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quarta-feira, 25 de março de 2020

O baixo mundo





“O baixo mundo
      
Por J.R.Guzzo

O Brasil está divido por uma guerra cada vez mais aberta, indigna e agressiva entre dois países. Na verdade, só um país move essa guerra; o outro, sem defesa, apenas sofre as misérias que vêm dela. Basicamente, o país agressor, que se recusa a qualquer trégua, é o Brasil onde habitam, prosperam e mandam os membros das nossas “instituições”. O país agredido é aquele onde você, e cerca de 200 outros milhões de brasileiros, têm de trabalhar todos os dias para viver e sustentar suas famílias; sua única função, para o outro Brasil, é pagar impostos que vão sustentar cada um dos seus confortos, necessidades e caprichos. Neste ano de 2020, antes da epidemia, estava previsto que o total a ser pago seria de 3,4 trilhões de reais – isso mesmo, trilhões, arrancados do seu bolso a cada chamada de celular, cada litro de gasolina comprado no posto, cada real que você ganha, num arco que só acaba no infinito.

A última agressão vem do Supremo Tribunal Federal, que tem a folha corrida que todos conhecem, e do “Tribunal Superior Eleitoral” – um desvairado cabide de empregos que só existe no Brasil e não tem função lógica nenhuma no serviço público. Suas Excelências, justo numa hora dessas, em que o Brasil sofre um dos mais chocantes dramas de saúde de sua história e se desespera em busca de recursos para combatê-lo, tiveram a ideia de pagar com o dinheiro do contribuinte suas vacinas contra a gripe e o coronavírus. Não só eles: eles, seus filhos e funcionários da nossa corte suprema. Serão, pelos cálculos iniciais, 4.000 vacinas, a um custo de R$ 140.000. O TSE, de imediato, copiou os colegas e já está se preparando para comprar 1.100 vacinas para si próprio; devem queimar nisso mais uns R$ 75.000.

O dinheiro é uma mixaria, dizem eles, mas a atitude moral dos ministros é uma calamidade. Com todos os privilégios que já têm, por que não pagam eles mesmos esses trocados? A resposta é um retrato perfeito dos dois Brasis descritos acima: não pagam porque podem meter a mão no seu bolso, de onde sai o dinheiro de todos os impostos, e tirar o dinheiro de lá. Não vai acontecer nada, vai? Então porque gastar, mesmo um centavo, se existe um país inteiro para pagar as suas contas?

A um certo momento, nessa crise toda, foi sugerido, imaginem só, que deputados e senadores, dessem para o combate ao coronavírus uma parte dos bilionários Fundos Eleitoral e Partidário que criaram para doar dinheiro a si próprios – tirado, é óbvio, dos impostos pagos por você. Santa inocência. Não deram, é claro, um tostão furado para combater doença nenhuma. Estás na fila do SUS há 12 horas esperando um atendimento que pode vir ou não vir, bonitão? Problema seu. No nosso ninguém tasca. E tratem de dar graças a Deus porque ainda não tivemos a ideia de lhe tomar mais uns trocos para fazermos nosso estoque de vacinas – como fizeram as maravilhosas instituições judiciárias aí do lado.

Este Brasil que está em guerra com os brasileiros é hoje um dos maiores concentradores de renda do mundo. Não são os “ricos”, os “empresários”, “o 1% do topo”, etc. que constroem a miséria nossa de cada dia. Não são eles os promotores da desigualdade em estado extremo no País. Não são eles que os impõem a ditadura dos privilégios. É essa gente que não admite, sequer, pagar a própria vacina. A imprensa faz esforços inéditos, todos os dias, para defender essa gente, pois são eles que compõem as “instituições”. E o que os jornalistas recebem em troca de congressistas e magistrados? Atos de crocodilagem explicita, um atrás do outro. Fica cada vez mais difícil achar alguma virtude nesse baixo mundo.”

terça-feira, 24 de março de 2020

A primavera troglodita





“A primavera troglodita
      
Por Leandro Karnal

O corpo precisa ser domesticado e curvado às regras de civilidade. A Idade Moderna trouxe esse imperativo para as rodas aristocráticas. O livro O Cortesão (de B. Castiglione), os grandes manuais de etiqueta, as normas sobre comportamento à mesa, o uso do lenço, a conversação agradável: tudo chega ao máximo com o ordenamento que terá por centro o palácio de Versalhes e o rei Luís 14. Terminado o Antigo Regime, a burguesia assumiu a demanda pela polidez necessária que a tornaria distinta da massa. Surgem escolas de boas maneiras e novos manuais sobre receber.

O homem do século 21 é um paradoxo. As normas da etiqueta existem e foram atomizadas. A civilidade continua sendo um esforço de mães, pais e professores. Porém, há algo de podre no reino da Dinamarca. O troglodita está na moda. Usando um neologismo de sonoridade explosiva, a “tosquice” é trending topic. Dizer o que se pensa de forma grosseira, emitir piadas sobre o baixo corporal, assumir preconceitos: tudo parece representar a derrota do esforço de meio milênio na domesticação do selvagem social. Haveria explicações?

Vou lançar hipóteses para o debate. A raiz da contestação pode estar no próprio processo de civilidade. Produzir o homem aceitável da corte, o cavalheiro perfeito, a dama refinada, os gestos e procedimentos adequados implicou repressão e uniformização. Repressão de sons corporais, contenção de impulsos violentos e defesa de modos padronizados. A aristocracia desenvolveu a arte da etiqueta. A burguesia a imitou longamente, com o embaçamento natural de todo espelho imperfeito. Depois de séculos de produção/imitação, existe uma vontade de naturalidade, de libertação de amarras, de combate a cânones. É visível a rebeldia. Muitos duques e baronesas alcançaram a cobiçada sprezzatura, o refinamento demonstrado sem afetação ou sinal de esforço. Os êmulos das classes médias estavam um pouco distantes, porém atentos.

O aristocrata deveria ser educado sem nunca trazer à tona os andaimes, o esforço, o suor que custou o gesto ou a fala. Metaforicamente, sprezzatura é erguer o peso na academia sem gritar. Nem todos conseguem. O preço sempre foi a afetação, ironizada desde Molière até a série Anne with an E na Netflix. No drama sobre o Canadá do fim do século 19, uma pretensiosa senhora exige que suas filhas, candidatas a damas, andem com livros sobre a cabeça. Na televisão é clara a crítica: os gestos são ridículos, produzem gente infeliz e caricata, eliminam a alegria e traduzem apenas um falso fidalgo, como o Monsieur Jourdain da peça que tanta graça provocava na corte do Rei-Sol. Ser adepto do teatro da etiqueta seria, no mínimo, hipocrisia. Libertar-se das normas? Pura liberdade! Aqui começa o derretimento das geleiras das convenções e floresce a primavera do troglodita.

Há outros fatores. Políticos foram retratados universalmente como mentirosos. Diriam apenas o que agrada ao eleitor, esconderiam suas intenções, sorririam quando desejassem bater e elogiariam quando seu eu interno adoraria insultar. Alguns políticos de esquerda e de direita passaram a utilizar recurso oposto. Querendo marcar uma nova fase, trouxeram ao público o falar direto, muitas vezes grosseiro e sem nenhuma concessão ao que consideram politicamente correto. Pode ser um democrata como o presidente L. Johnson dos EUA (governou de 1963 a 1969). Querendo superar o sorriso permanente e aristocrático do seu antecessor e aliado, emitia opiniões que fariam corar estivadores experimentados. Era o texano sulista, o americano médio sem os salamaleques dos milionários Kennedys. Antes do presidente dos EUA, Stalin e seus bolcheviques já tinham se notabilizado pela recusa de um código da nobreza czarista. O georgiano se orgulhava de ser direto, usar termos chulos e ser pouco afeito ao mundo da corte.

O novo populismo de direita tornou quase ordinária a grosseria e fez dela um apelo ao homem comum, desconfiado dos bons modos tradicionais. É o caso de Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil, Putin na Rússia, Duterte nas Filipinas e Orbán na Hungria (lista bem incompleta). O discurso direto, a recusa do cerimonialismo do cargo, atitudes grosseiras e vulgaridade declarada quando descrevem a oposição e a imprensa: são sintomas de uma nova primavera do troglodita. No Brasil já foi dito que é o “tiozão do churrasco”, o convidado de meia-idade, preconceituoso, de inteligência mediana e que não consegue evitar a piada infame quando é servido o pavê ou quando um rapaz da família chega à idade de 24 anos. É mais forte do que tudo e ele solta o petardo idiota e agressivo. Quero enfatizar que, apesar de ser difundida entre populistas ditos conservadores, a grosseria é ambidestra. Identifiquei Stalin. Lembro-me de piada infame de Lula em Pelotas ou de referência do ex-presidente a uma parte da genitália feminina que ele indagava se não haveria mulheres no partido que a apresentassem de forma muito sólida. É o troféu tiozão grau platinum. Collor bradou ter “aquilo roxo”. Quero reforçar: a primavera tosca brilha sobre a destra e a sinistra...

Identifiquei que a liberdade de expressão passou a ser entendida como sinal verde para agressão (primeira origem). Depois, levantei a ideia de que o combate a elites tradicionais e refinadas com a busca de identidade com um suposto “homem comum” tenha surgido como arma política em muitos políticos de esquerda e de direita. Eis duas curtas hipóteses. Voltarei ao tema. Lembro para encerrar: o oposto à grosseria não é a mentira, mas é o cuidado em não universalizar seus próprios limites e preconceitos. Boa semana de quase outono.”

segunda-feira, 23 de março de 2020

Um governo bifronte





“Um governo bifronte
     
Por Bolívar Lamounier

A verdade é que temos dois governos. Um no rumo certo, sério e competente, personificado pelos ministros da Economia e da Saúde, principalmente. Outro, populista e irresponsável, personificado pelo presidente Jair Bolsonaro, vez por outra coadjuvado pelos ministros da Educação e das Relações Exteriores.

De fato, 15 meses não foram suficientes para Jair Bolsonaro nos tranquilizar quanto à sua compreensão dos requisitos básicos do cargo para o qual foi eleito e da crítica situação que estamos vivendo. Sua subestimação da seriedade da pandemia de covid-19 volta e meia nos traz à memória um fato de dez anos atrás: a hilária referência de Lula à crise financeira que se avizinhava. Da subestimação decorreu a convocação de manifestações de apoio à sua pessoa e de pressão sobre o Legislativo e o Judiciário. Há quem afirme que ele não fez tal convocação, que elas teriam sido espontâneas, ou, então, que ele as convocou e depois desconvocou. Acontece que em política é possível dizer algo sem dizer nada, ou até dizendo o contrário do que se pretende. Para mim, ele as convocou na base do “bem me quer, mal me quer”, deixando espaço para recuar quando isso lhe parecesse taticamente conveniente.

Mas isso é o de menos. Fato é que, sendo ele o presidente da República, a atitude correta seria alertar a sociedade para o risco de aglomerações, alerta feito por seu ministro da Saúde; e fazê-lo, não em frases soltas ao vento, mas com solenidade e firmeza, em cadeia nacional de rádio e televisão. Alertar também, no que toca ao Legislativo e ao Judiciário, que a Constituição veda expressamente quaisquer ações que dificultem o adequado funcionamento dos Poderes do Estado. Não menos importante, afirmar, em alto e bom senso, como supremo magistrado, que ele não compactua com a grita de setores “sinceros, mas radicais” que exigem a derrubada das instituições representativas, qualquer que seja a avaliação de cada um sobre o presente desempenho delas.

Acrescente-se – e este é o ponto mais grave, que não deixa dúvida sobre as diferentes interpretações que se têm dado aos fatos acima mencionados – que Jair Bolsonaro não se contentou em saber pela imprensa ou pela internet que uma parcela da sociedade parecia (ou parece) aderir ao seu não convocado “queremismo”. Não. Cedendo ao cerne populista que informa seu modo de sentir a política, ele desceu a rampa a fim de cumprimentar um grupo de manifestantes, trocar apertos de mão e tirar algumas selfies, descumprindo de modo flagrante as recomendações de todas as organizações nacionais e internacionais e de seu próprio ministro da Saúde, que ora, angustiadamente, se empenham no combate ao coronavírus.

A bem da justiça devo repetir que a outra metade de seu governo tem demonstrado seriedade e competência, mas em relação a ele, Jair Bolsonaro, sou forçado a reiterar o que afirmei no início: até o momento, ele tem se comportado como um político populista e irresponsável. E a reiterar também minha dúvida sobre sua compreensão dos requisitos básicos da posição que ocupa e dos dramáticos desafios que ora ameaçam nossa existência como povo.

Não voltarei ao coronavírus, voltarei à estúpida polarização que se configurou desde a eleição de 2018. O famigerado recurso ao “nós contra eles” cultivado por Lula e pelo PT metamorfoseou-se em coisa pior: o bolsonarismo acima de tudo e contra todos os outros. Ou seja, uma divisão vertical sem precedentes no País, como se fôssemos dois povos, contrapostos e antagônicos. Cada um com seus slogans, sua raiva e seus panelaços. Quem não apoia o “mito” é comunista, é de esquerda, é tucano, ou tudo isso ao mesmo tempo, ou coisa pior. É liberal, outro grave xingamento, não obstante o ministro da Economia se identificar como tal e estar tentando implementar reformas sabidamente indispensáveis, e inequivocamente liberais. Orientado, ao que tudo indica, pelo sábio da Virgínia, o clã Bolsonaro vê-se como um Dom Quixote de lança em punho, pronto para extirpar uma imaginária hegemonia de esquerda que se teria instalado entre nós desde a Contrarreforma e no bojo do patrimonialismo português, perdurando e se fortalecendo mesmo durante os 21 anos de governos militares.

Tivesse ele uma compreensão mais adequada de sua posição como supremo magistrado, Jair Bolsonaro já teria entendido que não foi eleito por uma seita, mas pela maioria do eleitorado; e que a função presidencial não se restringe a um grupo de seguidores, a um partido ou seita eleitoral, mas à totalidade do povo brasileiro. O palanque teve seu momento, mas não foi e não pode ser levado para dentro do Palácio do Planalto. O verbo agressivo, não raro insultuoso, tem de ceder lugar a uma fala formal, impessoal e comedida. O que temos visto, infelizmente, é o oposto. Jair Bolsonaro parece entender que seu papel é o de dividir ainda mais o País, nem que o preço seja se misturar infantilmente com a multidão, pondo em risco um número não desprezível de cidadãos.”

quarta-feira, 18 de março de 2020

Os mais odiados





“Os mais odiados
      
Por J.R. Guzzo

Tanto faz, de certa forma, quanta gente vai ou não vai para a rua, ou quantas vezes está disposta a ir no futuro mais próximo. Além e acima de tudo isso, há um fato que não muda: o Congresso Nacional e todo mundo que está lá dentro formam hoje um dos grupos de seres humanos mais odiados do Brasil. Se fizessem uma “pesquisa de opinião” perguntando ao brasileiro qual o ambiente que ele respeita mais – a penitenciária da Papuda ou a dupla Câmara-Senado – qual você acha, sinceramente, que seria a opinião da maioria?

Em 5 anos de atos 'verde e amarelo', manifestante ficou mais à direita e movimentos se distanciaram

Melhor não fazer pesquisa nenhuma, não é mesmo? A Papuda, na verdade, bem que poderia ser hoje a residência verdadeira de muitos dos nossos parlamentares – levando-se em conta que até setembro de 2019 cerca de 100 deputados, pelo menos, respondiam a ações penais no STF.

É muito ruim para a democracia de qualquer país que o Poder Legislativo seja tão detestado como o brasileiro. É muito pior, ainda, que os culpados disso sejam os próprios deputados e senadores, pelos atos que cometem e pela conduta que exibem ao público. Não é o “fascismo” que está sabotando o Congresso, nem a direita – embora existam, sim, grupos de extremistas que querem acabar com a história toda mandando para lá um cabo e dois soldados. Mas essa turma jamais seria capaz de derrubar um guarda noturno se tivesse como alvo pessoas de bem.

É o caso? Não é – e não adianta fazer de conta que é. A maioria da população, hoje, iria aplaudir se a Câmara e o Senado fossem fechados por um ato de força, ou ficariam indiferentes. Uma democracia assim está doente.

A verdade é que são eles mesmos que construíram, tijolo por tijolo, a sua imagem infame junto à maioria da população. A mídia, os partidos, as entidades que representam alguma coisa, os sociólogos, etc. se levantam indignados em defesa do Congresso. Queriam o quê? Basta ver o que fazem, no dia a dia da vida real, os deputados e senadores. Não é só a questão criminal – estão sendo processados por peculato, concussão, lavagem de dinheiro, corrupção passiva e ativa, falsificação de documento. Conseguem, até mesmo, ser acusados em ações penais por trabalho escravo. Talvez pior que isso seja a postura que, no entender das pessoas, eles têm diante do interesse público – sempre que veem alguma chance, ficam contra. Escondem-se atrás de crimes coletivos, no plenário, para saquear o País.

Os congressistas brasileiros são, eles mesmos, uma dificuldade quase insuperável para quem, honestamente, quer defender o Poder Legislativo. Às vezes, até, nem merecem a imagem que têm. Ainda no ano passado, por exemplo, aprovaram a reforma da Previdência Social, uma obra que poucos parlamentos do mundo fizeram até hoje. Mas isso já está esquecido – o que interessa é o que o povo acha deles agora. E agora, além do passivo criminal, são vistos como inimigos de tudo o que o governo tenta fazer para melhorar o País, e como bandidos que agem o tempo todo contra as mudanças que o Brasil precisa.

Nada pode ser considerado normal quando o presidente da Câmara dos Deputados faz 250 viagens em jatinhos da FAB durante o único ano de 2019 – mesmo porque uma das razões alegadas para isso é o fato de que ele não pode andar em nenhum meio de transporte público, para não ser triturado por vaias. Temos, aí, que o chefe da Casa do Povo não pode chegar a um metro do povo.

É aceitável, uma coisa dessas? Apesar de toda a sua mediocridade, que sempre funciona como um manto protetor para qualquer político, os presidentes da Câmara e do Senado estão hoje entre as pessoas mais abominadas do País. Não dá para funcionar assim – com ou sem gente na rua.”

terça-feira, 17 de março de 2020

Mussolini





“Mussolini
     
Por Simon Schwartzman

Para entender os movimentos de extrema direita que ocorrem hoje, a leitura de M - O Filho do Século, de Antonio Scurati, recém-publicado pela Editora Intrínseca, que conta a história do surgimento do fascismo na Itália, é leitura obrigatória. É um romance documental, que faz lembrar o Romance de Perón, de Tomás Eloy Martinez, publicado em 1998 pela Companhia das Letras, que merece reedição.

O fascismo surge das cinzas ainda quentes da 1.ª Guerra Mundial, com seus 11 milhões de mortos. Vitoriosa, mas economicamente arrasada, a Itália se divide entre um governo liberal, que tenta reconstituir a economia, e um forte movimento socialista que ganha cada vez mais força no campo e nas cidades. Todos anseiam pela paz, mas Mussolini, que havia começado sua carreira como editor do jornal do Partido Socialista, Avanti!, e sido expulso do partido por defender a entrada na Itália na guerra, decide abraçar a morte, a violência e o nacionalismo como formas de ação política e busca do poder.

Seus principais parceiros, no início, são os remanescentes de uma tropa de elite desmobilizada, os Arditi, treinados para assassinar os inimigos, que depois da guerra se sentem frustrados e marginalizados. Scurati os descreve como passando o tempo embriagados, nos bordéis e envolvidos em atividades criminosas. São eles que Mussolini conquista pelo seu novo jornal, O Povo da Itália, cujo tema principal é o ataque aos que se opuseram à participação italiana na guerra, e os organiza com a criação, em 1919, do Fasci Italiani di Combattimento, os Grupos Italianos de Combate, simbolizados por uma caveira, que dão início ao movimento e ao Partido Fascista.

No início, Mussolini e suas milícias paramilitares são olhados com desprezo tanto pelos liberais, que controlam o governo nacional, como pelos socialistas, que cada vez mais controlam os governos locais e ganham espaço no Parlamento. A economia do país continua estagnada, a Itália não consegue participar da partilha do mundo colonial feita pelas potências europeias e os Estados Unidos, e o exemplo da revolução russa inspira entre os socialistas a ideia de que a hora da revolução italiana também está próxima. Mussolini, no início, ainda tentou manter um discurso a favor dos operários e camponeses; e compartilhava com os setores mais radicais do partido socialista a ideia de que o regime político liberal não servia para nada, os políticos eram, na melhor hipótese, incapazes e na pior, corruptos, e só uma revolução poderia resolver os problemas do país. Ambos acreditavam, com Marx e os anarquistas, que a violência era a parteira da história.

Com o país paralisado por greves e ocupações sucessivas de terras e fábricas, os fascistas decidem se colocar como defensores da ordem e, financiados por fazendeiros e empresários, partem para atacar com violência e desmantelar os movimentos e organizações de esquerda, ao mesmo tempo que, pelo jornal, Mussolini sobe o tom na defesa da violência e do nacionalismo como os únicos caminhos para fazer a Itália voltar aos tempos gloriosos do império de 2 mil anos atrás. Na primeira eleição de que participam, em 1919, os socialistas e o Partido do Povo Italiano, católico, conquistam a maioria, os fascistas ficam totalmente marginalizados. Nos dois anos seguintes, que ficaram conhecidos como o “biênio vermelho”, a crise econômica se aprofunda, as greves e ocupações de fábricas e fazendas se multiplicam, o desemprego continua e os fascistas intensificam sua violência, com assassinatos de líderes populares e destruição das sedes das organizações locais.

Na eleição de 1921 os fascistas se aliam aos liberais e ganham, deixando os vários partidos da esquerda na oposição. No governo, a crise econômica persiste e Mussolini continua incentivando o terrorismo, com as milícias agora organizadas em esquadrões dos camisas negras. Em 1922 organiza a “marcha sobre Roma”, em que as milícias avançam sobre a capital exigindo que Mussolini seja nomeado primeiro-ministro. O governo hesita, teria sido fácil desmantelar a milícia se o exército decidisse agir, mas todos temem a confrontação. Na chefia de governo, Mussolini trabalha para desmontar as instituições democráticas, criando dentro do governo uma polícia secreta copiada da Cheka de Stalin, para dar continuidade à violência, e em 1925 assume o poder como ditador.

Mussolini não estava sozinho em seu assalto à democracia, que incluía gestos teatrais, acordos por debaixo dos panos, o uso descarado da violência contra os opositores, o uso sistemático da mentira e a traição constante a antigos companheiros. Tinha a simpatia de empresários, como Gianni Agnelli, dono da Fiat, e intelectuais e artistas brilhantes e famosos, como o filósofo Benedetto Croce, o maestro Arturo Toscanini e sua amante, a aristocrática intelectual judia Margherita Sarfatti. Para eles, o Duce tinha seus defeitos, mas havia uma causa maior, a recuperação econômica e a renovação da Itália, que tudo justificavam. Deu no que deu.”

segunda-feira, 16 de março de 2020

O diabo na rua, no meio do redemunho





“O diabo na rua, no meio do redemunho
     
Por Fernão Lara Mesquita

Viver é mais perigoso a cada minuto que passa neste mundo do coronavírus. Que fake news, que nada! Problema mesmo são as verdadeiras!

Eu mesmo já nem ouso, mas a História certamente terá muito a dizer sobre o fantástico “case” que se desenrola diante dos nossos olhos: De como a gripe menos letal das últimas décadas desencadeou uma epidemia global de super-reações de governantes tementes ao linchamento e precipitou, do nada, o maior pânico financeiro do milênio.

Não é só o Brasil. “O mundo nas juntas se desgovernou”, como o jagunço Riobaldo temia que se desgovernasse.

Um mundo onde os vírus migram dos morcegos para os humanos, do marketing para a política e dela para os mercados. Um mundo onde ficou tão mais barato fazer e entregar um discurso “customizado” a cada consumidor quanto mais caro servir-lhe qualquer coisa fora do padrão massificado da economia de escala dos monopólios planetários. Um mundo onde as “narrativas” e a realidade correm cada vez mais aceleradamente em direções opostas e a concentração do poder econômico é o efeito mais direto da desconcentração do foco do poder político.

Na louca febre das bolsas a contribuição chinesa deu-se por ricochete. Há meses o mercado procurava uma razão para uma queda. Serviu-a na bandeja a disposição das democracias ocidentais de tratar como igual o mandarim vermelho que, numa bela manhã - não porque tivesse sido instado a tanto pela ciência, mas antes porque pode fazer o que bem entender impunemente -, acordou com ganas de isolar uma megacidade inteira depois de ouvir um par de espirros.

Na China faz-se, não se discute, porque para quem vem cheio de ideias sempre há o “campo de reeducação” - agora à paisana, no meio da cidade e com cara de condomínio - ou o tiro na nuca para os insistentes. Por mais predispostos que estejamos a esquecê-lo enquanto babamos ovo para as “Muralhas da China” e os “Palácios de Verão” dos novos imperadores, o que continua sendo, lá, é o que sempre foi, só com mais dinheiro e esperança para quem conseguir manter-se vivo e em paz com o partido. As quase democracias também continuam iguais. Nunca saíram do brejo. O que vem mudando rapidamente para pior é a ponta das democracias verdadeiras.

O dado novo, que pesa decisivamente para quem vive de voto, são as “tricoteuses” da revolução das comunicações. Todo mundo tem aquele amigo, aquela amiga, com histórico de razoabilidade que, armado do seu celular, passou a comportar-se como um fanático que se ocupa com zelo religioso em fazer circular textos e imagens que não enganariam nem uma criança em condições normais de temperatura e pressão, e a pedir mais e mais “sangue”, desde as primeiras filas da guilhotina das teorias planetárias da conspiração. A “ascensão do idiota” desde que se descobriu maioria esmagadora e “perdeu a modéstia”, descrita por Nelson Rodrigues, acabou num grau inimaginável daquela “embriaguez pela onipotência numérica” que ele antecipou e temia antes do advento do mundo em rede.

No meio do caminho entrou em cena o potentado Putin jogando petróleo real no incêndio da febre que quem vive de voto vai ter de apagar. Mas antes disso o cenário de desolação já estava definido.

Houve tempo em que a notícia é que pautava os jornais. Hoje os jornais é que pautam a notícia. Uma cidade inteira sob sítio? Vale! E lá estava, mais uma vez oferecida, a janela aberta para o mundo. E havendo janela, há que haver ministro que nela se debruce e jornalista para inquiri-lo e pauteiro para encher a linguiça de cada canal melhor que a do vizinho. E como o medo é que governa os governos nesta era do apedrejamento em rede, instalou-se mais uma vez a cadeia mundial da irracionalidade: “Ele fez. Vai que eu não faço e...”.

Hoje é possível fazer um “e-comício” para cada plateia selecionada pela história das suas emoções; criar um compromisso com cada indivíduo; falar-lhe “ao pé do ouvido” de dentro do “grupo” dos seus íntimos. Mas como tratar de questões mais amplas com o necessário distanciamento num ambiente de tanta falta de cerimônia?

“Ilusão de noiva” acreditar que a supressão do intermediário especializado melhorou a relação candidato-eleitor. A tapeação agora é algoritmizável. Não precisa nem “ser artista”. Qualquer sujeito sem nenhuma graça ou talento pode enganar com eficiência científica. E se na relação intermediada pelo jornalismo o contraditório era a regra exigível cuja ausência ligava o alarme contra o enviesamento, hoje ele é o intruso expulso a socos e pontapés quando é flagrado insinuando-se numa “conversa de íntimos”.

Cada cercadinho emite e recebe exclusivamente o mesmo zurro. Complicadíssimo, portanto, não se esborrachar numa omelete andando por cima de tantos ovos. A onda do coronavírus baixaria radicalmente, mesmo assim, com uma providência simples. Se todas as vezes que a palavra chegasse a ser mencionada fosse obrigatório acrescentar a informação que lhe define a estatura - …“coronavírus, a febre chinesa da vez cuja letalidade é bem menor que a da gripe N1H1”... -, o mundo estaria, neste momento, bem menos emocionante.”

quinta-feira, 12 de março de 2020

A crise na representação que ainda assola o País





“A crise na representação que ainda assola o País
     
Por José Nêumanne

Está em plena ebulição no Planalto Central do Brasil uma luta aberta entre os Poderes Executivo e Legislativo em torno da liberação de R$ 46 bilhões, R$ 31 bilhões ou R$ 15 bilhões para emendas parlamentares que beneficiarão prefeitos e governadores estaduais sem necessidade de fiscalização. Na prática, é uma queda de braço na qual quem puder mais chorará menos. Qual das partes tem mais legitimidade para decidir sobre o Orçamento da União? Eis a questão, a ser definida por três princípios básicos da democracia: todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, todos são iguais perante a lei e cada cidadão, um voto.

Em teoria, nem deveria ser aberta a polêmica. Afinal, sabe-se que o Poder que realmente representa a sociedade não é o Executivo, que executa leis e orçamentos, nem o Judiciário, que, como determina o próprio nome, julga se a ordem dada está, ou não, dentro da lei e fiel à Constituição. Certo? Não necessariamente. Afinal, no rigor matemático dos fatos o único Poder com mandatário escolhido na base de cada cidadão, um voto é o Executivo. Seja federal, estadual ou municipal. Em mandatos de quatro anos, que só podem ser repetidos uma vez, os chefes de governos federal, estaduais e municipais passam por processos eleitorais de dois turnos para que se garanta sua legitimidade. Na aferição dos votos nas urnas eletrônicas não há dúvidas: garantida a igualdade de condições na disputa, toma posse o eleitor mais votado.

O mesmo não se pode dizer da escolha para a composição do Parlamento de 513 deputados federais e 81 senadores. Os primeiros são eleitos pelo sistema de voto proporcional. Os últimos preenchem três vagas, com oito anos de mandato, dois num pleito e um no outro, e podem ser reeleitos para todo o sempre, amém.

No caso da dita Câmara Alta o cidadão não é representado nem em teoria. Afinal, o plenário dos seniores (do latim “mais velhos”, mas nem sempre) representa cada Estado da Federação por absurdos mandatos de oito anos, inexistentes no modelo do qual a democracia brasileira só imitou o exemplo teórico, o dos Estados Unidos da América, inventados pelos pais fundadores, no que interessava diretamente à oligarquia monarquista que deu o golpe da República em 1889. Senadores americanos têm mandatos de quatro anos e a chamada Casa dos Representantes, modelo de nossa Câmara federal, de dois. O modelo adotado ao norte do Rio Grande contempla a condição especial da história de sua independência de um conjunto de colônias.

A Federação, essencial para os inspiradores, é uma ficção que nunca se justificou nos 131 anos de nossa insana República. O sistema bicameral é uma excrescência tropicalista do Atlântico Sul, herdada do império dos Bourbons, que ruiu 11 anos antes da chegada do século 20. Na República à brasileira dos barões da monarquia que se adaptaram ao novo regime imposto por militares irredentos e positivistas autoritários, o Senado do império derrubado virou uma tal câmara de revisão, que tem servido ao longo deste século de instituições surrealistas. Mas o que revê o Senado e o Senado revê o quê?

No cotidiano sujo do truco do poder, o mando é executado pelo chefe do Executivo, quando este tem força política. Ou, quando não tem ou a perde, pela Câmara dos Deputados. Em teoria, essa é a prática mais aproximada do cidadão. Mas a composição de seu plenário o nega.

Deputados federais e estaduais e vereadores municipais são escolhidos por um regime do “me engana que eu gosto”. No processo herdado da Constituição de 1946 o voto proporcional deu o mando às elites dirigentes dos Estados atrasados sobre os eleitores mais numerosos dos Estados mais ricos. O voto de um acriano em São Paulo tem um poder 13 vezes menor na escolha de seu representante do que o de um mineiro em Roraima. A distorção matemática foi ampliada pela Constituição fajuta dos militares em 1967 e da dita, mas nunca provada, “cidadã” da soi-disant Nova República. No meio disso, o tal pacote de abril dos generais Geisel e Golbery destruiu de vez a representação, criando senadores indiretos, “biônicos”, uma versão exacerbada que não vingou do que são, no fundo, os eleitos.

O Brasil oficial (apud Machado de Assis), que briga pelos bilhões do bolso furado dos pagadores de impostos, é uma aberração que cospe na lógica de Aristóteles e dos tomistas, pois só 7% dos deputados ganharam eleições com o número de votos depositados nas urnas: e são chamados de “puxadores de votos” – como Enéas, Tiririca e Janaina Paschoal. Os restantes 93% dependem do quociente eleitoral de seus partidos e coligações para serem diplomados. Os beneficiários dessa distorção se elegem chefões do Poder dito “representativo” com apoio de opostos, caso de Rodrigo Maia, elevado à presidência da Câmara pelo DEM de Onyx Lorenzoni e pelo PCdoB do Orlando “Tapioca” Silva. Davi Alcolumbre, do remoto Amapá, lançado pelo onipresente ministro da Cidadania de Bolsonaro (que ironia!), venceu o alagoano Renan Calheiros numa fraude de 81 eleitores e 82 votos.

Quem esse chinfrim teatro do absurdo representa?”

quarta-feira, 11 de março de 2020

A mecânica da polarização





“A mecânica da polarização
     
Por Fernão Lara Mesquita

A maior parte dos votos nos trumps do mundo não são exatamente votos no “trumpismo”, que ninguém sabe definir o que é. São reações pós-traumáticas do senso comum quando, ainda em pleno gozo de sua saúde inata, é agredido pelos “pogroms conceituais” que as patrulhas “liberal”, hegemônicas nos “meios de difusão cultural da burguesia”, promovem recorrentemente.

Cada horda de inquisidores torturando um entrevistado para “provar” que uma frase infeliz o define irreversivelmente como racista, misógino, homofóbico ou qual seja das marcações a ferro infamantes das últimas ordenações do misterioso oráculo planetário da “correção política” reafirma o voto reativo de todo aquele que, mesmo fazendo restrições às grosserias e estupidezes dele, disse uma frase infeliz alguma vez na vida.

Cada malabarismo semântico para designar com novas composições de expressões ridículas aquilo que os shakespeares e camões de todas as línguas sabiam expressar desde sempre, com todas as nuances de conotação desejadas, para esconjurar preconceitos sentidos com preconceitos institucionalizados, incentiva o voto nevrálgico de todo sujeito que já superou o pensamento mágico e a crença no poder dos exorcismos.

Cada torção do braço dos fatos para impor como absolutas verdades apenas relativas; cada tentativa de ditar regras universais de comportamento pessoal ou enfiar o Estado fronteira adentro do círculo da intimidade da família; cada tentativa de obrigar deus e o mundo a ver o que não está lá ou a não ver o que obviamente está; tudo isso reassegura o voto pós-traumático de todos quantos recusam a condição de manada e insistem em aprender apenas observando o que de fato acontece. E o advento das ferramentas de internet que propiciam o disparo de respostas geradas no fígado antes da intervenção ponderada do cérebro acelerou vertiginosamente a marcha da insensatez, adicionando a esses ódios todos uma conotação pessoal.

O maior prejuízo da violência retórica não lógica é que ela dispensa os contendores de elaborar propostas para o mundo real. Permite a cada um manter-se vago em tudo o mais desde que tome posição clara contra a estupidez do outro. E isso deixa inteiramente desassistidos os problemas verdadeiramente problemáticos.

No Brasil o ódio da direita da privilegiatura pela esquerda da privilegiatura, e vice-versa, bastam-se um ao outro num debate cada vez mais movido a bílis e dispensa os dois lados de discutirem a única coisa que interessa, qual seja, a existência de privilégios de classe institucionalizados em pleno terceiro milênio, 240 anos depois do fim do feudalismo.

Nos Estados Unidos o ódio dos “liberal” pelos “conservadores”, e vice-versa, açulado por uma elite empanturrada para a qual ele é a melhor droga contra o tédio, dispensa os dois lados de discutirem a única coisa que interessa, qual seja, que aceitar os termos dos “capitalismos de Estado” na disputa pelo mercado global é permitir que sejam devoradas por dentro as democracias ocidentais, pois, enquanto os sanders e os trumps se escoiceiam, os Estados Unidos reais, levando o mundo de arrasto, afundam cada vez mais, de recorde em recorde de fusões de empresas, de volta na lógica dos monopólios, a qual foi a base do poder dos reis e seus barões, no passado, e hoje é a dos donos dos Estados bandidos e seus “empresários” amestrados em que se travestiram as ditaduras comunistas.

O único remédio concreto que historicamente se lhes deu foi o da reorientação antitruste da democracia americana a partir da virada do século 19 para o 20. “Make America great again” – ou o Brasil pela primeira vez – é recuperar a capacidade da sua economia de dar a cada cidadão a condição de conquistar com trabalho tudo o que a vida pode oferecer e continuar mandando no Estado como lindamente mandou ao longo de todo o século 20. E isso se faz “desachinesando-se” o mercado de trabalho doméstico e forçando a ocidentalização do das chinas do mundo mediante a instituição de impostos contra produtos em que não estejam embutidos os custos de pesquisa e desenvolvimento, da dignidade no trabalho e das liberdades básicas do cidadão como trabalhador e como consumidor.

Não há muito que inventar, mas há tudo a relembrar sobre os marcos fundamentais da luta da humanidade contra a opressão: 1) que tudo o que quem nasce sem nada tem de seu é a sua capacidade de criar e de trabalhar, e que sem a garantia do direito de propriedade – intelectual inclusive – até isso lhe roubam; 2) que liberdade, para além do blá-blá-blá conceitual em que todas as prisões com jeitinho podem ser acomodadas, é a de ser disputado por múltiplos patrões e fornecedores concorrendo pela sua preferência; 3) que democracia existe nas sociedades onde todo mundo sabe quem representa quem, todos são iguais perante a lei e, sendo assim, a maioria é que manda no governo; 4) que esse rearranjo da hierarquia só se materializa com o voto distrital puro e o direito do povo de retomar mandatos (recall), recusar leis vindas de cima (referendo) e propor as suas próprias (iniciativa).

O resto é só barulho para impedir você de pensar.”

terça-feira, 10 de março de 2020

Infraestrutura, entre acertos e erros





“Infraestrutura, entre acertos e erros
      
Por Affonso Celso Pastore

Uma das razões para a baixa produtividade da economia brasileira é a precariedade de nossa infraestrutura. Com o governo sem recursos, os investimentos têm de ser feitos através de concessões ao setor privado. Felizmente, o atual governo parece ter entendido que precisamos de leilões competitivos, com a participação de estrangeiros e nacionais, forçando o aumento da competição de forma a elevar a eficiência dos investimentos e evitar a cartelização e a corrupção que se instalaram entre as grandes construtoras nacionais.

Também entendeu que é preciso ter agências reguladoras dirigidas por profissionais capacitados e politicamente independentes, para evitar a exploração do poder de mercado decorrente da inevitável criação de monopólios naturais, e que exerçam a necessária vigilância sobre a qualidade dos serviços prestados.

O caminho foi facilitado pelo ressurgimento do mercado de capitais, devido à eliminação dos subsídios ao crédito por parte do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Uma das especializações do governo Rousseff foi elevar os riscos regulatórios, como ocorreu com a MP579 e com a suspensão da cobrança de pedágios sobre os eixos suspensos dos caminhões. Na impossibilidade de defender-se deste risco, os participantes dos leilões tinham de lutar por taxas de retorno mais elevadas, que eram impedidas pelo esdrúxulo tabelamento imposto pelo governo, tornando inevitável que fossem “compensados” com subsídios através dos empréstimos do BNDES. Com a eliminação do risco regulatório, os participantes dos leilões têm de se preocupar apenas com os riscos gerenciáveis, que são inerentes ao seu negócio, e dos quais sabem defender-se.

Um elemento decisivo para o sucesso deste novo formato é a queda da taxa real de juros de longo prazo. Ela não se deve apenas à luta do Banco Central para fechar o hiato negativo do PIB (Produto Interno Bruto) e trazer a inflação de volta à meta, mas também à queda contínua da taxa neutra de juros, que se acentuou recentemente devido à expectativa de que o governo prossiga aprovando reformas que levem ao cumprimento do compromisso com o teto de gastos. Esta não é uma regra fiscal autoaplicável, e seu cumprimento depende da aprovação de reformas. Progredimos ao aprovar a reforma da Previdência, e espero que tenhamos sucesso na aprovação de uma reforma administrativa, mas como ambas são insuficientes outras ações são necessárias, como a aprovação da PEC emergencial atualmente em discussão no Congresso. Qualquer erro que coloque em risco o cumprimento do teto de gastos terá consequências muito negativas sobre a política monetária, elevando os prêmios de risco nas taxas de juros mais longas, obstruindo o recém-aberto canal dos empréstimos de longo prazo, e impedindo o sucesso da recuperação cíclica da economia brasileira.

É devido às baixas taxas de juros de longo prazo que vem ocorrendo um aumento, ainda pequeno, da demanda por imóveis. É também devido à abundância destes recursos fornecidos a taxas de juros baixas que os vencedores – nacionais e estrangeiros – dos leilões de infraestrutura poderão financiar seus investimentos. Como se sabe, nos investimentos em infraestrutura a componente de equity é muito pequena, com um predomínio – por larga margem – do financiamento através de dívida. Como as receitas das concessões são integralmente em reais e como atualmente o mercado de capitais é capaz de fornecer recursos abundantes em reais, os estrangeiros que vencerem os leilões não terão de se preocupar com o risco do descasamento de moedas, podendo contribuir para o aumento da competição e da eficiência na construção e administração da infraestrutura. No entanto, se for cometido o erro de derrubar esta estaca que sustenta o programa de investimentos em infraestrutura, todo o castelo virá abaixo.

É por isso que vejo com grande preocupação a pressão para que seja criado um fundo com os recursos vindos das outorgas, que ficariam fora do teto de gastos, sendo destinado integralmente aos investimentos em infraestrutura. Uma exceção puxa outra, e sua aprovação seria um golpe mortal na expectativa de cumprimento do teto de gastos, o que acarretaria sensível elevação da taxa real de juros de longo prazo, abortando a sequência de ações que vêm criando um ambiente favorável para os investimentos em infraestrutura.

A infraestrutura não precisa desta ideia errada, mas apenas de boas regras, e espero que o governo a bloqueie e prossiga na rota que vem seguindo até aqui.”

segunda-feira, 9 de março de 2020

Moralidade e ética





“Moralidade e ética
     
Por Ruy Altenfelder

A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu no artigo 37 que a administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.

O Estado, como pessoa, é uma ficção. Não faria sentido falar em Estado ético ou em Estado aético. Éticos ou aéticos são os seres humanos que integram o Estado.

A administração pública brasileira, como vimos, submete-se ao princípio da moralidade. O Estado brasileiro tem a obrigação de se conduzir moralmente por expressa determinação constitucional. Não poderá transigir com o princípio da moralidade, seja no desempenho de suas funções primárias e diretas, seja na área de atuação que assumiu para corresponder à vocação do Estado de bem-estar, seja nas atribuições ordenatórias e fiscalizatórias da atividade privada. Em tudo isso, como adverte José Renato Nalini, o poder público pode vir a ser responsabilizado se não estiver gerindo a coisa comum de maneira eticamente irrepreensível (cf. José Renato Nalini, Ética Geral e Profissional, pág. 374)

Hely Lopes Meirelles, no seu clássico livro Direito Administrativo Brasileiro, lembra que a moralidade administrativa é pressuposto da validade de todo o ato da administração pública. “O agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto.”

Foi o que inspirou o constituinte de 1988. Fazer o administrador refletir sobre os aspectos éticos de sua atuação. Perquirir se a alternativa adotada está conforme com os ditames da moral, que, por ser administrativa, não precisa ser ontologicamente diversa da moral coletiva. Ao contrário, o administrador há de refletir os valores de sua época e não poderá contrariá-los.

O chamado salto qualitativo ético só virá quando toda a sociedade estiver desperta para a fiscalização do trabalho do governo. Este, como ressalta Nalini, só se legitima se estiver a serviço do povo. O mandato do governante foi outorgado pelo povo, titular da soberania.

Ives Gandra da Silva Martins, em mais um de seus notáveis artigos, lembra que cada brasileiro deve ter consciência de que o governante está a seu serviço, e não ele a serviço do governante, e de que é bom governante aquele que tem como meta exclusiva servir ao cidadão (Folha de S.Paulo, 26/1/1997, pág. 1/3). O Estado precisa encontrar fórmulas para se relacionar com o povo, retomar o caminho da ética.

Os governantes têm o dever de zelar pela observância da ética pública, enquanto os cidadãos têm o direito de exigir e reclamar dos governantes os deveres da ética privada (conteúdos e condutas).

Em 1999 foi criada no Brasil a Comissão de Ética Pública, vinculada ao presidente da República, competindo-lhe dentre outras funções, elaborar o código de conduta das autoridades no âmbito do Poder Executivo federal.

O código trata de um conjunto de normas às quais se sujeitam as pessoas que são nomeadas pelo presidente da República para ocuparem qualquer dos cargos nele previstos, sendo certo que a transgressão dessas normas não implicará, necessariamente, violação de lei, mas, principalmente, descumprimento de um compromisso moral e dos padrões qualitativos estabelecidos para a conduta da alta administração. Em consequência, a punição prevista é de caráter político: advertência e “censura ética”. Além disso, é prevista a sugestão de exoneração, dependendo da gravidade da transgressão.

Como adverte o ex-presidente da Comissão de Ética Pública Américo Lourenço Masset Lacombe, “tendo a Constituição juridicizado a ética, esta deixou de ser um conjunto de normas de conduta voltadas para cada um em particular, pois no centro das considerações morais da conduta humana está o eu, conforme lição de Hannah Arendt. Passou assim, a ética a ter status jurídico e interessar diretamente ao Estado, visto que ele está no centro das considerações jurídicas da conduta humana. A função de uma comissão de ética pública vai além da obrigação de alertar o Poder Executivo de eventuais desvios de seus auxiliares. Tem ainda uma função de afastar o ceticismo e desconfiança da sociedade com os poderes públicos. Para tanto, deve lutar para que a postura ética impere sobre toda a administração. Nada pode ser mais nocivo ao desenvolvimento de uma sociedade do que a falta de confiança nos poderes constituídos, do que a descrença na sua própria capacidade de superar as dificuldades, do que a falta de amor próprio, de orgulho do seu passado e de crença no futuro”.”

sexta-feira, 6 de março de 2020

Sem a menor pista





“Sem a menor pista
      
Por J. R. Guzzo

É algo que se pode ver todos os dias, em qualquer lugar. Muita gente que realmente não é de esquerda neste país, que reprova de alto a baixo o complexo Lula-PT e, sobretudo, que condena sem nenhuma hesitação as calamidades impostas ao Brasil em seus 13 anos e meio de governo, decidiu que existe na política brasileira algo tão ruim, ou ainda pior: a “direita”. Uma parte disso é direita mesmo, sem aspas - milhões de cidadãos que têm valores, crenças e desejos opostos ao que se considera o pensamento liberal. Outra parte é apenas contra Lula, o PT e os seus agentes; depois da experiência que o País teve com eles, não querem nem pensar na ideia de que possam voltar um dia. Mas também se pode juntar as duas e chamar o conjunto de “governo Jair Bolsonaro”.

É esse, hoje, o mais intratável problema que o Brasil do “equilíbrio”, como geralmente gostam de se apresentar as pessoas descritas nas primeiras linhas, tem diante de si. Não toleram o governo e quase nada do que ele pensa, faz ou representa. Mas não sabem, na prática, o que fazer a respeito - não têm nem sequer uma pista.

Há, naturalmente, uma dificuldade de grosso calibre para os adversários e inimigos do governo: toda a direita brasileira, em qualquer de suas modalidades visíveis, é perfeitamente constitucional. Está autorizada por lei a pensar do jeito que quiser, sem pedir licença a ninguém. Pode votar, e, se os seus escolhidos ganharem, são eles que vão para o governo.

Também pode manifestar-se livremente, em lugares fechados ou em praça pública - e não tem nenhuma obrigação, quando se expressa, de defender apenas as causas aprovadas pela média da moral política vigente.

Não é possível, enfim, impedir que a direita exista, promova as causas que aprova e tenha tanto direito a participar da vida pública do Brasil quanto qualquer outra fatia da sociedade. Só há um jeito, em suma, de se lidar com ela: derrotá-la em eleições livres.

É aí, justamente, que está a mãe das complicações para muitas pessoas decentes que defendem sinceramente as liberdades, a moderação e o progresso do Brasil. Em vez de se apresentarem como uma alternativa racional e mais eficaz que o governo Bolsonaro para manter o País livre de Lula e seus etcs., pretendem travar sua disputa política contra a direita ficando, vejam só, parecidas com a esquerda.

O que é que adianta, então? Se é para concordar com o PT, muito obrigado: é melhor, então, ficar com o artigo original logo de uma vez. Alguma coisa está muito errada nisso tudo quando um banqueiro de investimentos milionário, e que se opõe ao governo, diz que se sente “de esquerda”.

Imagina-se que para ganhar eleições contra a direita é indispensável tirar votos que estão na direita - ir buscar eleitores que votaram em Bolsonaro e possam estar, ou tornar-se, desiludidos com ele. Afinal, eles são a maioria; é preciso lembrar, de vez em quando, que o outro lado perdeu. Mas, não. Ficam falando em distribuição de renda, igualdade, justiça e coisas assim. É a eterna busca pela batalha perdida. Distribuição de renda? Mas o que adianta querer ganhar voto com isso se tanto esquerda como direita juram que são a favor? É como defender a luz elétrica.

Você já ouviu alguém dizer: “Sou a favor de que haja uns poucos ricos e um monte de pobres, e quero mais é que os pobres vão para o diabo que os carregue?” Claro que não. Não é isso, portanto, que separa direita e esquerda. A diferença, mesmo, é o que “distribuição de renda” significa na vida real para uma e para outra - e, sobretudo, o que deve ser feito para se chegar a ela.

Vai explicar isso para o banqueiro de esquerda.”

quinta-feira, 5 de março de 2020

Aprendendo com o mundo animal





“Aprendendo com o mundo animal
     
Por Bolívar Lamounier

Aproveitei os feriados para estudar atentamente as serpentes peçonhentas. Estou convencido de que esse é um bom caminho para entendermos melhor o Brasil – não só as elites, mas grande parte da sociedade.

Em pelo menos três atributos, estou seguro de que as referidas serpentes se parecem muito conosco. O primeiro é que, como nós, elas se acham o máximo. Acreditam ter sido criadas por Deus e bonitas por natureza. E algumas são de fato maravilhosas, como as corais (a falsa e a verdadeira), com o lindo tom de vermelho de que se revestem. Devo também admitir que em certos aspectos elas têm razão. Imaginem um animal que não tem asas nem pernas e consegue percorrer grandes distâncias, só deslizando, com grande elegância.

O segundo ponto não é tão favorável a elas. Todas as serpentes venenosas se julgam poderosas, imbatíveis, inexoráveis. Aptas a estraçalhar qualquer adversário. Pensam que, sentindo fome, basta sair para um rápido passeio e... crau! Algum gaiato será servido no jantar. Mas nesse aspecto elas se enganam redondamente. Mesmo as piores, as mais fortes, as capazes de inocular um terrível veneno em suas presas, trucidando-as, também podem ser abatidas por estas, e mesmo, vejam bem, por pequenos animais. Um engano comum e fatal é o que costuma ocorrer quando uma mamba-negra enfrenta um mangusto (moongoose em inglês, mangoustin em francês). A mamba-negra é uma das mais letais que se conhecem. Com cerca de dois metros de comprimento, é uma máquina de matar. Já o mangusto é um bichinho simpático, parecido com um cachorro de tamanho médio, com cerca de 50 a 70 centímetros de comprimento. Tem uma cauda volumosa e um focinho comprido. O que melhor o distingue, vejam só, são seus hábitos culinários. Não dispensa um pequeno roedor, mas gosta mesmo é de cobras peçonhentas – como a mamba-negra. Quando os dois se encontram, ela logo levanta a cabeça, colocando-se em posição de bote. E ele, vocês acham que conserva uns cinco metros de distância? Qual nada! Aproxima-se até meio metro e começa a provocá-la. Dá voltas em torno dela, como se estivesse dançando, vai numa direção e volta na outra, tratando de desorientá-la. Na verdade, ele está é procurando um flanco, um momento em que lhe possa desfechar uma mordida pela nuca. A certa altura, irritada e já quase exasperada, ela perde a paciência e desfere seguidos botes contra ele, errando todos. Os reflexos e a velocidade do rapaz são incríveis. Quando a mamba-negra começa a se cansar, o flanco finalmente aparece e ele a liquida com uma só mordida.

Igualmente instrutivos são os gatos selvagens, que também habitam as áreas quentes da África e da Ásia. São comuns nos desertos da Namíbia, por exemplo. Menores que os mangustos, eles são de certa forma até mais audaciosos, pois se aproximam realmente das cobras e ficam praticamente parados. O que os distingue é, como direi, um DNA de boxeador. Com as patas dianteiras, eles desferem um belo soco de cima para baixo nas serpentes e, quando elas começam a se recuperar, desferem outro com a outra pata. Depois de 10 ou 15 pancadas como essas, eles cravam os dentes na cabeça delas, certificando-se de que elas já partiram desta para melhor. Aí eles pegam o celular e ligam para a patroa, pedindo-lhe para caprichar porque o jantar vai ser supimpa.

Pois, então, aqui chegamos ao terceiro ponto, talvez o mais importante para compreendermos nossa política e nos compreendermos como sociedade. Pouca gente sabe disso, mas todas as cobras são surdas. Enxergam mal e não ouvem bulhufas. Mas como, indagará meu leitor, e a poderosa naja indiana, que dança ao som da flauta tocada pelo encantador de serpentes. Dança nada. Do som da flauta ela não faz a menor ideia. O que ela faz é acompanhar os movimentos corporais do encantador, sempre em posição de bote.

O Brasil também – talvez não todo ele, mas a maioria das elites e das camadas médias – é absolutamente surdo. Aos congressistas e aos juízes do STF, por exemplo, você pode dizer quantas vezes quiser que o Brasil precisa urgentemente de reformas muito mais drásticas do que essas que temos discutido, que acreditar em recuperação econômica se não conseguimos um crescimento do PIB de sequer 3% ao ano é pura ilusão... Os ouvidos brasilienses são como os da naja indiana, ou da mamba-negra, ou da cascavel. Iguais, incuravelmente surdos. Tente dizer-lhes que, crescendo 3% ao ano, levaremos algo como 30 anos para dobrar nossa pífia renda anual por habitante. Ou que não estamos investindo nem o mínimo necessário para manter a infraestrutura. Que não iremos a lugar algum sem uma reforma política séria e um ministro alfabetizado na Educação. E que os megaproblemas de nossa sociedade (violência, corrupção...) continuarão a se agravar enquanto não dermos uma guaribada em nosso aparelho auditivo...

Nessa hipótese, daqui a 15 ou 20 anos estaremos desprotegidos e o jeito será importar mangustos e gatos selvagens em grande quantidade.”

quarta-feira, 4 de março de 2020

Farinha pouca, meu pirão primeiro





“Farinha pouca, meu pirão primeiro
      
Por Elena Landau

Já tinha passado dos 40 anos quando resolvi fazer uma segunda faculdade. Busquei uma outra área, o Direito. A economista, que olhava contratos de concessão como algo bem objetivo, com poucas margens para dúvidas, aprendeu no Direito que havia muita subjetividade na interpretação de cláusulas e conceitos. A insegurança jurídica, e regulatória, é muitas vezes apontada como uma das principais causas do baixo investimento privado em setores como infraestrutura, cujo retorno se dá no longo prazo e depende da aplicação correta das cláusulas contratuais. Reduzir esse risco não tem sido fácil.

Por sua vez, meus colegas do Direito não gostavam muito do curso de Economia que eram obrigados a frequentar. Reclamavam dos gráficos, das equações e, especialmente, da sua (in) utilidade para futuros advogados. Apaixonada pela minha profissão, resolvi, então, retomar a vida de professora e fui dar aula de Economia para o Direito. A primeira aula dava a base de todo o curso. Gráficos de juros, moeda e câmbio foram colocados de lado e no lugar apenas duas perguntas deveriam ser respondidas em todos os exercícios: quanto custa e quem paga a conta?

Com base em conceitos econômicos simples, sentenças e acórdãos eram analisados, sempre com o mesmo olhar: o que dizia o contrato e a lei; o porquê da necessidade de regulamentação; e, a depender da decisão, sobre quem recaia o ônus. No curso, a ideia de restrição de recursos era a mais relevante a passar.

A análise econômica do Direito é importante. Pela regra do regimento interno do STF, assistentes dos ministros devem ser bacharéis em Direito. Não há previsão para assessoria de economistas, que poderiam ajudar a responder quem paga a conta.

Há poucos dias, o presidente do STF, ministro Dias Toffoli, requisitou uma reunião com o ministro Guedes para defender que o Judiciário não seja obrigado a cumprir o limite estabelecido pelo teto de gastos. O teto ajudou a melhorar expectativas, reduzir juros, e, mais importante, mostrar à sociedade que escolhas precisam ser feitas. Que o espaço para políticas públicas está limitado pela capacidade do governo em se financiar, seja via impostos, seja via dívida.

No apagar das luzes de 2019, o Executivo usou uma brecha na lei do teto – pela regra não é contabilizada a capitalização de estatais não dependentes – e aportou quase R$ 10 bilhões em três empresas, expandindo gastos primários. Uma iniciativa ruim que termina por estimular outros segmentos a pedir tratamento especial. O teto deve ser mantido para todos.

Com a gravidade da crise fiscal – são seis anos seguidos de déficit primário – os economistas estão preocupados com as decisões judiciais que afetam diretamente as contas públicas, especialmente as do STF, a última instância. A preocupação é legítima. Os exemplos dos últimos anos são muitos. Vão desde a suspensão do programa de privatização, em decisão monocrática de Lewandowski, que contrariava entendimento da própria Corte, ao enfraquecimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e, agora, o questionamento do próprio teto dos gastos impostos pela EC 95/2016. Há hoje no STF sete ADIs (ações diretas de inconstitucionalidade) contra o teto. É preciso estar atento.

Casos de liminares para suspender a execução de garantia pela União são frequentes. Estados e municípios alegam a impossibilidade de cumprir com os termos do acordo feito com o Tesouro e a própria LRF. Raramente, o magistrado se pergunta como se chegou a essa situação de calamidade. Sem olhar para o todo, acabam, sem intenção, incentivando políticas de gastos irresponsáveis. Hoje, 11 Estados estão com gastos de pessoais acima de 60% da receita líquida, que é o limite previsto pela LRF, e 20 estão acima do limite prudencial de 57%. Assim, uma das mais importantes iniciativas para controlar as contas públicas foi perdendo sua eficácia ao longo dos anos.

Recentemente, Toffoli, em julgamento da ADI 6257, concedeu liminar liberando o subteto para funcionários de Estados e municípios. Bate de frente com os esforços que alguns governadores, especialmente na gestão dos gastos de pessoal, vêm fazendo para reverter um quadro de terra arrasada que receberam.

O ministro escolheu sua prioridade: igualar salários de professores universitários estaduais e federais. Outros ministros poderão escolher as suas. E, aos poucos, os controles vão sendo esgarçados. Abrir exceções para quem tem acesso ao sistema judiciário prejudica os que estão fora dele, exatamente os que mais precisam de recursos públicos. “

terça-feira, 3 de março de 2020

Me dá um dinheiro aí





“Me dá um dinheiro aí
      
Por Ana Carla Abrão

O carnaval brasileiro é farto em produzir irreverências. A cada ano, a criatividade aflora e fantasias, alegorias, máscaras e músicas levam com humor as nossas piores mazelas. Afinal, tudo é festa até a quarta-feira de cinzas. Mas, enquanto os foliões se preparavam para lotar as ruas do Oiapoque ao Chuí, numa grande celebração que é – queiram ou não os mais conservadores – a nossa maior expressão cultural, o Brasil da toga, dos ternos e das corporações continuava a vida, sem fantasias ou máscaras.

Numa sucessão de eventos recentes, vimos as mesmas forças corporativistas, que fizeram parte da construção da crise que vem custando a passar, agindo em defesa dos seus interesses, alheios ao problemas fiscais e à desigualdade que castiga. O alvo, sempre que a corda aperta, é o teto de gastos, grande avanço institucional que tem, como maior virtude, expor as distorções e excessos que caracterizam nossas despesas públicas.

A história começa pelo Judiciário. Embora datado de 15 de janeiro deste ano, só agora veio a público um ofício em que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Dias Toffoli, apresenta suas preocupações com o impacto do cumprimento da Constituição pelo Judiciário. Não, não se trata de um samba enredo. Como todos aqueles que lidam com finanças públicas já sabiam desde 2018, quando a aprovação da PEC 55 pelo Senado Federal (ou PEC 241 da Câmara do Deputados) definiu um novo regime fiscal ao limitar o crescimento das despesas públicas, era o Judiciário o que maior ajuste teria de enfrentar ao final da festa. A partir deste ano, o Executivo não mais poderá cobrir as despesas dos demais poderes que ultrapassarem o limite de gasto estabelecido pelo teto.

Para cumprir a Constituição, os cortes no Judiciário deverão ser da ordem de R$ 1 bilhão. O ministro Dias Toffoli afirma em seu ofício que os tribunais de todo o País vêm adotando fortes medidas de adequação das suas despesas, o que certamente é verdade. O ministro não aponta, contudo, a evolução das despesas de pessoal que, uma vez corretamente computadas, expõem o crescimento injustificável dos vencimentos. A saída, segundo ele, seria pegar uma carona na Emenda 102/2019, que abriu uma brecha no teto para o repasse de recursos para Estados e municípios. Passa o boi, passam as ovelhas. Isso mesmo, uma coisa não tem nada a ver com a outra, a não ser pela vontade de furar o teto.

No Executivo federal as resistências não são menos sutis ao focarem na reforma administrativa. Cientes da sensibilidade do presidente às pressões corporativistas, sindicalistas vinculados à sua base de apoio se alternam num desfile que mescla chantagem à proteção de privilégios. Aqui aproveitam-se do limitado entendimento do presidente quanto à relevância econômica e social da reestruturação do setor público brasileiro.

A consequência está aí: o vacilo no envio da proposta já fez estragos, atrasando a agenda de reformas e jogando sombras sobre o compromisso do governo com o que precisa ser feito. Recolham-se os confetes e serpentinas preparados para a celebração do crescimento que, de novo, nos frustrará neste ano.

Finalmente, e ainda mais preocupante, há agora a pressão das forças de segurança para aumentos salariais. A ação ganhou corpo a partir do equivocado movimento do governador Romeu Zema, de Minas Gerais. Também ganhou notoriedade graças ao desastrado (pelo lado do Senador Cid Gomes) e criminoso (pelo lado da polícia militar cearense) episódio em Sobral. Agora, o risco do movimento ganhar proporções nacionais é sério – e grave. Estados não têm condições financeiras para arcar com aumentos salariais. Policiais não têm o direito de chantagear governos e ameaçar a população.

Já que nem todos terão a liderança e coragem de Paulo Hartung em fevereiro de 2017, cabe ao presidente, que prontamente se perfila com os policiais para defender barganhas e privilégios, agora também chamá-los à responsabilidade, à lei e à ordem.

Mas como hoje ainda é terça-feira, vale lembrar que foi a marchinha o gênero musical que predominou no carnaval do Brasil entre os anos 20 e 50. Ela perdeu espaço nas décadas seguintes, mas voltou com força nos carnavais recentes. Nos bloquinhos, reeditados com estrondoso sucesso, o saudosismo e a nostalgia tomam conta de foliões que recuperam o carnaval daqueles tempos. Na mais tradicional das festas brasileiras, o humor, a irreverência, a alegria e a beleza de um país tão diverso fluem em todas as suas representações.

Esquecemos os problemas e nos colocamos a cantar e a dançar, como se fôssemos todos iguais. Mas esse sentimento se esvai quando o bloco entoa “Ei, você aí, me dá um dinheiro aí/Me dá um dinheiro aí/Não vai dar?/Não vai dar não?/Você vai ver, a grande confusão”. Aí nos lembramos de quão injusto é o nosso Brasil.”

segunda-feira, 2 de março de 2020

Moralidade e ética





“Moralidade e ética
     
Por Ruy Altenfelder

A Constituição brasileira de 1988 estabeleceu no artigo 37 que a administração pública direta, indireta ou fundacional, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.

O Estado, como pessoa, é uma ficção. Não faria sentido falar em Estado ético ou em Estado aético. Éticos ou aéticos são os seres humanos que integram o Estado.

A administração pública brasileira, como vimos, submete-se ao princípio da moralidade. O Estado brasileiro tem a obrigação de se conduzir moralmente por expressa determinação constitucional. Não poderá transigir com o princípio da moralidade, seja no desempenho de suas funções primárias e diretas, seja na área de atuação que assumiu para corresponder à vocação do Estado de bem-estar, seja nas atribuições ordenatórias e fiscalizatórias da atividade privada. Em tudo isso, como adverte José Renato Nalini, o poder público pode vir a ser responsabilizado se não estiver gerindo a coisa comum de maneira eticamente irrepreensível (cf. José Renato Nalini, Ética Geral e Profissional, pág. 374)

Hely Lopes Meirelles, no seu clássico livro Direito Administrativo Brasileiro, lembra que a moralidade administrativa é pressuposto da validade de todo o ato da administração pública. “O agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto.”

Foi o que inspirou o constituinte de 1988. Fazer o administrador refletir sobre os aspectos éticos de sua atuação. Perquirir se a alternativa adotada está conforme com os ditames da moral, que, por ser administrativa, não precisa ser ontologicamente diversa da moral coletiva. Ao contrário, o administrador há de refletir os valores de sua época e não poderá contrariá-los.

O chamado salto qualitativo ético só virá quando toda a sociedade estiver desperta para a fiscalização do trabalho do governo. Este, como ressalta Nalini, só se legitima se estiver a serviço do povo. O mandato do governante foi outorgado pelo povo, titular da soberania.

Ives Gandra da Silva Martins, em mais um de seus notáveis artigos, lembra que cada brasileiro deve ter consciência de que o governante está a seu serviço, e não ele a serviço do governante, e de que é bom governante aquele que tem como meta exclusiva servir ao cidadão (Folha de S.Paulo, 26/1/1997, pág. 1/3). O Estado precisa encontrar fórmulas para se relacionar com o povo, retomar o caminho da ética.

Os governantes têm o dever de zelar pela observância da ética pública, enquanto os cidadãos têm o direito de exigir e reclamar dos governantes os deveres da ética privada (conteúdos e condutas).

Em 1999 foi criada no Brasil a Comissão de Ética Pública, vinculada ao presidente da República, competindo-lhe dentre outras funções, elaborar o código de conduta das autoridades no âmbito do Poder Executivo federal.

O código trata de um conjunto de normas às quais se sujeitam as pessoas que são nomeadas pelo presidente da República para ocuparem qualquer dos cargos nele previstos, sendo certo que a transgressão dessas normas não implicará, necessariamente, violação de lei, mas, principalmente, descumprimento de um compromisso moral e dos padrões qualitativos estabelecidos para a conduta da alta administração. Em consequência, a punição prevista é de caráter político: advertência e “censura ética”. Além disso, é prevista a sugestão de exoneração, dependendo da gravidade da transgressão.

Como adverte o ex-presidente da Comissão de Ética Pública Américo Lourenço Masset Lacombe, “tendo a Constituição juridicizado a ética, esta deixou de ser um conjunto de normas de conduta voltadas para cada um em particular, pois no centro das considerações morais da conduta humana está o eu, conforme lição de Hannah Arendt. Passou assim, a ética a ter status jurídico e interessar diretamente ao Estado, visto que ele está no centro das considerações jurídicas da conduta humana. A função de uma comissão de ética pública vai além da obrigação de alertar o Poder Executivo de eventuais desvios de seus auxiliares. Tem ainda uma função de afastar o ceticismo e desconfiança da sociedade com os poderes públicos. Para tanto, deve lutar para que a postura ética impere sobre toda a administração. Nada pode ser mais nocivo ao desenvolvimento de uma sociedade do que a falta de confiança nos poderes constituídos, do que a descrença na sua própria capacidade de superar as dificuldades, do que a falta de amor próprio, de orgulho do seu passado e de crença no futuro”.”