“O diabo na rua, no meio do
redemunho
Por Fernão Lara Mesquita
Viver é mais perigoso a cada
minuto que passa neste mundo do coronavírus. Que fake news, que nada! Problema
mesmo são as verdadeiras!
Eu mesmo já nem ouso, mas a
História certamente terá muito a dizer sobre o fantástico “case” que se
desenrola diante dos nossos olhos: De como a gripe menos letal das últimas
décadas desencadeou uma epidemia global de super-reações de governantes
tementes ao linchamento e precipitou, do nada, o maior pânico financeiro do
milênio.
Não é só o Brasil. “O mundo nas
juntas se desgovernou”, como o jagunço Riobaldo temia que se desgovernasse.
Um mundo onde os vírus migram dos
morcegos para os humanos, do marketing para a política e dela para os mercados.
Um mundo onde ficou tão mais barato fazer e entregar um discurso “customizado”
a cada consumidor quanto mais caro servir-lhe qualquer coisa fora do padrão
massificado da economia de escala dos monopólios planetários. Um mundo onde as
“narrativas” e a realidade correm cada vez mais aceleradamente em direções
opostas e a concentração do poder econômico é o efeito mais direto da
desconcentração do foco do poder político.
Na louca febre das bolsas a
contribuição chinesa deu-se por ricochete. Há meses o mercado procurava uma
razão para uma queda. Serviu-a na bandeja a disposição das democracias
ocidentais de tratar como igual o mandarim vermelho que, numa bela manhã - não
porque tivesse sido instado a tanto pela ciência, mas antes porque pode fazer o
que bem entender impunemente -, acordou com ganas de isolar uma megacidade
inteira depois de ouvir um par de espirros.
Na China faz-se, não se discute,
porque para quem vem cheio de ideias sempre há o “campo de reeducação” - agora
à paisana, no meio da cidade e com cara de condomínio - ou o tiro na nuca para
os insistentes. Por mais predispostos que estejamos a esquecê-lo enquanto
babamos ovo para as “Muralhas da China” e os “Palácios de Verão” dos novos
imperadores, o que continua sendo, lá, é o que sempre foi, só com mais dinheiro
e esperança para quem conseguir manter-se vivo e em paz com o partido. As quase
democracias também continuam iguais. Nunca saíram do brejo. O que vem mudando
rapidamente para pior é a ponta das democracias verdadeiras.
O dado novo, que pesa
decisivamente para quem vive de voto, são as “tricoteuses” da revolução das
comunicações. Todo mundo tem aquele amigo, aquela amiga, com histórico de
razoabilidade que, armado do seu celular, passou a comportar-se como um
fanático que se ocupa com zelo religioso em fazer circular textos e imagens que
não enganariam nem uma criança em condições normais de temperatura e pressão, e
a pedir mais e mais “sangue”, desde as primeiras filas da guilhotina das
teorias planetárias da conspiração. A “ascensão do idiota” desde que se
descobriu maioria esmagadora e “perdeu a modéstia”, descrita por Nelson
Rodrigues, acabou num grau inimaginável daquela “embriaguez pela onipotência
numérica” que ele antecipou e temia antes do advento do mundo em rede.
No meio do caminho entrou em cena
o potentado Putin jogando petróleo real no incêndio da febre que quem vive de
voto vai ter de apagar. Mas antes disso o cenário de desolação já estava
definido.
Houve tempo em que a notícia é
que pautava os jornais. Hoje os jornais é que pautam a notícia. Uma cidade
inteira sob sítio? Vale! E lá estava, mais uma vez oferecida, a janela aberta
para o mundo. E havendo janela, há que haver ministro que nela se debruce e
jornalista para inquiri-lo e pauteiro para encher a linguiça de cada canal
melhor que a do vizinho. E como o medo é que governa os governos nesta era do
apedrejamento em rede, instalou-se mais uma vez a cadeia mundial da
irracionalidade: “Ele fez. Vai que eu não faço e...”.
Hoje é possível fazer um
“e-comício” para cada plateia selecionada pela história das suas emoções; criar
um compromisso com cada indivíduo; falar-lhe “ao pé do ouvido” de dentro do
“grupo” dos seus íntimos. Mas como tratar de questões mais amplas com o
necessário distanciamento num ambiente de tanta falta de cerimônia?
“Ilusão de noiva” acreditar que a
supressão do intermediário especializado melhorou a relação candidato-eleitor.
A tapeação agora é algoritmizável. Não precisa nem “ser artista”. Qualquer
sujeito sem nenhuma graça ou talento pode enganar com eficiência científica. E
se na relação intermediada pelo jornalismo o contraditório era a regra exigível
cuja ausência ligava o alarme contra o enviesamento, hoje ele é o intruso
expulso a socos e pontapés quando é flagrado insinuando-se numa “conversa de
íntimos”.
Cada cercadinho emite e recebe
exclusivamente o mesmo zurro. Complicadíssimo, portanto, não se esborrachar
numa omelete andando por cima de tantos ovos. A onda do coronavírus baixaria
radicalmente, mesmo assim, com uma providência simples. Se todas as vezes que a
palavra chegasse a ser mencionada fosse obrigatório acrescentar a informação
que lhe define a estatura - …“coronavírus, a febre chinesa da vez cuja
letalidade é bem menor que a da gripe N1H1”... -, o mundo estaria, neste
momento, bem menos emocionante.”
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