“Fios
desencapados
Por Monica
de Bolle
A imagem
que tinha na cabeça quando comecei a escrever este artigo estava mais para
cabos elétricos soltos do que fios desencapados, mas o efeito visual é mais ou
menos o mesmo. Pensava em postes elétricos caídos e aqueles cabos chamuscando e
soltando fagulhas, perigo para qualquer um que passe perto. Fios desencapados
servem ao mesmo propósito de visualizar perigos aos quais somos expostos todos
os dias e à necessidade de conter os danos desses fios desarmando-os e
refutando argumentos estapafúrdios.
Não falo
sobre os terraplanistas, pois esses já se tornaram folclóricos de tão
primitivos que são. Falo dos outros. Falo do susto brutal de aprender
repentinamente que, no Brasil, parte da elite não sabe o que é trabalho
infantil, ou finge que não sabe para proteger o presidente da República da
repercussão de seus tuítes. A Organização Internacional do Trabalho (OIT)
define o trabalho infantil assim: “Nem todo o trabalho exercido por crianças ou
adolescentes deve ser classificado como trabalho infantil. A participação de
crianças e adolescentes em atividades que não afetem sua saúde ou
desenvolvimento e não interfiram nas atividades escolares é geralmente vista
como positiva”. Isso inclui atividades como ajudar os pais nas tarefas de casa,
nos negócios da família, ou algo que possibilite ganhar um dinheirinho extra
durante as férias escolares ou feriados.
O termo
“trabalho infantil se refere a atividades que privem as crianças de sua
infância, de seu potencial, de sua dignidade, e que possam ser prejudiciais ao
seu desenvolvimento físico e mental”. Portanto, a parlamentar que vendia
brigadeiros na escola para pagar as aulas de tênis “sem precisar”, a jornalista
que trabalhava no armazém do pai, ou o juiz que aos 12 anos foi trabalhar numa
pequena loja da família não foram vítimas de trabalho infantil. Assim como não
foram vítimas de trabalho infantil as centenas de pessoas que tuitaram suas
experiências a pedido do filho deputado do presidente.
Vítima de
trabalho infantil é a meninada que vende bala nos semáforos das cidades
brasileiras, que cata lata nos litorais do nosso País, que corta cana debaixo
de sol escaldante. Vítima de trabalho infantil são as 2,4 milhões de crianças
exploradas País afora, segundo os mais recentes dados da OIT. Cabe lembrar,
tuítes à parte, que o Estado brasileiro se comprometeu a erradicar a violação
de direitos da criança e do adolescente por meio da exploração laboral até 2025
– faltam menos de 6 anos para terminar o prazo.
Nesses
tempos de fios desencapados, em que as descargas elétricas parecem provocar
convulsões intelectuais em quem deveria ter preparo suficiente para separar os
mais abjetos absurdos da mera ignorância, está difícil usar valores morais para
convencer as pessoas dos malefícios de certos argumentos. Valores morais
universais foram atropelados pela ideologia e, nesse momento, estrebucham nos
grupos de família de WhatsApp, nas redes sociais, na briga constante como forma
de “diálogo”. Nesse ambiente, a única forma de trazer alguma racionalidade para
a discussão é colocá-la de forma fria, deixando de lado – pasmem – a
moralidade.
De forma
fria, a literatura mostra que o trabalho infantil prejudica o crescimento
econômico, ainda que possa auxiliar algumas famílias miseráveis no curto prazo
– e mesmo essa premissa é questionável diante dos dados. Ao competir com a
educação, o trabalho infantil impede que as crianças cresçam para se tornarem
adultos com mais escolaridade, e, portanto, mais produtivos e com maiores
chances de obter empregos que ofereçam salários melhores do que a renda de seus
pais. Ficam essas crianças, quando adultas, presas em ciclo de pobreza quase
perpétuo, o que pode aumentar o grau de desigualdade de renda de um país, para
não falar da falta de acesso a qualquer outra oportunidade que favoreça o desenvolvimento
econômico. Países que utilizam trabalho infantil geram desincentivos ao
investimento e ao aprimoramento produtivo, já que há um recurso barato em
abundância – as crianças.
Cabe a
todos aqueles com espaço nos jornais o esforço de encapar fios constantemente
para que a ignomínia não resulte na regressão autodestrutiva.”
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