“A missão da
imprensa
POR FERNÃO LARA
MESQUITA
Quarta-feira
passada David Alcolumbre comemorou como “um feito histórico para a democracia
do Brasil” a aprovação do orçamento impositivo. Como sempre, deu-se o último
passo antes de dar-se o primeiro. Colheu-se o fruto antes de plantar a árvore.
Multiplicar por
5.594 (26 governadores e 5.568 prefeitos) os focos de dispersão do dinheiro
público sem instalar antes uma democracia verdadeiramente representativa, como
sonha fazer o ministro Paulo Guedes, já seria uma temeridade. Dar aos 513
deputados federais e aos milhares de estaduais e municipais carta branca para
decidir como gastar nosso dinheiro sem meter-lhes antes na boca o bridão do
voto distrital, da retomada de mandato (recall) e do referendo é nada menos que
suicídio.
Deputados e
vereadores são eleitos às cegas por esses nossos “partidos” em metástase e sua
lei eleitoral de enganar trouxa. Uma vez depositado o voto na urna, não nos
devem mais nada. O dinheiro para a reeleição é tomado, e não contribuído. E
podem voltar aos plenários sem um único voto se houver um palhaço popular o bastante
para arrastá-los. Fica o contribuinte refém de legisladores que podem sacar da
sua conta sem ter sequer de mostrar a cara e contra os quais ele não pode nada.
E o pior é que como o slogan do “Menos Brasília, mais Brasil” já estava no ar
não dá nem pra reclamar.
Como parece
complicado argumentar contra mais um princípio elementar da democracia – a
desconcentração do dinheiro dos impostos –, fica o dito pelo não dito. Mas o
caso é que é mais um que vai ser transformado no seu avesso. Esse tipo de tapeação
é recorrente nessa nossa “democracia” que parece mas não é. Metade das
denúncias de corrupção eleitoral apoiaram-se nesse tipo de manipulação.
Primeiro “esqueceu-se” a diferença fundamental entre a sistematização da venda
dolosa de votos e a aceitação de dinheiro de “caixa 2”. E então passou-se a dar
como criminosas operações de financiamento de campanha que só mais além vieram
a ser postas fora da lei. Com todos enfiados no mesmo saco tornou-se impossível
tirar o País do impasse por dentro da política e o tão esperado combate efetivo
à corrupção virou essa briga de bandidos no escuro que procura tornar
indistinguível o joio do trigo e arrasta para a vala comum o que resta da
política, do Judiciário e da imprensa sadios.
E taí o Brasil
parado e estrebuchando...
Tudo neste país
está emaranhado na subversão sistemática da ordem cronológica e das relações de
causa e efeito. Vivemos num turbilhão de ações e reações desencadeadas para
conter a manifestação dos efeitos dos nosso problemas, nunca para eliminar suas
causas, que ninguém mais sabe onde começa, de que vai resultando um
frankenstein institucional em marcha acelerada para o desastre.
Na arte da
construção de instituições – um trabalho refinado ao longo de milênios de
sangue, suor e lágrimas – a ordem dos fatores não só altera, mas quase sempre
inverte o resultado. Todas as corcundas e escolioses, todos os membros
retorcidos ou atrofiados das nossas instituições decorrem do aleijão original
da planta dos pés de todas elas: a desigualdade petrificada na Constituição, a
distorção matemática da representação do País Real no País Oficial, a absoluta
independência entre representantes e representados uma vez encerrada a eleição.
É por isso que,
de como (não) defender a própria vida ao que fazer com a Previdência, da
sexualidade do seu filho ao regime de trabalho que melhor convém a cada um, do
orçamento público à definição do próprio regime político, tudo pode ser e é
discutido à revelia dos destinatários das leis e das providências que as
“excelências” houverem por bem barganhar entre elas.
A ausência
absoluta do eleitor nesses debates é o espaço vital da corrupção.
O papel dos
políticos nas democracias é ajustar os contornos das figuras a serem desenhadas
pelo povo, não o contrário. O da imprensa é balizar e ditar o ritmo dessa
operação a quatro mãos. Se ela pode constranger as autoridades a crer que a
providência mais urgente e profícua que podem tomar por esta nação em guerra é
criminalizar a heresia de descrer da nova “verdade anunciada” de que aquilo com
que cada ser humano nasce entre as pernas não existe, imagine-se o que não
poderia fazer se assumisse as tarefas de trazer o debate político sempre para
as causas essenciais dos nossos problemas e de pôr debaixo dos narizes dos
nossos representantes os consagrados remédios usados por quem já se curou há
quase 200 anos das mesmas doenças de que o povo brasileiro continua condenado a
parecer.
É uma só
humanidade que habita este mundo que começa na Venezuela e termina na China.
Quando, na virada do século 19 para o 20, os Estados Unidos estiveram tão
doentes de corrupção quanto o Brasil está hoje e seu povo se sentia tão
impotente quanto o nosso, jornalistas foram em caravana à Suíça estudar as
ferramentas de democracia direta com que aquele país se tinha livrado da mesma
praga 30 ou 40 anos antes e voltaram para casa com a seguinte receita: “O povo
suíço reconhece na iniciativa (de propor leis e de dar e tirar mandatos) e no
referendo o seu escudo e a sua espada. Com o escudo do referendo afasta todas
as leis que não deseja; com a espada da iniciativa abre caminho para
transformar as suas próprias ideias em leis”. Foi esse “feito histórico” para
as suas respectivas democracias que fez de ambos os dois povos mais livres e
ricos da História da humanidade.
A fórmula do
remédio que pode curar a democracia brasileira não tem tradução em português. A
missão da imprensa porventura interessada em livrar-se de ser confundida com os
políticos pela opinião pública e acabar tendo o mesmo destino deles é ir buscar
onde estiverem todas as soluções que aos grupos em disputa pelo poder só
interessa esconder, dá-las a conhecer a este país doente e, assim, fazer o
Brasil reconciliar-se com o Brasil.”
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