“Me dá um dinheiro aí
Por Ana Carla Abrão
O carnaval brasileiro é farto em
produzir irreverências. A cada ano, a criatividade aflora e fantasias,
alegorias, máscaras e músicas levam com humor as nossas piores mazelas. Afinal,
tudo é festa até a quarta-feira de cinzas. Mas, enquanto os foliões se
preparavam para lotar as ruas do Oiapoque ao Chuí, numa grande celebração que é
– queiram ou não os mais conservadores – a nossa maior expressão cultural, o
Brasil da toga, dos ternos e das corporações continuava a vida, sem fantasias
ou máscaras.
Numa sucessão de eventos
recentes, vimos as mesmas forças corporativistas, que fizeram parte da
construção da crise que vem custando a passar, agindo em defesa dos seus
interesses, alheios ao problemas fiscais e à desigualdade que castiga. O alvo,
sempre que a corda aperta, é o teto de gastos, grande avanço institucional que
tem, como maior virtude, expor as distorções e excessos que caracterizam nossas
despesas públicas.
A história começa pelo
Judiciário. Embora datado de 15 de janeiro deste ano, só agora veio a público
um ofício em que o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Dias
Toffoli, apresenta suas preocupações com o impacto do cumprimento da
Constituição pelo Judiciário. Não, não se trata de um samba enredo. Como todos
aqueles que lidam com finanças públicas já sabiam desde 2018, quando a
aprovação da PEC 55 pelo Senado Federal (ou PEC 241 da Câmara do Deputados)
definiu um novo regime fiscal ao limitar o crescimento das despesas públicas,
era o Judiciário o que maior ajuste teria de enfrentar ao final da festa. A
partir deste ano, o Executivo não mais poderá cobrir as despesas dos demais
poderes que ultrapassarem o limite de gasto estabelecido pelo teto.
Para cumprir a Constituição, os
cortes no Judiciário deverão ser da ordem de R$ 1 bilhão. O ministro Dias
Toffoli afirma em seu ofício que os tribunais de todo o País vêm adotando
fortes medidas de adequação das suas despesas, o que certamente é verdade. O
ministro não aponta, contudo, a evolução das despesas de pessoal que, uma vez
corretamente computadas, expõem o crescimento injustificável dos vencimentos. A
saída, segundo ele, seria pegar uma carona na Emenda 102/2019, que abriu uma
brecha no teto para o repasse de recursos para Estados e municípios. Passa o
boi, passam as ovelhas. Isso mesmo, uma coisa não tem nada a ver com a outra, a
não ser pela vontade de furar o teto.
No Executivo federal as
resistências não são menos sutis ao focarem na reforma administrativa. Cientes
da sensibilidade do presidente às pressões corporativistas, sindicalistas
vinculados à sua base de apoio se alternam num desfile que mescla chantagem à
proteção de privilégios. Aqui aproveitam-se do limitado entendimento do
presidente quanto à relevância econômica e social da reestruturação do setor
público brasileiro.
A consequência está aí: o vacilo
no envio da proposta já fez estragos, atrasando a agenda de reformas e jogando
sombras sobre o compromisso do governo com o que precisa ser feito. Recolham-se
os confetes e serpentinas preparados para a celebração do crescimento que, de
novo, nos frustrará neste ano.
Finalmente, e ainda mais
preocupante, há agora a pressão das forças de segurança para aumentos
salariais. A ação ganhou corpo a partir do equivocado movimento do governador
Romeu Zema, de Minas Gerais. Também ganhou notoriedade graças ao desastrado
(pelo lado do Senador Cid Gomes) e criminoso (pelo lado da polícia militar
cearense) episódio em Sobral. Agora, o risco do movimento ganhar proporções
nacionais é sério – e grave. Estados não têm condições financeiras para arcar
com aumentos salariais. Policiais não têm o direito de chantagear governos e
ameaçar a população.
Já que nem todos terão a
liderança e coragem de Paulo Hartung em fevereiro de 2017, cabe ao presidente,
que prontamente se perfila com os policiais para defender barganhas e
privilégios, agora também chamá-los à responsabilidade, à lei e à ordem.
Mas como hoje ainda é
terça-feira, vale lembrar que foi a marchinha o gênero musical que predominou
no carnaval do Brasil entre os anos 20 e 50. Ela perdeu espaço nas décadas
seguintes, mas voltou com força nos carnavais recentes. Nos bloquinhos,
reeditados com estrondoso sucesso, o saudosismo e a nostalgia tomam conta de foliões
que recuperam o carnaval daqueles tempos. Na mais tradicional das festas
brasileiras, o humor, a irreverência, a alegria e a beleza de um país tão
diverso fluem em todas as suas representações.
Esquecemos os problemas e nos
colocamos a cantar e a dançar, como se fôssemos todos iguais. Mas esse
sentimento se esvai quando o bloco entoa “Ei, você aí, me dá um dinheiro aí/Me
dá um dinheiro aí/Não vai dar?/Não vai dar não?/Você vai ver, a grande
confusão”. Aí nos lembramos de quão injusto é o nosso Brasil.”
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