“A crise na representação que
ainda assola o País
Por José Nêumanne
Está em plena ebulição no
Planalto Central do Brasil uma luta aberta entre os Poderes Executivo e
Legislativo em torno da liberação de R$ 46 bilhões, R$ 31 bilhões ou R$ 15
bilhões para emendas parlamentares que beneficiarão prefeitos e governadores
estaduais sem necessidade de fiscalização. Na prática, é uma queda de braço na
qual quem puder mais chorará menos. Qual das partes tem mais legitimidade para
decidir sobre o Orçamento da União? Eis a questão, a ser definida por três
princípios básicos da democracia: todo poder emana do povo e em seu nome é
exercido, todos são iguais perante a lei e cada cidadão, um voto.
Em teoria, nem deveria ser aberta
a polêmica. Afinal, sabe-se que o Poder que realmente representa a sociedade
não é o Executivo, que executa leis e orçamentos, nem o Judiciário, que, como
determina o próprio nome, julga se a ordem dada está, ou não, dentro da lei e
fiel à Constituição. Certo? Não necessariamente. Afinal, no rigor matemático dos
fatos o único Poder com mandatário escolhido na base de cada cidadão, um voto é
o Executivo. Seja federal, estadual ou municipal. Em mandatos de quatro anos,
que só podem ser repetidos uma vez, os chefes de governos federal, estaduais e
municipais passam por processos eleitorais de dois turnos para que se garanta
sua legitimidade. Na aferição dos votos nas urnas eletrônicas não há dúvidas:
garantida a igualdade de condições na disputa, toma posse o eleitor mais
votado.
O mesmo não se pode dizer da escolha
para a composição do Parlamento de 513 deputados federais e 81 senadores. Os
primeiros são eleitos pelo sistema de voto proporcional. Os últimos preenchem
três vagas, com oito anos de mandato, dois num pleito e um no outro, e podem
ser reeleitos para todo o sempre, amém.
No caso da dita Câmara Alta o
cidadão não é representado nem em teoria. Afinal, o plenário dos seniores (do
latim “mais velhos”, mas nem sempre) representa cada Estado da Federação por
absurdos mandatos de oito anos, inexistentes no modelo do qual a democracia
brasileira só imitou o exemplo teórico, o dos Estados Unidos da América,
inventados pelos pais fundadores, no que interessava diretamente à oligarquia
monarquista que deu o golpe da República em 1889. Senadores americanos têm mandatos
de quatro anos e a chamada Casa dos Representantes, modelo de nossa Câmara
federal, de dois. O modelo adotado ao norte do Rio Grande contempla a condição
especial da história de sua independência de um conjunto de colônias.
A Federação, essencial para os
inspiradores, é uma ficção que nunca se justificou nos 131 anos de nossa insana
República. O sistema bicameral é uma excrescência tropicalista do Atlântico
Sul, herdada do império dos Bourbons, que ruiu 11 anos antes da chegada do
século 20. Na República à brasileira dos barões da monarquia que se adaptaram
ao novo regime imposto por militares irredentos e positivistas autoritários, o
Senado do império derrubado virou uma tal câmara de revisão, que tem servido ao
longo deste século de instituições surrealistas. Mas o que revê o Senado e o
Senado revê o quê?
No cotidiano sujo do truco do
poder, o mando é executado pelo chefe do Executivo, quando este tem força
política. Ou, quando não tem ou a perde, pela Câmara dos Deputados. Em teoria,
essa é a prática mais aproximada do cidadão. Mas a composição de seu plenário o
nega.
Deputados federais e estaduais e
vereadores municipais são escolhidos por um regime do “me engana que eu gosto”.
No processo herdado da Constituição de 1946 o voto proporcional deu o mando às
elites dirigentes dos Estados atrasados sobre os eleitores mais numerosos dos
Estados mais ricos. O voto de um acriano em São Paulo tem um poder 13 vezes
menor na escolha de seu representante do que o de um mineiro em Roraima. A
distorção matemática foi ampliada pela Constituição fajuta dos militares em
1967 e da dita, mas nunca provada, “cidadã” da soi-disant Nova República. No
meio disso, o tal pacote de abril dos generais Geisel e Golbery destruiu de vez
a representação, criando senadores indiretos, “biônicos”, uma versão exacerbada
que não vingou do que são, no fundo, os eleitos.
O Brasil oficial (apud Machado de
Assis), que briga pelos bilhões do bolso furado dos pagadores de impostos, é
uma aberração que cospe na lógica de Aristóteles e dos tomistas, pois só 7% dos
deputados ganharam eleições com o número de votos depositados nas urnas: e são
chamados de “puxadores de votos” – como Enéas, Tiririca e Janaina Paschoal. Os
restantes 93% dependem do quociente eleitoral de seus partidos e coligações
para serem diplomados. Os beneficiários dessa distorção se elegem chefões do
Poder dito “representativo” com apoio de opostos, caso de Rodrigo Maia, elevado
à presidência da Câmara pelo DEM de Onyx Lorenzoni e pelo PCdoB do Orlando
“Tapioca” Silva. Davi Alcolumbre, do remoto Amapá, lançado pelo onipresente
ministro da Cidadania de Bolsonaro (que ironia!), venceu o alagoano Renan
Calheiros numa fraude de 81 eleitores e 82 votos.
Quem esse chinfrim teatro do
absurdo representa?”
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