“A face oculta de Bolsonaro
Por José Nêumanne
Nos 200 dias de governo do capitão reformado e deputado
federal aposentado, além do Bolsonaro óbvio das declarações sobre o Nordeste
reduzido a “paraíba” e da insistência descabida em fazer o filho caçula
embaixador em Washington, há outro, cuidadosamente escondido para evitar
perdas. Por falta de espaço nesta página e excesso de exposição de seu acervo
de frases infelizes, convém tentar lançar uma luz sobre o que ele,
subordinados, prosélitos e fanáticos não conseguem mais esconder de sua face
oculta.
Aos 23 dias iniciais do mandato, Bolsonaro disse a um
repórter da agência Bloomberg em Davos, na Suíça: “Se, por acaso, ele (o filho
Flávio) errou e isso ficar provado, eu lamento como pai, mas ele vai ter que
pagar o preço por essas ações que não podemos aceitar”. De volta ao Brasil,
contudo, tirou a máscara de “isentão” (definição preferida de outro filho,
Carlos, para desqualificar quem ouse discordar após concordar com algo) para
fazer exatamente o contrário. Após decisão do presidente do Supremo Tribunal
Federal (STF), ministro Dias Toffoli, proibindo o compartilhamento de dados da
Receita Federal, do Banco Central e do Conselho de Controle de Atividades
Financeiras (Coaf), com Ministério Público Federal (MPF) e Polícia Federal
(PF), ele até tentou escapulir de comentar, argumentando: “Somos Poderes
harmônicos independentes. Te respondi? Ele é presidente do STF. Somos
independentes, você acha justo o Dias Toffoli criticar um decreto meu? Ou um
projeto aprovado e sancionado? Se eu não quisesse combater a corrupção, não
teria aceitado o Moro como ministro”. Mas terminou deslizando em truísmos e
platitudes, ao afirmar: “Pelo que eu sei, pelo o (sic) que está na lei, dados
repassados, dependendo para quê, devem ter decisão judicial. E o que é mais
grave na legislação. Os dados, uma vez publicizados (sic), contaminam o
processo”. O quê?
O feroz cobrador das falhas do PT não explicou por que o
caçula interrompeu o inquérito, em vez de provar inocência.
A revista Crusoé, do site O Antagonista, revelou que
clientes da banca da mulher de Toffoli, Roberta Rangel, do qual este foi sócio,
foram procurados pela Receita para explicar depósitos. Dias antes um colega por
quem o presidente do STF tem manifestado apreço (e vice-versa), Gilmar Mendes,
comparara o MPF e a PF à Gestapo, polícia política nazista, após averiguações
sobre a contabilidade da banca de Sérgio Bermudes, de quem sua mulher, Guiomar,
é sócia. Essa descoberta pode lançar um véu de suspeição sobre a decisão de
Toffoli de suspender todos os inquéritos (segundo consta, 6 mil) de lavagem de
dinheiro no País. Mas não altera a origem da decisão, tomada a partir da defesa
de Flávio Bolsonaro.
Pode ser mera coincidência, até prova em contrário, mas o
fato é que recentemente, a pretexto de reclamar de uma decisão do STF
criminalizando a homofobia, o presidente, do alto de sua prerrogativa de
indicar os membros do colegiado, queixou-se de não haver ali um ministro
“terrivelmente evangélico”. Na segunda vez o fez saudando um dos ministros numa
reunião com vários membros de titulares na Esplanada dos Ministérios, o
advogado-geral da União, André Mendonça. Na última vez em que apelou para a
expressão, originalmente usada pela ministra da Família, Damares Alves – uma
impropriedade, pois “terrível” é definido no Houaiss como algo “que infunde ou
causa terror” –, em 11 de julho, disse que ele é cotado para preencher essa
lacuna, 16 meses antes da prevista aposentadoria do decano, Celso de Mello. Não
seria o caso de indagar se é hora de tratar do assunto antes de ser aprovada a
reforma da Previdência, tida e havida como a primeira providência a ser tomada
para destravar a economia e reduzir as mais relevantes taxas de desemprego?
Aos 46 anos, há 19 na Advocacia-Geral da União (AGU),
Mendonça está longe de ser popular como Moro e Bretas.
De Mendonça só se sabe que dirigiu o Departamento de
Patrimônio Público e Probidade Administrativa da AGU, indicado pelo presidente
do STF, antes de migrar para a Controladoria-Geral da União, no governo Temer
(!), representando a AGU em acordos de leniência com empresas acusadas de
corrupção. Dali foi promovido a advogado-geral por Bolsonaro, que o anunciou em
novembro. Segundo fontes ouvidas pelo UOL, o presidente do STF já trabalha pela
aprovação dele na sabatina do Senado, caso seja indicado para o STF.
Sua conexão com o PT, do qual o ex-advogado-geral foi
subordinado em toda a carreira, é revelada em artigo publicado na Folha de
Londrina de 30 de outubro de 2002, resgatado pela repórter Constança Rezende,
do UOL. No texto Mendonça não cita o nome de Lula, mas afirma, três dias após a
vitória do petista, que o triunfo “enchia os corações do povo de esperanças”.
Além disso, escreveu à época que as urnas haviam revelado “o primeiro presidente
eleito do povo e pelo povo”. “O fato é notório e não admite discussões e assim
o coração do povo se enche de esperança, o mundo nos assiste com um misto de
surpresa e admiração, embora alguns confiem desconfiando, mas certamente
convictos que o Brasil cresceu e seu povo amadureceu, restando consolidada a
democracia não só porque o novo presidente foi eleito pelo povo, mas porque
saiu do próprio povo”. Criacionista, ele diz respeitar quem não é, mas no texto
revela dogmas sobre os quais “não admite discussões”. Tolerante até a página 2.
Pode-se dizer que o também pastor presbiteriano nunca foi
ingrato. Mesmo já estando sob ordens de Bolsonaro, foi o único chefe de uma
instituição importante relacionada ao Direito a assinar parecer defendendo o
decreto do padrinho para impedir críticas a seus pares (além de censurar a
Crusoé) e a compra por este de lagostas e vinhos premiados para os banquetes da
casa. Só em 16 meses o Brasil saberá se, de fato, a espécie não evoluiu e se
Darwin, afinal, tinha ou não razão.”
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