam ser fornecidas em números globais, e o detalhamento só poderia ser feito com decisão judicial.

A interpretação que vigora, no entanto, é mais ampla, como acontece nos Estados Unidos e Europa. O detalhamento das movimentações atípicas ajuda na investigação, e suprime uma etapa burocrática que pode retardar a ação da Polícia Federal ou do Ministério Público no combate ao narcotráfico e crimes de lavagem de dinheiro.

A agilidade nas investigações é o objetivo da autorização mais ampla, mas somente quando o Supremo julgar o assunto em definitivo é que haverá a chamada “repercussão geral”, isto é, uma decisão que serve de parâmetro para o Judiciário e para os órgãos de investigação.

A decisão monocrática de Toffoli, durante o recesso do Judiciário, foi tomada a pedido da defesa do hoje senador Flávio Bolsonaro, que alega que o Ministério Público do Rio quebrou seu sigilo bancário sem autorização judicial.

Desde que o plenário do STF aprovou, por 9 votos a 2, a autorização para que os órgãos de investigação recebessem dados considerados suspeitos, o Coaf tem enviado informações detalhadas dos gastos dos investigados sem autorização da Justiça, o que não significa tecnicamente quebra do sigilo bancário.

Mas há quem entenda no Judiciário, principalmente no STF, que há muito abuso nessas investigações, e a decisão de Toffoli é vista como “um freio de arrumação”.

 O entendimento do plenário, em 2016, foi que seria incoerente impedir que o Coaf envie os dados para investigação quando essa é sua função primordial, o órgão tem a obrigação legal de fazê-lo, e o servidor que não sinalizar uma movimentação atípica pode ser acusado de prevaricação.

Toffoli alega que existe uma legislação regulamentando esse procedimento que impede o envio de detalhamento dos gastos do investigado. Para ele, a solução é simples: o Coaf envia uma informação geral, e o órgão investigador pede permissão à Justiça para detalhá-la.

O STF precisa explicar o que acontece agora com as investigações em andamento. As novas investigações, a partir da decisão, serão feitas com base em relatório sucinto dos órgãos de fiscalização, que depois da permissão da Justiça serão detalhados.

Mas, e os processos anteriores, estão anulados? Será preciso que o plenário do STF julgue o mais rápido possível, dando uma decisão definitiva sobre essas investigações, para que o país não seja punido duplamente: pela inviabilização do combate aos crimes financeiros, e pela rejeição de órgãos internacionais, como a OCDE, que exigem legislação dura contra a lavagem de dinheiro internacional.”

terça-feira, 23 de julho de 2019

Responsabilidade compartilhada





“Responsabilidade compartilhada
      
Por Zeina Latif

A reforma da Previdência tem muitos méritos. O principal é estabelecer a idade mínima de aposentadoria para (quase) todos (servidores públicos estaduais e municipais não foram incluídos). Atualmente, apenas os mais humildes, que não conseguem comprovar o tempo mínimo de contribuição à Previdência, se aposentam por idade.

Não é possível dizer que foi a reforma “possível”, pois o governo evitou temas polêmicos, como igualar a idade de aposentadoria de mulheres e homens, e defendeu corporações.

Houve esforço para reduzir as diferenças entre o regime do setor privado e o regime próprio dos servidores da União. Elevou-se a idade mínima no caso geral, em linha com o setor privado (62 anos para mulheres e 65 anos para homens), mas com idade menor para professores (57/60) e policiais (55), e com regra de transição mais suave para quem ingressou no setor público antes de 2003 (idade mínima de 55/60 e a possibilidade de integralidade do valor da aposentadoria), grupo que representa significativos 45% do total de servidores.

A diferença entre as regras do setor público e do setor privado foi reduzida, mas não satisfatoriamente; e reconhecendo que a eliminação completa, sujeita a judicialização. Computando todos os ajustes feitos na proposta do governo, a Instituição Fiscal Independente (IFI) calcula que a desidratação no regime próprio da União é de 45%. No regime geral do setor privado foi menor, de 15%.

No entanto, a crítica que o presidente Bolsonaro falhou no combate à desigualdade precisa ser ponderada. É importante reconhecer que os mais pobres foram mais preservados, com o ajuste pesando mais sobre os mais privilegiados.

Vale lembrar que melhorar a distribuição de renda não foi pauta da campanha de Bolsonaro. Seu foco foram as classes mais favorecidas, que é, por sua vez, quem melhor aprova o governo e exibe aumento de aprovação desde o início do ano, segundo a pesquisa da XP.

A Câmara também procurou reduzir a desigualdade. Houve a preservação da vinculação dos benefícios ao salário mínimo, sendo retiradas as mudanças na aposentadoria rural e no Benefício de Prestação Continuada (BPC), ainda que ajustes fossem necessários em ambos. Afinal, segundo relatório do Banco Mundial, 76% dos beneficiários de aposentadoria rural e 70% do BPC pertencem ao grupo dos 60% mais ricos da população, isso já contabilizados os benefícios. Há provavelmente um problema de falta de focalização desses programas, pelo seu desenho, bem como por decisões judiciais e irregularidades, que é o foco da MP 871.

Quem decepcionou mesmo foi uma parcela da esquerda, justamente onde se espera maior sensibilidade social. Não por terem votado contra a reforma, pois isso faz parte do jogo democrático, mas por não defenderem a inclusão de Estados e municípios e por terem feito propostas para suavizar regras de grupos mais favorecidos.

Para citar alguns, o PSOL apresentou destaque para suprimir as necessárias mudanças na regra de abono salarial. Segundo pesquisa do Banco Mundial, 67% dos benefícios são dirigidos aos 60% mais ricos. O Podemos e o PDT propuseram regras mais brandas para o funcionalismo e o PT propôs mudanças no cálculo de pensões por morte, apesar da enorme distorção das regras (reposição de 100% da renda), que aumentam a renda per capita da família, o que destoa da experiência internacional.

Todas as medidas com custo significativo para os cofres públicos. Felizmente, foram rejeitadas.

Uma reforma mais dura, e que contemplasse Estados e municípios, seria melhor para a população mais pobre que depende dos serviços públicos, cujo orçamento é comprimido pelo aumento das aposentadorias. Faltou também um olhar para o grupo mais humilde que tem pouco tempo de contribuição (subiu para 40 anos para ter direito ao benefício integral).

Há ainda o desafio de aprovar a reforma em segundo turno na Câmara e, também, no Senado. Que não tenhamos mais sustos.”

segunda-feira, 22 de julho de 2019

Um Barão





“Um Barão
      
Por Ana Carla Abrão

O Instituto Rio Branco (IRBr) foi criado em 1945, quando se comemorava o centenário do nascimento de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco. Esse mesmo Barão que estampava a nota de 1.000 cruzeiros, iniciou sua carreira diplomática somente em 1876, como cônsul-geral em Liverpool. Foi comissário do Brasil na Exposição Internacional de São Petersburgo e ocupou postos em Paris e em Berlim, onde foi ministro plenipotenciário em 1900.

Mas, muito além das posições internacionais que ocupou, foi a atuação do Barão do Rio Branco na consolidação das fronteiras brasileiras que lhe garantiu o título de patrono da diplomacia brasileira. E foram seus feitos e experiências as credenciais que levaram o centro brasileiro de formação de profissionais para a carreira diplomática, hoje uma referência internacional, a estampar o seu nome. Lá se formam os terceiros-secretários da diplomacia, que chegam ao topo da carreira com um aperfeiçoamento moldado por anos de prática, treinamento e cursos, alguns deles obrigatórios para os diplomatas que almejam a ascensão na chancelaria.

Saíram do Instituto Rio Branco grandes diplomatas brasileiros. Em particular, todos os embaixadores que ocuparam essa posição nos Estados Unidos após a redemocratização. Nomes emblemáticos como Marcílio Marques Moreira, formado pelo IRBr em 1954 e mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Georgetown, em Washington; Rubens Ricupero, que carrega os prêmios Lafayette de Carvalho e Silva” de 1.º colocado no exame de ingresso ao IRBr, 1958, do Rio Branco e Medalla de Vermeil, como 1.º colocado no curso do IRBr, 1959-1960; Paulo Tarso Flecha de Lima, que fez o curso de aperfeiçoamento e ocupou a embaixada de Washington após servir como embaixador em Londres e se notabilizar na negociação da libertação de reféns brasileiros no Iraque de Saddam Hussein; Rubens Barbosa, que antes de Washington serviu como embaixador no Equador, na China, na Alemanha e na Áustria, além de acumular outras tantas relevantes experiências diplomáticas mundo afora. Mais recentemente tivemos Sérgio Amaral, que antes de assumir a Embaixada do Brasil em Washington serviu como embaixador em Paris e Londres e foi negociador da dívida externa brasileira com o Comitê de Bancos Credores e com o Clube de Paris. Foi também governador alterno no Banco Mundial e no Fundo Monetário Internacional, além de representante do Brasil no Gatt, por ocasião da Rodada Uruguai.

Mas, antes da redemocratização, não foram só dos bancos do Instituto Rio Branco que saíram grandes diplomatas que nos representaram em Washington. Dotados de notório saber e muita experiência, figuras importantes da nossa história ocuparam a Embaixada do Brasil nos Estados Unidos. Neste caso, foram suas destacadas trajetórias, e não necessariamente a formação original como diplomata, que os credenciaram para o principal posto da diplomacia brasileira. São nomes como Osvaldo Aranha, um dos políticos de maior destaque da sua época, que serviu como embaixador nos Estados Unidos entre 1934 e 1937, após atuar como um dos principais articuladores da Revolução de 30 e assumir o Ministério da Justiça em 1931; ou o banqueiro Walter Moreira Salles, conhecido como conciliador, gentil e hábil negociador, que ocupou o posto por duas vezes. Primeiro, no governo Getúlio Vargas, e novamente entre 1959 e 1961, com Juscelino Kubitschek; ou o economista, professor, escritor (e também diplomata de carreira) Roberto Campos, que fez parte, nos primórdios da sua carreira diplomática, da delegação brasileira na Conferência de Bretton Woods. Campos, com formação inicial em filosofia e teologia, se graduou em Economia na Universidade de Columbia quando ainda era cônsul de terceira classe em Washington, vindo a assumir o posto de embaixador somente em 1961, no governo de João Goulart.

Finalmente, como não falar de Joaquim Nabuco, que assumiu como primeiro embaixador do Brasil nos Estados Unidos em 1905, cargo que ocupou até seu falecimento, em janeiro de 1910.

Embora tenhamos uma excepcional escola de formação de diplomatas, que atrai, seleciona e forma grandes quadros para nos representar internacionalmente, há de se dar espaço à meritocracia que não deve nunca ser ditada por reserva de mercado.

Meritocracia significa reconhecer, selecionar e dar oportunidade a quem se prova pronto, senão o mais pronto e o melhor, para exercer uma determinada função.

Nosso Barão do Rio Branco deu o tom da qualidade da nossa diplomacia, e foi seguido por outros igualmente ilustres. Mas também foi o nosso Barão que, lá atrás, ganhou popularidade pela nota de 1.000 cruzeiros que foi, com a inflação, perdendo valor. Mas no início ela era o Barão. E um Barão valia muito. Definir com base na certidão de nascimento um posto que deveria ser exercido por mérito é, no mínimo, desvalorizar a chancelaria brasileira.”

sexta-feira, 19 de julho de 2019

O Brasil volta ao tempo dos fidalgos





“O Brasil volta ao tempo dos fidalgos

POR MÍRIAM LEITÃO

Quando a Presidência erra, outra instituição corrige. É assim que funciona na democracia. Está com o Senado o poder de evitar a insensatez do presidente Bolsonaro de indicar o filho, sem qualquer experiência na diplomacia, para o posto mais revelante da nossa política externa. É evidentemente um ato de nepotismo e se alguma firula jurídica diz o contrário é preciso repensá-la, porque é de uma clareza meridiana que ele só está sendo escolhido por ser filho. Fidalgo.


O primeiro embaixador brasileiro na República era um monarquista. Joaquim Nabuco foi um representante esplêndido da República brasileira. O que aprendemos com a História é que a escolha deve recair sobre o mais qualificado, independentemente de sua tendência política. E nunca por ser parente do presidente. Essa intenção de Bolsonaro fere o princípio da impessoalidade. O deputado Eduardo Bolsonaro só foi pensado para o cargo por ser filho, nenhum outro motivo. E o presidente paternalmente esperou o aniversário dele para que assim atingisse a idade mínima.

A carreira diplomática tem exigências e peculiaridades próprias. É complexa, delicada e cheia de sutilezas. Dizer que porque fala inglês e espanhol pode ser embaixador equivale a escolher alguém para comandar um dos Exércitos porque sabe atirar e marchar. O diplomata, como o militar, segue uma sequência de etapas na carreira. Começa como terceiro secretário, ao sair do Instituto Rio Branco, até chegar a embaixador. E no início assume representações menores, até chegar à senioridade e às missões de maior responsabilidade. Não se faz essa exigência, como bem sabem os militares, por qualquer apego à escala hierárquica, mas porque no caminho cumpre-se o tempo necessário do aprendizado.

O argumento de que Eduardo Bolsonaro conhece o presidente americano Donald Trump e por isso é a pessoa indicada revela um abissal desconhecimento de como funcionam as relações com os Estados Unidos. Ele acha mesmo que terá linha direta na Casa Branca? Falará no Departamento de Estado com o subsecretário de assuntos latino-americanos. Mas um embaixador é mais do que isso. Ele tem que representar o país diante não apenas do governo, mas de toda a sociedade. Eduardo como líder hoje do Movimento, uma falange de ultradireita, criada por Steve Bannon, terá muita dificuldade de transitar pelos muitos segmentos da diversidade americana. Não conseguirá sentir o país. Ele já cometeu o primeiro dos erros que um diplomata profissional não cometeria: colocou na cabeça o boné de um candidato. No ano que vem haverá eleições. O ambiente está cada vez mais tenso por lá. As declarações de Trump esta semana contra quatro deputadas da esquerda democrata — uma naturalizada, três nascidas nos Estados Unidos — foram consideradas racistas e a Câmara de Representantes aprovou ontem por ampla maioria uma moção de censura ao presidente Trump.

Há, claro, chefes de missão que não são diplomatas de carreira, e alguns fizeram bom trabalho, mas nunca houve no Brasil uma escolha como essa. Ela representa mais um passo no desmonte da brilhante e bem formada burocracia da qual o Brasil sempre se orgulhou. Mas, além disso, ela ofende o nosso atual estágio de desenvolvimento democrático.

O Brasil nasceu como um país em que as portas se abriam se a pessoa era um fidalgo, filho de alguém poderoso. Depois se transformou no país das carteiradas, aquele cujo defeito se resumia na frase “sabe com quem está falando”. A democracia foi corrigindo essas distorções. E assim firmou-se a condenação ao nepotismo e a obrigatoriedade do princípio da impessoalidade para a escolha de pessoas para os cargos públicos.

Essa ideia de Bolsonaro é ruim porque o jovem deputado não tem as mínimas qualificações para exercer o cargo, e é deletéria porque joga o Brasil de volta ao inaceitável tempo da fidalguia. Por isso, se a Presidência não tem noção, que os outros poderes corrijam os erros. O Senado tem a prerrogativa de decidir sobre nomeação de embaixadores e deve avaliar esse assunto pensando no país e não na conveniência política. E o Supremo Tribunal Federal (STF) precisa esclarecer se a Constituição, ao condenar o nepotismo, ressalvou o posto de embaixador entregue ao filho do presidente como uma situação aceitável.”

quinta-feira, 18 de julho de 2019

O custo da impotência do eleitor brasileiro





“O custo da impotência do eleitor brasileiro
      
Por Fernão Lara Mesquita

Os Estados destinaram R$ 94 bi a 2,3 milhões de servidores inativos, gastando em média R$ 40 mil por servidor. Já o investimento em toda a população de 210 milhões de plebeus foi quase quatro vezes menor em números absolutos, o que põe o gasto médio em R$ 125 por pessoa, 320 vezes menos do que o que se “investe” nos aposentados da privilegiatura.

Esse é o resumo desta crise e da própria História do Brasil.

Essa nossa condição anacrônica de servidão semifeudal só pode perdurar graças à “desorientação espacial”, digamos assim, em que anda perdida a imprensa nacional. O mundo ficou menor, mas nem tanto. A Rede Globo, por exemplo, ainda que enquistada em pleno Rio de Janeiro, tem a certeza de que vive numa sociedade sexualmente reprimida. De frente para a praia, nunca reparou naquilo que Pero Vaz de Caminha viu de cara e marcou toda a nossa História: um país onde todo mundo anda pelado, naquela latitude abaixo da qual “não existe pecado”. Por isso agasta tanto que ela faça cara de heroína da revolução ao pregar a libertinagem na terra de João Ramalho, Caramuru e seus haréns de filhas de caciques.

Não está sozinha. Boa parte do resto da imprensa frequentemente também se imagina em alguma França, ou sei lá. Encasquetou meramente por eco que mudar regras de Previdência é sempre “impopular”. Daí ter permanecido afirmando até tomar o desmentido na cara de que reduzir a diferença média de 35 vezes entre as aposentadorias que o favelão nacional recebe e as que paga à privilegiatura levaria os explorados às ruas para bradarem contra o fim da própria espoliação.

Nem é da velha esquerda que se trata. Esta, de PT a FHC, não foi derrotada nem pela direita, nem pela internet. Morreu de morte morrida. Perdeu o trem do 3.º Milênio e sumiu. Não tem proposta nenhuma pra nada. Por isso só fala de sexo. Mas dentro do universo do debate racional muita gente boa também tem boiado na interpretação do que está aí. O que explica essa desorientação é o vício muito brasileiro de excluir o povo de suas conjecturas. As “vitórias” e “derrotas” são sempre dos demiurgos. Tudo acontece ou deixa de acontecer exclusivamente graças a eles, e “é bom que seja assim” porque o povo brasileiro ignorante, coitado, não sabe o que é bom para ele próprio.

Ficou para trás do Congresso, que, vivendo de voto, logo entendeu que algo tinha mudado e deu 379 a 131. 64% da bancada do Nordeste (74% da do SE) votou a favor.

Com isto querem crer os mais otimistas que, por cima da Constituição e da lei, o Brasil já é governado pelo povo, que tem encontrado os meios de dobrar os governos, as oposições e as instituições alinhadas contra os seus interesses. Tem um remoto fundo de verdade nisso. Mas não é realista relevar o quanto a falta de dinheiro para pagar funcionários terá pesado para fazer finalmente subir a cancela com que há mais de 20 anos a privilegiatura mantinha a reforma da Previdência barrada na porta do aparato das decisões nacionais, assim como imaginar que passado o sufoco ela jamais voltará ao ataque para nos impor o que não conseguiu com os “destaques” tentados.

Todos os problemas do Brasil, sem exceções, são consequência direta ou indireta da absoluta independência do País Oficial em relação ao País Real, e toda vez que esquecermos isso estaremos perdendo tempo (e vidas, muitas vidas). Na sequência da aprovação dessa reforma de que foram cirurgicamente extirpados todos os componentes revolucionários como a desconstitucionalização dos privilégios e a instituição do regime de contribuição, houve quem escrevesse sobre “a lentidão das decisões econômicas” e lembrasse que “foi preciso um impeachment e uma crise asfixiante” para que fizéssemos a reforma com 20 anos de atraso, como se essa lentidão não passasse de preguiça ou respondesse a dúvidas reais.

Sobre a reforma tributária, há mais de meio século tida como “urgentíssima” por todos os especialistas, há uma inflação de propostas no Congresso e nenhum sinal de consenso. Mas não é só por vaidade dos economistas. A razão real do marasmo é a de sempre: há dois Brasis e o País Oficial, que decide por ambos, não paga os impostos que impõe ao País Real, logo, não tem pressa. A questão decisiva para quem, mundo afora, optou por um ou outro sistema tributário é que onde o sistema se apoia no imposto de valor agregado cobrado sobre o consumo o povo tem a última palavra sobre as decisões, logo, o critério decisivo é o da transparência e justiça do imposto cobrado; e onde o de transações financeiras chegou a ser implantado o povo não participa das decisões e, então, o critério passa a ser só o do volume e o da facilidade de arrecadação.

Martela-se, ainda, no “mente quem diz que é possível baixar a carga de tributos no Brasil”. Mas mente mais ainda quem não acrescenta a esse raciocínio o seu complemento obrigatório, qual seja, “enquanto não se reduzir a farra do Estado”. Dar por intocável o tamanho do Estado é dar por intocável o tamanho da miséria do Brasil. É condenar mais uma geração que luta a viver no brejo e na guerra para que mais uma geração que não ganhou os privilégios que tem trabalhando possa desfrutá-los ao sol e em paz. O Brasil jamais poderá competir pelos empregos do mundo com o Estado custando o tanto que impede que os nossos impostos sejam tão baixos quanto os do resto do planeta, ou mais para compensar o handicap educacional que pagamos.

Todos esses raciocínios desviantes e desviados só podem ser abertamente defendidos no Brasil porque o eleitor é absolutamente impotente passado o ato de depositar o voto na urna. Eleições distritais, recall, referendo, iniciativa e eleições de retenção de juízes são a única garantia jamais inventada de que o jogo será jogado sempre a favor do eleitor. Essas ferramentas são as manifestações de rua sistematizadas e instituídas como fator decisivo de sucesso de qualquer proposta de solução. É como a bomba atômica. Não precisa ser disparada. Basta o inimigo saber que você a tem para que passe a respeitá-lo.”

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Avança a reforma do Estado





“Avança a reforma do Estado

POR MERVAL PEREIRA

A relevância da Câmara, como parte de um dos poderes da República, foi o destaque da sessão de ontem, quando a reforma da Previdência foi aprovada em primeiro turno por uma votação surpreendente pelo número de votos bem acima do necessário.

Ao final, o presidente Rodrigo Maia já puxou para a Câmara duas novas reformas: a tributária e a reorganização do serviço público, mantendo o protagonismo na reforma do Estado brasileiro

Há muito tempo não se viam deputados federais tendo o entendimento de que participavam de um momento histórico, sem receio de assumir suas posições.

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, foi feliz ao definir as relações equilibradas entre o Legislativo e o Executivo como necessárias para uma democracia forte, chamando a atenção de que investidores, além das questões fiscais controladas, que indicam futuro mais seguro para seus investimentos, também olham para a qualidade da democracia praticada no país.

Raramente se viu no plenário da Câmara uma concordância tamanha. Todos eram favoráveis a uma reforma da Previdência. Um avanço diante da posição de anos atrás, quando muitos insistiam em que não havia déficit no sistema.

O que a oposição alegou é que esta reforma não era a correta para o país. Houve também outra aproximação de posições, no sentido de admitir, com maior ou menor ênfase, que a reforma impõe um sacrifício à população.

O dissenso ficou por conta da visão política de cada um, a oposição batendo na tecla de que os menos favorecidos serão atingidos. Os favoráveis à reforma, e não apenas os deputados governistas, defendendo a tese de que ela  ataca os privilégios do atual sistema previdenciário.

Outra unanimidade ontem na Câmara foi a bandeira nacional. Trazida ao plenário pelos favoráveis à reforma, foi também abraçada pela oposição, cada grupo ideológico transformando-a em um símbolo de sua luta.

Nossa bandeira jamais será vermelha, gritaram líderes de partidos do centro-direita e liberais. A bandeira nacional não pode ser usada contra os mais pobres, devolveram os líderes da oposição.

A deputada Jandira Fegalli, do PC do B, chegou a dizer que era líder da minoria dentro da Câmara, mas que a oposição representava a maioria do povo brasileiro. Não foi isso o que as urnas mostraram nas últimas eleições, mesmo que o governo não tenha conseguido montar uma base parlamentar.

A maioria do plenário formou-se em torno não do governo, que não tem base majoritária, mas a favor de uma visão liberal da economia. A tendência conservadora da maioria dos eleitos para a Câmara parecia favorecer a criação de uma base parlamentar sólida, mas a negociação política foi conduzida de maneira desastrada pelo novo governo.

A definição de um relacionamento não promíscuo com o Congresso foi um ponto positivo do governo Bolsonaro. Até mesmo a liberação das emendas parlamentares e de bancadas às vésperas da votação é do jogo democrático, pois os parlamentares vivem do que podem beneficiar suas bases eleitorais.

 O que não é admissível é compra de votos por baixo do pano, através da corrupção, como vinha acontecendo desde o mensalão, chegando ao petrolão.

Mas Bolsonaro não entendeu que a falta de promiscuidade não significa, por si só, um tratamento republicano. O novo Palácio do Planalto não conseguiu manter um relacionamento profícuo com o Congresso, e gerou uma disputa de poder que foi prejudicial à democracia brasileira.

A reforma só saiu porque a Câmara foi convencida da sua necessidade, mesmo que potencialmente impopular, e decidiu encarar o desafio. À medida que as discussões foram se desenrolando, a opinião pública foi também evoluindo no entendimento dessa necessidade.

A tal ponto que ontem muitos deputados de diversos partidos fizeram questão de aparecer em conjunto na tribuna do plenário. Um ambiente hostil à reforma da Previdência transformou-se em favorável ao longo do debate, e pesquisas de opinião mostram que a maioria já a apóia.

Sem dúvida o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, foi o grande artífice da união em torno do substitutivo aprovado na Comissão Especial. E pelo ambiente tranqüilo em que transcorreu a votação, já que tem uma relação muito boa com os partidos de oposição – chegou a brincar dizendo que o DEM poderia apoiar o deputado Marcelo Freixo para a prefeitura do Rio – e conseguiu manter o plenário em desarmonia controlada.”

terça-feira, 16 de julho de 2019

Fios desencapados




“Fios desencapados
      
Por Monica de Bolle

A imagem que tinha na cabeça quando comecei a escrever este artigo estava mais para cabos elétricos soltos do que fios desencapados, mas o efeito visual é mais ou menos o mesmo. Pensava em postes elétricos caídos e aqueles cabos chamuscando e soltando fagulhas, perigo para qualquer um que passe perto. Fios desencapados servem ao mesmo propósito de visualizar perigos aos quais somos expostos todos os dias e à necessidade de conter os danos desses fios desarmando-os e refutando argumentos estapafúrdios.

Não falo sobre os terraplanistas, pois esses já se tornaram folclóricos de tão primitivos que são. Falo dos outros. Falo do susto brutal de aprender repentinamente que, no Brasil, parte da elite não sabe o que é trabalho infantil, ou finge que não sabe para proteger o presidente da República da repercussão de seus tuítes. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define o trabalho infantil assim: “Nem todo o trabalho exercido por crianças ou adolescentes deve ser classificado como trabalho infantil. A participação de crianças e adolescentes em atividades que não afetem sua saúde ou desenvolvimento e não interfiram nas atividades escolares é geralmente vista como positiva”. Isso inclui atividades como ajudar os pais nas tarefas de casa, nos negócios da família, ou algo que possibilite ganhar um dinheirinho extra durante as férias escolares ou feriados.

O termo “trabalho infantil se refere a atividades que privem as crianças de sua infância, de seu potencial, de sua dignidade, e que possam ser prejudiciais ao seu desenvolvimento físico e mental”. Portanto, a parlamentar que vendia brigadeiros na escola para pagar as aulas de tênis “sem precisar”, a jornalista que trabalhava no armazém do pai, ou o juiz que aos 12 anos foi trabalhar numa pequena loja da família não foram vítimas de trabalho infantil. Assim como não foram vítimas de trabalho infantil as centenas de pessoas que tuitaram suas experiências a pedido do filho deputado do presidente.

Vítima de trabalho infantil é a meninada que vende bala nos semáforos das cidades brasileiras, que cata lata nos litorais do nosso País, que corta cana debaixo de sol escaldante. Vítima de trabalho infantil são as 2,4 milhões de crianças exploradas País afora, segundo os mais recentes dados da OIT. Cabe lembrar, tuítes à parte, que o Estado brasileiro se comprometeu a erradicar a violação de direitos da criança e do adolescente por meio da exploração laboral até 2025 – faltam menos de 6 anos para terminar o prazo.

Nesses tempos de fios desencapados, em que as descargas elétricas parecem provocar convulsões intelectuais em quem deveria ter preparo suficiente para separar os mais abjetos absurdos da mera ignorância, está difícil usar valores morais para convencer as pessoas dos malefícios de certos argumentos. Valores morais universais foram atropelados pela ideologia e, nesse momento, estrebucham nos grupos de família de WhatsApp, nas redes sociais, na briga constante como forma de “diálogo”. Nesse ambiente, a única forma de trazer alguma racionalidade para a discussão é colocá-la de forma fria, deixando de lado – pasmem – a moralidade.

De forma fria, a literatura mostra que o trabalho infantil prejudica o crescimento econômico, ainda que possa auxiliar algumas famílias miseráveis no curto prazo – e mesmo essa premissa é questionável diante dos dados. Ao competir com a educação, o trabalho infantil impede que as crianças cresçam para se tornarem adultos com mais escolaridade, e, portanto, mais produtivos e com maiores chances de obter empregos que ofereçam salários melhores do que a renda de seus pais. Ficam essas crianças, quando adultas, presas em ciclo de pobreza quase perpétuo, o que pode aumentar o grau de desigualdade de renda de um país, para não falar da falta de acesso a qualquer outra oportunidade que favoreça o desenvolvimento econômico. Países que utilizam trabalho infantil geram desincentivos ao investimento e ao aprimoramento produtivo, já que há um recurso barato em abundância – as crianças.

Cabe a todos aqueles com espaço nos jornais o esforço de encapar fios constantemente para que a ignomínia não resulte na regressão autodestrutiva.”

segunda-feira, 15 de julho de 2019

'Cada cidadão, um voto' não passa de enfeite





“‘Cada cidadão, um voto’ não passa de enfeite
      
POR JOSÉ NÊUMANNE

O presidente Jair Bolsonaro, eleito pela maioria dos votos úteis de cidadãos do País inteiro, tem sido acusado por adversários e observadores independentes de desrespeitar as instituições da nossa democracia representativa, especialmente o Congresso. De fato, no quesito relacionamento com o Legislativo, o atual chefe do Executivo tem deixado muito a desejar. Mas será que a Câmara e o Senado têm representado a cidadania como deveriam?

Há controvérsias. É público e notório que, nesta legislatura, uma quantidade expressiva de parlamentares de praticamente todos os partidos se tem valido do expediente legal, mas muito duvidoso, para ser gentil, do ponto de vista ético, do foro de prerrogativa de função para escapar de punições penais e participar ativamente da confecção e revisão de dispositivos legais. Só para citar os casos mais abusivos, o deputado Celso Jacob (MDB-RJ) tem sido o menos faltoso em sessões de comissão e plenárias de dia e dorme no presídio da Papuda, o mesmo “lar” do senador Acir Gurgács (PDT-RO). Aécio Neves (PSDB-MG) e Gleisi Hoffmann (PT-PR) fugiram de disputas majoritárias no Senado para se abrigarem no seguro valhacouto do voto proporcional da Câmara.

Os casos mais espantosos dos remidos do foro privilegiado são os próprios presidentes das Casas. Davi Alcolumbre (DEM-AP) teve dois inquéritos sobre malversação de verbas eleitorais arquivados na celebração da impunidade que é a Justiça Eleitoral em seu Estado. Mas, mercê de denúncia do Ministério Público Eleitoral, os casos pendentes estão no Supremo Tribunal Federal (STF). Eleito presidente do Senado numa disputa fraudada, exposta às escâncaras pela transmissão gerada pelo próprio canal do órgão, contou com a cumplicidade do relator, Roberto Rocha (PSDB-MA), para arquivar investigação da fraude por falta de evidências. Para máximo escárnio, o País tomou conhecimento em tempo real dos detalhes da existência de um voto em dobro de nobre varão impune.

Outro suspeito é Rodrigo Maia (DEM-RJ), do partido de Alcolumbre e do chefe da Casa Civil do governo, Onyx Lorenzoni, este também réu confesso de ter usado caixa 2, que será criminalizada se os deputados aprovarem decisão dos senadores que consta da lei contra abuso de autoridade. O filho do ex-prefeito do Rio de Janeiro César Maia tem o codinome Botafogo, seu time do coração, na lista de propinas do Departamento de Operações Estruturadas da construtora baiana Odebrecht. Eleito nos últimos lugares de sua coligação, é, contudo, no momento o herói nacional da resistência do Congresso aos maus bofes do chefe do Executivo, e indicado até como verdadeiro herói da reforma da Previdência.

A eleição fraudulenta do presidente do Senado foi comemorada com euforia por brasileiros de bem, por ter ele afastado da presidência do Congresso e da dita linha sucessória da Presidência da República, pelo tal voto em dobro, Renan Calheiros (MDB-AL). Primeiro presidente do Senado a se tornar réu no exercício do mandato, o alagoano de Murici é alvo em mais 11 inquéritos no STF: oito dizem respeito à Operação Lava Jato, um à Zelotes, um a desvios em Belo Monte e outro sobre o caso Mônica Veloso.

A relação de apavorados com a possibilidade de virem a motivar investigações no combate à corrupção, acusados, denunciados ou processados não pode ser medida aritmeticamente, pois muitos preferem esconder-se no meio do alarido das sessões parlamentares. Mas há quem não dê a mínima para mostrar a cara e bater boca. A presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann, acusada de ter participado de um esquema de corrupção na gestão do marido, Paulo Bernardo, em que tungavam proventos de aposentados do Ministério do Planejamento, solta o verbo contra a reforma da Previdência e se dirige a Sergio Moro como se ele fosse suspeito e ela, juíza pura.

Mais do que o despudor, a representação das instituições as põe em xeque. Desde que depôs Collor e Dilma e manteve Temer fora do alcance da lei, a Câmara dos Deputados tornou-se o poder de fato da República. Isso tem permitido golpes recentes, caso do orçamento impositivo. E o faz como resultado da proporcionalidade dos votos das bancadas estaduais e do decisivo sufrágio de legenda, instrumento de fortalecimento dos partidos da Constituição ultraliberal de 1946, remodelado e reforçado na Constituição “malandrinha” de 1988. Por esse método usurpador, os Estados mais populosos, como São Paulo, não podem ter representação de mais de 70 deputados, enquanto as bancadas dos menores, em especial os antigos territórios federais, não podem ter menos de 8. Não venha o leitor desavisado atribuir a este escriba apoio ou qualquer subserviência ao atual governo, pois tenho travado essa batalha desde a época do debate do Congresso constituinte. Aliás, o simples fato de a Carta Magna ter sido debatida, escrita e promulgada por congressistas que se mantiveram no Legislativo, e por quantos mandatos lhes aprouver, de vez que não há limitação para reeleições, já basta para saber ao sabor de que interesses ela se tornou esse vade-mécum enxundioso.

Entre a Constituição nada cidadã do dr. Ulysses, que, com ajuda confessada de Nelson Jobim, retocava seu texto sem aprovação prévia do plenário, e as refregas do Legislativo contra Collor, Dilma e Bolsonaro passaram-se 31 anos de crise de representação, na qual o brocardo “cada cidadão, um voto” é apenas um enfeite. Ao longo desse caminho pedregoso, em 2010 José Roberto de Toledo escreveu Um cidadão, 13 votos, que resume tudo na linha fina: “Por que o voto de um paulista que vive em Roraima vale 13 vezes mais do que o de um pernambucano que mora em São Paulo? Ou por que um carioca morador no Amapá equivale eleitoralmente a 5 gaúchos baseados em Minas Gerais?”. E aí, mais até do que na corrupção, está o busílis.”

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Covardes! Covardes! Covardes!





“Covardes! Covardes! Covardes!
      
POR FERNÃO LARA MESQUITA

O que mais choca ao ver as tais “instituições funcionando” é constatar o completo abandono em que vai o brasileiro plebeu.

O desarmamento mecânico foi só uma das consequências do outro. O pior é o absoluto desarmamento institucional a que estamos reduzidos. Vem vindo de longe e num crescendo há tanto tempo que anestesiou o povo e fez do brasileiro uma massa inerte. Já não se defende nem das mordidas que leva de frente. Reduzido à sobrevivência até a próxima refeição, foi devolvido à lei da selva. Está muito aquém do nível em que gestos de dignidade humana podem ser cobrados.

O grau de alienação da outra ponta é inversamente proporcional. Os predadores-alfa, com suas lagostas, seus vinhos tetracampeões e seus decretos de 16,32% no Ano da Grande Fome, rebaixaram Maria Antonieta a um símbolo de austeridade e promoveram o xerife de Nottingham a um quase mecenas. Para o Brasil de Brasília o luxo não é só constitutivo, é antes “constitucional”. Exigível por ordem judicial, é função do Estado impô-lo à favela pela força.

Quando a sessão de tortura termina, a volta à cela torna-se motivo de comemoração. Mas esse trilhão, se sobrar tanto, não é desmame. É só um sopro no pulmão do morto. Está mais para a bruxa engordando o dedinho de Joãozinho e Maria. Quando a reforma da Previdência foi entregue ao Congresso, em fevereiro, já os militares, “no poder” após 33 anos de ostracismo, tinham sido (indiretamente) desembarcados dela. Morto o critério de igualdade, o arbítrio, de que nascem as privilegiaturas, ganhou salvo-conduto para o futuro do Brasil com o endosso presidencial à exclusão do sistema de capitalização logo nos primeiros dias dos dois meses até a CCJ mais 68 dias de Comissão Especial fazerem das palavras dele lei. No último minuto a agroteta, o alter ego do agronegócio que salva a Pátria, mordeu os seus 89 bi só pra ninguém esquecer que o privilégio não tem preconceito de classe. E então lançaram-se ao leilão os Estados e os municípios, onde se fará o ajuste fino do que sobrar após os dois turnos, no mínimo, em cada Casa do Congresso, que estão na agenda do “pra já” das nossas depressões futuras.

Não há “rachas” na privilegiatura. Só o que continua em disputa é a quem serão atirados os ossos a cada troca de turno no poder. Aos “movimentos sociais” de laboratório, à protomilícia da fase terminal das quase democracias, ou às polícias que já engatilham aquelas “greves” que consistem em sinalizar para o crime quando estará liberado o próximo comedio em que poderá “tocar o terror” impunemente. Será, portanto, disputada com o argumento de sempre a questão filosófica sobre se são ou não são privilégios as vantagens que as polícias têm: “E então, governador, a quantos plebeus trucidados vosselência resiste?”.

Mortas sem choro nem vela de tantos observadores da imprensa e seus “especialistas” das universidades públicas as pretensões revolucionárias da reforma, nada mais restava “fora da ordem”. Seguiu-se a tradicional disputa dos lobbies, alguns, como é de lei, patrocinados pelo presidente da República em pessoa, pois, da “direita” ou da “esquerda”, é de bom tom que eles não se esqueçam “dos seus” nesta nossa democracia cordial.

A plebe do favelão nacional foi, como sempre, a única “parte” em prol da qual ninguém pediu “vantagens”, com exceção do “politicamente inábil” ministro da Economia que as privilegiaturas “de direita” e “de esquerda” que se substituem no poder, igualmente virgens de qualquer experiência com as maçantes obrigações da economia não parasitária, acabam constrangidas a importar do Brasil Real.

Já é outra vez possível até atacar de frente o combate à corrupção e propor de peito aberto o restabelecimento da impunidade. Com a promoção dos hackers de aluguel e do jornalismo de banqueiro “campeão nacional” a interlocutores legítimos do processo político brasileiro, os “ganchos” para o bombardeio de saturação estão garantidos. As redações herdadas, com “autonomia” garantida pela sólida alienação dos seus patrocinadores, podem recuar do primeiro plano e concentrar-se por um tempo apenas em “repercutir” os ataques de que mesmo “fatiados” ninguém desconfia, enquanto mantêm a censura para as alternativas que funcionam no mundo que funciona. Quem, na privilegiatura “de direita” ou “de esquerda”, “ganhou” ou “perdeu” cada round?

O resumo é que foi mais uma vez anunciado aos quatro ventos que quem tem lobby monta em quem não tem, e a polícia, os paladinos dos direitos humanos e os santos de pau oco montam juntos.

Covardes! Covardes! Covardes!

É a hora mais escura do Brasil. Ilusão de noiva acreditar que qualquer coisa vai mudar antes que o poder mude de mãos. Enquanto não impusermos ao País Oficial o deslocamento do seu eixo de referências e do ponto de ancoragem dos empregos públicos, as lealdades continuarão sendo as de hoje, as iniciativas para “melhorar” isto ou aquilo não passarão de paliativos e qualquer debate em torno delas, apenas dados de uma autópsia que contribuirão mais para alienar que para esclarecer o País.

O mundo está aí para quem quiser conferir. Manda na própria vida e livra-se da miséria quem tem o poder de contratar E DE DEMITIR políticos (os funcionários tornam-se demissíveis por consequência) e de dar a última palavra na escolha das leis sob as quais concorda viver. Só não é escravo quem tem a garantia de que é seu o resultado do seu trabalho e que só ele tem o poder de dispor sobre o que será feito dele. Eleições distritais puras com direito a retomada de mandatos, iniciativa de propor leis combinada com direito de referendo do que vier dos legislativos e eleições periódicas de retenção de juízes põem você como referência obrigatória dos políticos, a sua satisfação como única garantia do emprego deles e, ao mesmo tempo, blinda o País contra golpes e manipulações.

A deus o que é de deus, portanto. O Brasil não precisa mais que de políticos tementes ao patrão.

E viva o 9 de julho, que era disso que se tratava desde muito antes de 1932!”