“O Brasil
volta ao tempo dos fidalgos
POR MÍRIAM
LEITÃO
Quando a
Presidência erra, outra instituição corrige. É assim que funciona na
democracia. Está com o Senado o poder de evitar a insensatez do presidente
Bolsonaro de indicar o filho, sem qualquer experiência na diplomacia, para o
posto mais revelante da nossa política externa. É evidentemente um ato de
nepotismo e se alguma firula jurídica diz o contrário é preciso repensá-la,
porque é de uma clareza meridiana que ele só está sendo escolhido por ser
filho. Fidalgo.
O primeiro
embaixador brasileiro na República era um monarquista. Joaquim Nabuco foi um
representante esplêndido da República brasileira. O que aprendemos com a
História é que a escolha deve recair sobre o mais qualificado,
independentemente de sua tendência política. E nunca por ser parente do
presidente. Essa intenção de Bolsonaro fere o princípio da impessoalidade. O
deputado Eduardo Bolsonaro só foi pensado para o cargo por ser filho, nenhum
outro motivo. E o presidente paternalmente esperou o aniversário dele para que
assim atingisse a idade mínima.
A carreira
diplomática tem exigências e peculiaridades próprias. É complexa, delicada e
cheia de sutilezas. Dizer que porque fala inglês e espanhol pode ser embaixador
equivale a escolher alguém para comandar um dos Exércitos porque sabe atirar e
marchar. O diplomata, como o militar, segue uma sequência de etapas na
carreira. Começa como terceiro secretário, ao sair do Instituto Rio Branco, até
chegar a embaixador. E no início assume representações menores, até chegar à
senioridade e às missões de maior responsabilidade. Não se faz essa exigência,
como bem sabem os militares, por qualquer apego à escala hierárquica, mas
porque no caminho cumpre-se o tempo necessário do aprendizado.
O
argumento de que Eduardo Bolsonaro conhece o presidente americano Donald Trump
e por isso é a pessoa indicada revela um abissal desconhecimento de como
funcionam as relações com os Estados Unidos. Ele acha mesmo que terá linha
direta na Casa Branca? Falará no Departamento de Estado com o subsecretário de
assuntos latino-americanos. Mas um embaixador é mais do que isso. Ele tem que
representar o país diante não apenas do governo, mas de toda a sociedade.
Eduardo como líder hoje do Movimento, uma falange de ultradireita, criada por Steve
Bannon, terá muita dificuldade de transitar pelos muitos segmentos da
diversidade americana. Não conseguirá sentir o país. Ele já cometeu o primeiro
dos erros que um diplomata profissional não cometeria: colocou na cabeça o boné
de um candidato. No ano que vem haverá eleições. O ambiente está cada vez mais
tenso por lá. As declarações de Trump esta semana contra quatro deputadas da
esquerda democrata — uma naturalizada, três nascidas nos Estados Unidos — foram
consideradas racistas e a Câmara de Representantes aprovou ontem por ampla
maioria uma moção de censura ao presidente Trump.
Há, claro,
chefes de missão que não são diplomatas de carreira, e alguns fizeram bom
trabalho, mas nunca houve no Brasil uma escolha como essa. Ela representa mais
um passo no desmonte da brilhante e bem formada burocracia da qual o Brasil
sempre se orgulhou. Mas, além disso, ela ofende o nosso atual estágio de
desenvolvimento democrático.
O Brasil
nasceu como um país em que as portas se abriam se a pessoa era um fidalgo, filho
de alguém poderoso. Depois se transformou no país das carteiradas, aquele cujo
defeito se resumia na frase “sabe com quem está falando”. A democracia foi
corrigindo essas distorções. E assim firmou-se a condenação ao nepotismo e a
obrigatoriedade do princípio da impessoalidade para a escolha de pessoas para
os cargos públicos.
Essa ideia
de Bolsonaro é ruim porque o jovem deputado não tem as mínimas qualificações
para exercer o cargo, e é deletéria porque joga o Brasil de volta ao
inaceitável tempo da fidalguia. Por isso, se a Presidência não tem noção, que
os outros poderes corrijam os erros. O Senado tem a prerrogativa de decidir
sobre nomeação de embaixadores e deve avaliar esse assunto pensando no país e
não na conveniência política. E o Supremo Tribunal Federal (STF) precisa
esclarecer se a Constituição, ao condenar o nepotismo, ressalvou o posto de
embaixador entregue ao filho do presidente como uma situação aceitável.”
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