“Os
desmemoriados
Por Leandro
Karnal
Dia desses meu
celular me avisou: memória cheia. Tive que carregar na nuvem parte das fotos e
vídeos, descarregar muitos textos e aulas no HD físico de meu computador
portátil. O mesmo smartphone que sofre com excesso de informações consumindo
sua memória me alerta, todos os dias, para o uso da bateria, que se esvazia.
Pus-me a pensar sobre como o aparelho é uma metáfora ou, talvez mais
propriamente, um sintoma do que vivemos. Vivemos cheios de memória e nos
arrastamos, sem muita energia, procurando uma fonte que nos recarregue.
O problema da
memória sempre me fascinou. Em nossa história primitiva, não havia suporte para
a memória. Existia, apenas, a tradição oral, os saberes passados de geração em
geração. Quando morria um ancião, morria uma fonte de memória. Conhecimentos
não transmitidos poderiam se perder. A carga do que podíamos aprender era
limitada a nossa capacidade de memorizar e reinventar dados e narrativas.
Os antigos, ao
inventarem os diversos alfabetos, criaram poderosos mecanismos de suporte para
aquilo que antes encontrava o limite de nossas sinapses. A escrita abriu a
memória, pois em papel, papiro, pedra ou couro, podíamos anotar nossos
conhecimentos, impressões do mundo, histórias, ciências e deuses.
Um universo de
expansão da memória estava potencialmente em nossas mãos. Mas estava restrito a
uma minúscula camada das sociedades que dominavam essa técnica preciosa. No
Egito, escriba era profissão que se passava de pai para filho. Saber ler era
segredo de Estado, de religiões. Ler era fonte de poder. Alheio à mágica da
palavra registrada, o mundo continuou profundamente dependendo da memória
possível de nossos cérebros.
Criamos palácios
da memória, formas e técnicas de adestrar nossa capacidade de guardar
informações e mobilizá-las quando necessário. Tutores gregos e romanos exigiam
que seus pupilos decorassem longos trechos de poesias. O máximo que se tinha
era o auxílio de um antepassado do caderno, feito de tábuas de madeira com
cera, sobre a qual, por meio de um estilete, tomavam-se algumas notas.
Memorizadas, a cera era raspada, apagando-se a informação anterior. Tábula rasa
é expressão usada até hoje.
Acreditavam os
antigos que a memória dependia do músculo cardíaco e saber algo de cor (em
inglês, by heart; em francês, par cœur) manteve algo dessa crença.
A popularização
da escrita foi lenta e sua massificação é muito recente. Continuávamos
dependendo da nossa própria memória. A imprensa foi um enorme impulso e, com
essa máquina, revoluções ocorreram. A ciência se expandiu sobre moldes
matemáticos, conhecimentos de todo o mundo passaram a circular com maior
rapidez. Iniciavam-se os tempos modernos. Por outro lado, manteve-se certo
caráter sagrado da palavra escrita. Pessoas carregavam pedaços de oração ou
bendizeres como amuletos de proteção. A pílula de Frei Galvão tem lastro nessa
transição do medieval para o moderno.
Quando as
revoluções midiáticas explodiram no século 19 e, com potência inaudita, no 20,
a memória começou a se divorciar de nossos cérebros. Telégrafo, telefone,
cinema, TV, rádio. A quantidade de informação circulando, que já não caberia
numa única cabeça humana, nem na mais treinada delas, superava a soma de todas
as nossas cabeças juntas.
Os cientistas
que estudam fluxo de informações pensam que os intervalos geracionais quase
intransponíveis entre avós e netos se devem ao fato de que, em duas gerações, a
quantidade de informação entre eles cresceu de forma vertiginosa. Se alguém,
jovem ou mais velho, deixa de acompanhar o mundo, por opção ou por falta dela,
é atropelado por ele. A escola transmite todo o conhecimento acumulado em
milênios de humanidade em 25 anos, da alfabetização ao fim de uma graduação.
Enquanto realiza esse processo, mais e mais informação foi criada. O processo
não tem fim. Nossa pobre memória vive cheia, inundada, açodada. E não temos
nuvem, backup ou HD externo.
Dependemos de
nós mesmos, de uma única e maravilhosa ferramenta evolutiva: o cérebro. Não à
toa temos a sensação de cansaço, de que nossas baterias estão no fim. Antes da hora
do almoço, já não há energia para o resto do dia. Enquanto isso, lá vem o
celular avisar que mais informações foram carregadas e que você precisa ver
todas elas.
No Egito, o deus
da escrita é Toth, com cabeça de babuíno ou do pássaro íbis. Quando ele deu aos
homens o código para registrar tudo em papiros, lançou uma advertência: “Tudo o
que vocês escreverem esquecerão”. Sim, no momento em que a memória encontra um
suporte e o cérebro ganha um auxílio, parece que a praga divina do Nilo
acontece. Ninguém mais sabe números de celulares, pois estão escritos.
Advertência sábia da entidade divina.
Somos a geração
com mais suportes de memória e que não lembra de nada, afogados em nossos
celulares que demandam tudo e nos oferecem uma vida com amnésia digital.
Milhões de terabytes flutuando ao nosso redor, milhares de tomadas e cabos,
centenas de recursos, muitos aparelhos e... não conseguimos mais lembrar de um
simples aniversário importante se nossa rede social não advertir com ênfase. A
praga de Toth é total. Somos precoces desmemoriados. É preciso ter esperança, e
alguma memória.”
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