Por Zezinho de Caetés
Dias atrás eu me candidatei para receber uma “newsletter”, que é o nome que se dá,
modernamente, a um e-mail mais sofisticado, de autoria do Pedro Doria, com que
tenho aprendido muito sobre História.
E neste início de semana, depois de vermos tantas delações, eu
recebi uma delas que gostei tanto que resolvi transcrevê-lo abaixo, na
esperança de que o autor não me enquadre nas Ordenações Filipinas ou
Manuelinas, pelo uso de suas ótimas palavras.
O texto tem como título: “Um estupro brasileiro”, e vem a calhar (deve ter sido escrito por
este motivo) da notícia sobre o “estupro
coletivo” acontecido no Rio de Janeiro, que até tirou do ar, por algum
tempo as delações do Sérgio Juruna Machado, que não sabemos onde irão parar.
Eu mesmo, já confesso aqui que estou com medo de ser o
próximo a ser citado nas delações porque tenho me reunido com pessoas muitas
vezes desconhecidas, e, quem sabe, o Juruna não é um deles? E como todos já
devem saber, quando me reúno é para falar mal do Lula, da Dilma e do PT, como o
fazem 90% dos brasileiros que conhecem um pouco de história.
Mas, passemos ao tema do texto de hoje. E é hoje que sabemos
que, no Brasil, os direitos das mulheres aumentaram tanto que o nosso
presidente Temer pisou na bola em não nomear pelo menos uma para o seu “machistério”. É claro que não precisaria
ser a Erenice Guerra, mas...
De qualquer forma, mesmo tendo uma mulher que causou o maior
desastre na economia brasileira desde que, que Cabral aqui aportou, como
ex-presidenta, não se deve dizer que foi o gênero que determinou isto, e sim a
ideologia lulo/petista, que felizmente, tende a nos deixar, brevemente. Apenas
complemento que seria um erro também trazer a Dilma de volta só porque é mulher.
Afinal de contas o impeachment é diferente do estupro, como pode ser aprendido
no texto do Pedro Dória, abaixo transcrito.
Apesar de já possuir vários anos de idade, com todos os
preconceitos inculcados na minha infância interiorana, fui suficientemente bem
educado e formado para acreditar que devemos ter direitos iguais como seres
humanos que somos. E, se verdade, o que contam do “estupro coletivo” pelo qual passou uma jovem de 16 anos, no Rio,
voltamos vários séculos na história e muitos anos antes das “ordenações”, que foram nossas primeiras
leis.
Agora fiquem com o Dória e aprendam, para não repetirem, nem
mesmo como farsa, a nossa história de injustiça com o sexo feminino. Mas, tenho
que enfatizar bem que impeachment não é estupro, e muito menos coletivo. No
caso de Dilma, é apenas um avanço na política brasileira.
“Desde que há Brasil, este país inventado a partir de 1500, há crime de
estupro previsto em lei. As Ordenações Afonsinas, o código legal que durou até
1513, explicavam como a vítima deveria se portar para registrar queixa.
Que se alguma mulher forçarem em povoado, que deve fazer querela em
esta guisa, dando grandes vozes, e dizendo, ‘vedes que me fazem’, indo por três
ruas; e se o assim fizer, a querela seja valedoura: e deve nomear o que a
forçou por seu nome.
Estar previsto por lei, porém, é coisa que ilude. Estupro foi
compreendido de muitas formas, punido noutras tantas e evoluiu de forma muito
lenta até a legislação atual. A história desta evolução diz muito sobre o
Brasil.
As “ordenações” eram compilações. A reunião de todas as leis que um rei
considerava válidas. Valeram as de dom Afonso V por um tempinho e, depois,
passaram a vigorar as Ordenações Manuelinas, editadas pelo rei que liderou o
descobrimento. Em 1605 mudou de novo e vieram as Ordenações Filipinas, de
Filipe II da Espanha. Tempos de União Ibérica. Mesmo quando o duque de Bragança
reconquistou a independência portuguesa, o código foi mantido. É o pacote legal
que valeu por todo o período de formação do Brasil, começou a mudar após o
Império mas manteve-se parcialmente em vigência até princípios do século 20.
Assim, no tempo de Cabral, a mulher estuprada tinha de ter presença de
espírito para, imediatamente após o ato, sair gritando pelas ruas que fora
vítima do crime e, se possível, citando o criminoso. Talvez muito machucada, possivelmente
em choque, e ainda assim obrigada à exposição pública. Se soa bárbaro, piora.
Porque para compreender a lei é preciso entender, antes, o lugar do homem e o
da mulher naquela sociedade.
Veja-se o caso de outro crime sexual previsto pelas Ordenações
Filipinas, o adultério. A lei autorizava o marido de uma mulher adúltera que
matasse tanto ela quanto seu amante desde que fossem, tanto marido quanto
amante, de classe social equivalente. Um homem do povo não poderia matar um
fidalgo, embora pudesse requerer dele uma indenização. Tratava-se de um crime
de honra. A indenização ou a morte restabeleciam, perante a sociedade, a honra
do homem traído. A mulher adúltera, não importava sua classe social, também
perdia a honra. Só que de forma irrecuperável. Se o marido traído por adultério
poderia perdoar sua mulher, esta era uma escolha dele e apenas. A relação,
dentro de um casamento, foi legalmente desigual por quase toda história. O
marido tinha poder de vida e morte sobre sua mulher e, assim, ele tinha como
recuperar a honra. Ela, não. Nem se adúltera, tampouco se estuprada. Não
bastasse a violência, a honra da mulher era perdida para sempre. Uma marca
indelével. Não à toa, muitas vezes era preferível não acusar o criminoso para
evitar a exposição.
E, sim, é claro que piora. Se alguma mulher for corrupta de sua
virgindade por força, de noite ou de dia, bradasse logo no dito ermo: ‘fuão me
fez isto’, mostrando logo sinal de corrompimento de sua virgindade. Fuão, a
versão arcaica da palavra fulano, dizia a lei Filipina, precisava ser acusado
de presto. O brado em público imediato tinha razão de ser. Era para permitir a
possibilidade de flagrante. A Igreja Católica, origem indireta das leis,
desconfiava da mulher. Ela perdia a honra mais fácil e era vista como pouco
confiável, um tipo humano cheio de subterfúgios, essencialmente traíra. O crime
não podia ficar apenas na palavra de algoz contra vítima pois a palavra da
mulher valia menos. O receio é de que, para prejudicar bons homens, mulheres
pudessem levantar falsas acusações de violência. Assim, para haver estupro, era
preciso que antes a mulher fosse virgem. Estupro marital era conceito
inexistente. E uma mulher solteira que já não fosse virgem não tinha honra para
que a perdesse.
Porque o crime não era contra o ser humano. Era contra uma entidade
abstrata que o ser humano porta: sua honra.
A definição de estupro, portanto, era bem distinta da atual. A mulher
era propriedade do marido. Mesmo que casasse por desejo de seu pai quase
criança, logo após a primeira menstruação. Uma escrava era propriedade do
senhor. Em nenhum destes casos poderia uma relação sexual ser considerada
crime. Não havia violação da honra mesmo que houvesse violência.
A vida prática, na colônia, forçava que todos relaxassem a lei. O
número de mulheres brancas era muito menor do que o de homens na composição da
elite. Em Minas Gerais, centro econômico do país durante quase todo o século
18, metade dos habitantes eram escravos. Em 1776, 60% da população era composta
por homens. Mulheres brancas compunham apenas 8% dos mineiros. Boa parte dos
casamentos entre pessoas livres, portanto, não se dava no papel e os
relacionamentos estáveis entre homens brancos e mulheres negras eram a regra,
não a exceção. O poeta inconfidente Inácio José de Alvarenga Peixoto casou-se
com uma moça tida como uma das mais belas da elite local, Bárbara Heliodora,
descendente dos bandeirantes que descobriram o ouro. Já tinham filhos quando
finalmente um padre amigo os casou. Outro poeta revolucionário, Tomás Antônio
Gonzaga, engatou uma longa relação com Maria Joaquina Anselma de Figueiredo,
loura disputadíssima em Vila Rica. Teve com ela um filho e lhe dedicou alguns
dos mais bonitos poemas de amor em português. Os historiadores a apelidaram de
Marília loura, por ser uma das duas inspiradoras do Dirceu que ele encarnava em
versos. Gonzaga era o número dois da administração portuguesa em Minas. Quando
o número um, o governador Luís da Cunha Meneses, se mostrou interessado,
Anselma virou as costas para o poeta. E este, com raiva, escreveu contra seu
adversário as Cartas Chilenas nas quais Meneses se torna o corrupto governador
Fanfarrão Minésio. A moça também teve com o segundo namorado outro filho. Nada
disso era segredo na capital da província, e a atual Ouro Preto era a maior
cidade das Américas. O terceiro poeta, Cláudio Manuel da Costa, jamais casou no
papel, mas passou a vida com Francisca Arcângela de Sousa, uma escrava
alforriada com quem teve cinco filhos. Xica da Silva, no Arraial do Tejuco,
atual Diamantina, pode parecer exceção, mas não era. Metade das casas daquela
cidade pertenciam a mulheres que haviam nascido escravas e se envolveram com
homens da elite, quase sempre mais velhos, e que lhes deixavam por herança
filhos, dinheiro e propriedades.
É impossível julgar, em cada um destes casos, onde há amor e onde há
violência. Pois, em troca de sexo, garantiram cada uma destas mulheres não só
deixar a senzala, com uma vida mais digna para elas e os filhos.
Embora a letra dura da lei fosse rígida, o conceito de honra e da
liberdade sexual tinha sua fluidez, principalmente no povo, mas até mesmo na
elite. Quem sofria particularmente eram as crianças. Quando engravidavam fora
do casamento, as mulheres da elite sumiam por um tempo e os bebês recém-nascidos
eram colocados nas rodas de expostos de conventos, dados sem muito destino. O
primeiro filho de Anselma foi dado a um casal para que o criasse. Quando ela
engravidou de Cunha Meneses, o governador a fez se casar com um militar, a quem
subornou para assumir a criança. Mulheres negras que porventura ganhassem a
alforria sem casar com o antigo senhor tinham só um jeito para o sustento:
oferecer o corpo. Em muitas formas que não apenas o estupro, dos mais pobres
aos mais ricos, a violência sexual contra a mulher era a norma.
A violência ligada ao sexo, por séculos, foi o pano de fundo do
cotidiano brasileiro.
Quem é a vítima?
O estupro só ganhou o nome de estupro em 1890, quando o Brasil já era
republicano. Permaneceu um crime que atingia a “segurança da honra, honestidade
das famílias e do ultraje público”. Em 1940, modernizada, a lei o enquadrou
entre “os crimes contra os costumes”. Ou seja, o crime ainda não era contra sua
vítima e sim contra os valores da sociedade.
É a marca afonsina. Filipina. Colonial. Imperial. Chocantemente velha.
A vítima não sofre pela violência brutal. Sofre pelo que vão pensar dela. Uma
mulher desonrada.
A civilidade só veio em 2009, quando o Código Penal enxergou estupro
como um crime “contra a dignidade sexual”.
Contra a dignidade humana.
Faz sete anos. E isso diz muito sobre nós.
Quando se duvida do estupro de uma adolescente porque é ativa
sexualmente, há motivo. Por quase toda a história, mulheres que não tivessem um
comportamento casto e submisso eram mulheres de quem se deve desconfiar. 450
anos de Brasil pesam sobre nós. Sobre como pensamos. Sobre nossos costumes.
É assim que nasce a cultura do estupro.”