“A mecânica da polarização
Por Fernão Lara Mesquita
A maior parte dos votos nos
trumps do mundo não são exatamente votos no “trumpismo”, que ninguém sabe
definir o que é. São reações pós-traumáticas do senso comum quando, ainda em
pleno gozo de sua saúde inata, é agredido pelos “pogroms conceituais” que as
patrulhas “liberal”, hegemônicas nos “meios de difusão cultural da burguesia”,
promovem recorrentemente.
Cada horda de inquisidores
torturando um entrevistado para “provar” que uma frase infeliz o define
irreversivelmente como racista, misógino, homofóbico ou qual seja das marcações
a ferro infamantes das últimas ordenações do misterioso oráculo planetário da
“correção política” reafirma o voto reativo de todo aquele que, mesmo fazendo
restrições às grosserias e estupidezes dele, disse uma frase infeliz alguma vez
na vida.
Cada malabarismo semântico para
designar com novas composições de expressões ridículas aquilo que os
shakespeares e camões de todas as línguas sabiam expressar desde sempre, com
todas as nuances de conotação desejadas, para esconjurar preconceitos sentidos
com preconceitos institucionalizados, incentiva o voto nevrálgico de todo
sujeito que já superou o pensamento mágico e a crença no poder dos exorcismos.
Cada torção do braço dos fatos
para impor como absolutas verdades apenas relativas; cada tentativa de ditar
regras universais de comportamento pessoal ou enfiar o Estado fronteira adentro
do círculo da intimidade da família; cada tentativa de obrigar deus e o mundo a
ver o que não está lá ou a não ver o que obviamente está; tudo isso reassegura
o voto pós-traumático de todos quantos recusam a condição de manada e insistem
em aprender apenas observando o que de fato acontece. E o advento das
ferramentas de internet que propiciam o disparo de respostas geradas no fígado
antes da intervenção ponderada do cérebro acelerou vertiginosamente a marcha da
insensatez, adicionando a esses ódios todos uma conotação pessoal.
O maior prejuízo da violência
retórica não lógica é que ela dispensa os contendores de elaborar propostas
para o mundo real. Permite a cada um manter-se vago em tudo o mais desde que
tome posição clara contra a estupidez do outro. E isso deixa inteiramente
desassistidos os problemas verdadeiramente problemáticos.
No Brasil o ódio da direita da
privilegiatura pela esquerda da privilegiatura, e vice-versa, bastam-se um ao
outro num debate cada vez mais movido a bílis e dispensa os dois lados de
discutirem a única coisa que interessa, qual seja, a existência de privilégios
de classe institucionalizados em pleno terceiro milênio, 240 anos depois do fim
do feudalismo.
Nos Estados Unidos o ódio dos
“liberal” pelos “conservadores”, e vice-versa, açulado por uma elite
empanturrada para a qual ele é a melhor droga contra o tédio, dispensa os dois
lados de discutirem a única coisa que interessa, qual seja, que aceitar os
termos dos “capitalismos de Estado” na disputa pelo mercado global é permitir
que sejam devoradas por dentro as democracias ocidentais, pois, enquanto os
sanders e os trumps se escoiceiam, os Estados Unidos reais, levando o mundo de
arrasto, afundam cada vez mais, de recorde em recorde de fusões de empresas, de
volta na lógica dos monopólios, a qual foi a base do poder dos reis e seus
barões, no passado, e hoje é a dos donos dos Estados bandidos e seus
“empresários” amestrados em que se travestiram as ditaduras comunistas.
O único remédio concreto que
historicamente se lhes deu foi o da reorientação antitruste da democracia
americana a partir da virada do século 19 para o 20. “Make America great again”
– ou o Brasil pela primeira vez – é recuperar a capacidade da sua economia de
dar a cada cidadão a condição de conquistar com trabalho tudo o que a vida pode
oferecer e continuar mandando no Estado como lindamente mandou ao longo de todo
o século 20. E isso se faz “desachinesando-se” o mercado de trabalho doméstico
e forçando a ocidentalização do das chinas do mundo mediante a instituição de
impostos contra produtos em que não estejam embutidos os custos de pesquisa e
desenvolvimento, da dignidade no trabalho e das liberdades básicas do cidadão
como trabalhador e como consumidor.
Não há muito que inventar, mas há
tudo a relembrar sobre os marcos fundamentais da luta da humanidade contra a
opressão: 1) que tudo o que quem nasce sem nada tem de seu é a sua capacidade
de criar e de trabalhar, e que sem a garantia do direito de propriedade –
intelectual inclusive – até isso lhe roubam; 2) que liberdade, para além do
blá-blá-blá conceitual em que todas as prisões com jeitinho podem ser
acomodadas, é a de ser disputado por múltiplos patrões e fornecedores
concorrendo pela sua preferência; 3) que democracia existe nas sociedades onde
todo mundo sabe quem representa quem, todos são iguais perante a lei e, sendo
assim, a maioria é que manda no governo; 4) que esse rearranjo da hierarquia só
se materializa com o voto distrital puro e o direito do povo de retomar
mandatos (recall), recusar leis vindas de cima (referendo) e propor as suas
próprias (iniciativa).
O resto é só barulho para impedir
você de pensar.”
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