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sexta-feira, 17 de abril de 2020

Triste Brasil





“Triste Brasil

Por Elio Gaspari

Atribui-se ao professor San Tiago Dantas uma observação mortífera: “A Índia tem uma grande elite e um povo de merda, o Brasil tem um grande povo e uma elite de merda”. Com certeza, San Tiago disse que “vem se processando há séculos no Brasil um trabalho social de contínua desorientação das ‘elites’, que as vai afastando do exame cultural e político dos valores nacionais.” No discurso de posse que não viveu para ler, Tancredo Neves disse a mesma coisa: “Temos construído esta Nação com êxitos e dificuldades, mas não há dúvida, para quem saiba examinar a História com isenção, de que o nosso progresso político deveu-se mais à força reivindicadora dos homens do povo do que à consciência das elites.”

Nunca a elite nacional ofereceu um triste episódio como o que os Três Poderes da República e boa parte do andar de cima vêm oferecendo diante da epidemia. (Ressalvada a doação de R$ 1 bilhão pelo Itaú Unibanco, a maior da história nacional.)

O Brasil foi um dos últimos países a abolir a escravidão. O século 20 teve 36 anos de ditaduras. Em 1978 o supermercado Carrefour foi expulso da Associação de Supermercados do Rio porque aceitava cartões de crédito. A ponte aérea Rio-São Paulo levou anos para dar aos seus passageiros acesso a programas de milhagem que existiam há mais de uma década. Os fazendeiros que insistiram em comprar escravos empobreceram. O supermercado que liderou a expulsão do Carrefour sumiu, e o oligopólio das aéreas foi à garra.

Sendo velho, o atraso poderia ter aprendido. Já morreram mais de mil pessoas e o oportunismo epidêmico do andar de cima agravou-se. O presidente da República diz que a Covid é uma gripezinha, afrontando a Ciência e a opinião pública. O ministro da Saúde é hostilizado pela charanga do Planalto porque defende o isolamento. Os inimigos de Bolsonaro passaram a ser seu ministro e os governadores de São Paulo e do Rio de Janeiro. Já à Covid, que está matando gente, ele deu compreensão. Do outro lado do balcão, a Câmara aprovou um pacote de ajuda aos estados que é visto como uma bomba fiscal, e o ministro da Economia avisa que o Executivo deverá vetá-lo. Empresários beneficiados pelos programas federais provisórios defendem sua transformação em mimos permanentes. Fazem tudo isso sabendo que depois da epidemia virá a recessão.

É como se o Brasil tivesse virado um grande pernil e cada um vai lá para tirar sua fatia. Admita-se que todos têm razão, inclusive Bolsonaro com sua gripezinha. Se cada um continuar gritando, quem ganha é a Covid. Os barões da medicina privada querem falar de tudo, menos do colapso de hospitais do SUS (que está carregando o piano). Falta que essas duas turmas conversem, partindo de uma premissa: “Eu não quero te quebrar, mas você não pode querer me matar”.


Todos os lados acham que têm razão, mas não conseguem conversar. À primeira vista pode-se achar que isso se deve à polarização bolsonariana. É pouco. Em 1830 o deputado Antônio Ferreira França apresentou um projeto de abolição gradual da escravidão. Ela acabaria em 1851. Acabou em 1888 porque havia gente interessada nisso.

Há hospitais públicos recusando-se a admitir pacientes. Por quê? Porque chegam mortos.”

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Ressurreição





“Ressurreição
      
Por Ana Carla Abrão*, O Estado de S. Paulo

O domingo de Páscoa marca a mais importante celebração cristã, a ressurreição de Jesus, ápice da Paixão de Cristo. A data coincide com a Páscoa judaica, ou Pessach, tradição milenar que comemora a libertação do povo hebreu. Segundo o Livro do Êxodo, a Páscoa Judaica aconteceu pouco antes da décima praga se abater sobre o Egito, matando todos os primogênitos daquela terra.

Libertação ou ressurreição, a Páscoa – cristã ou judaica – deste ano de 2020 passará para a história pela intensidade que esses significados assumiram, nos convidando a reflexões inéditas. A dimensão da crise de saúde pública e da recessão econômica que se desenha, levam à revisão de conceitos e a novas experiências que certamente transformarão o mundo e o Brasil – para o bem e, a depender das respostas à crise, talvez também para o mal.

O Brasil foi atingido pelo surto de covid-19 em situação econômica muito distinta daquela que nos caracterizava no fim de 2008, quando a crise financeira mundial se abateu sobre o País. O PIB daquele ano cresceu 5,1%, após uma queda de 3,6% no último trimestre de 2008 em comparação com o trimestre anterior. Em 2007, o crescimento havia sido de 6,1%. Em 2019, em contraste, ficamos com um frustrante 1,3% de crescimento e abrimos o ano de 2020 com perspectivas de pouco mais de 2%. Essas estimativas já estão sendo revistas para quedas em torno dos 5% estimados pelo Banco Mundial para o Brasil.

Outros indicadores, como os níveis de dívida líquida (12 pontos de porcentagem mais alto agora), desemprego (11,2% agora, comparativamente aos 7,9% em 2008) e informalidade de 41%, frente aos 28% em 2008, segundo o IBGE, também apontam para uma fragilidade econômica muito maior.

Não por coincidência, nosso mercado de ações apresentou uma das maiores quedas dentre os mercados mais importantes, atingindo uma perda média de 40% entre 21 de fevereiro e 23 de março. Uma economia frágil se reflete em perda de confiança, que se reflete em destruição de valor. As maiores perdas se concentram nos setores diretamente afetados pela crise, como o setor aéreo, mas também não pouparam os outros setores, mostrando a característica de espalhamento da crise e sua disseminação por toda a cadeia produtiva, diferentemente da crise de 2008.

As respostas emergenciais vieram. Governos federal, estaduais e municipais se mobilizaram no combate à crise. O Congresso tem agido de forma ágil. O setor privado se juntou como nunca antes numa grande rede de filantropia. Vide o exemplo dos acionistas do Itaú Unibanco, com a doação histórica de R$ 1 bilhão para o combate à crise. A falta de coordenação por parte do governo federal certamente comprometerá a eficácia de algumas das ações. Mas esse vácuo começa a se mostrar cada vez menos relevante à medida que lideranças políticas e da sociedade civil vão assumindo papel protagonista e outras diferentes de coordenação vão tomando forma.

Mas há que se tomar cuidado e tentar qualificar as ações. Afinal, a crise é urgente e seu fato gerador deverá ser, quiçá, temporário. Por outro lado, os impactos deverão ser mais ou menos duradouros a depender da efetividade e foco das ações. Quanto mais evitarmos resolver de maneira oportunista problemas de outra ordem e que nada têm a ver com a atual crise, maiores as chances de emergirmos de forma mais organizada desse grave episódio. Mais oportunistas e menos focadas, maiores as chances das ações representarem apenas o agravamento da crise fiscal que já nos acompanha há anos. E aqui destacam-se as discussões sobre o socorro aos Estados e o desvirtuamento de uma solução estrutural como o Plano Mansueto, há meses repousando no Congresso Nacional e agora ressuscitado.

Não há dúvidas de que os Estados precisam de recursos e de salvaguardas para evitar seu colapso frente à queda na arrecadação em função da brusca interrupção da atividade produtiva. Isso deverá se dar via transferências diretas e também por meio da garantia de que as perdas tributárias serão recompostas pelo Tesouro Nacional durante o período necessário para o enfrentamento da crise e de suas consequências.

Ações adicionais de socorro à economia e ao crédito no nível federal também deverão ser desenhadas. Mas pendurar aí perdão de dívidas passadas e permissão para endividamentos novos em níveis incompatíveis com a capacidade de geração futura de receita desses entes, equivale a fomentar o descontrole fiscal e validar a irresponsabilidade passada, e não a apoiar os gastos que sabemos necessários e urgentes. Confundir as duas coisas equivale a comprometer nossa capacidade de recuperação no futuro e a perpetuar a crise que por si só já é muito grave e profunda.

Há que se garantir que regras e conceitos sejam respeitados e também que as bases das nossas instituições fiscais sejam respeitadas. Somente elas nos garantirão a possibilidade de – assim como nas Páscoas cristã e judaica –, passada a quarentena, nos libertarmos desse vírus e ressuscitarmos nossa economia.”

terça-feira, 14 de abril de 2020

A guerra dos trouxas





“A guerra dos trouxas
     
Por Fernão Lara Mesquita

Pobreza: teu nome é privilegiatura.

Desigualdade de renda: teu nome é privilegiatura.

Favela: teu nome é privilegiatura.

Colapso do sistema de saúde: teu nome é privilegiatura...

A lista poderia ir longe. Todo mundo sabe onde sobra o dinheiro que falta em todos os outros lugares do Brasil.

O que mais mata nesta epidemia, é bom não esquecer, é a falta de hospitais, equipamentos e testes. Na Itália, na Espanha, nos Estados Unidos, onde quer que se olhe, com raríssimas exceções, é aí que mora o fantasma. No Brasil a comparação entre hospitais públicos e privados indica que o retardamento do início do tratamento está matando mais ainda. Era tal o medo do colapso do sistema de saúde - que, de resto, já era crônico - que o principal foco da campanha no início da epidemia do coronavírus foi: “Não vá para o hospital ao primeiro sintoma. Lá é o melhor lugar para você pegar o corona. Espere sintomas como febre e falta de ar”...

Passado o pico da epidemia nas classes mais altas, que importaram a doença para o Brasil, o resultado desse “erro de comunicação” aparece trágico na disparidade chocante dos números dos hospitais públicos e privados. O Sírio-Libanês, com mais de 300 casos tratados, só perdeu um paciente. O Einstein, com mais de 400, só perdeu um paciente. Nos hospitais públicos os tratamentos são basicamente os mesmos, mas “as pessoas estão chegando mortas ou quase mortas”. Existe a trágica exceção do Sancta Maggiore.

Dedicado exclusivamente a idosos, foi lá que morreu metade dos pacientes perdidos na cidade de São Paulo. Mas na rede pública o principal fator de perda de pacientes tem sido o atraso no início do tratamento. Aumentou a mortalidade até por outras causas, pois as pessoas estão esperando até ser tarde demais para procurar esses “antros de contaminação pela covid-19”.

A quarentena, sempre é bom lembrar, não evita definitivamente a contaminação nem “salva vidas” diretamente, ela apenas espalha esses eventos no tempo. O que ela evita, sim, é o colapso dos sistemas públicos de saúde e o flagrante dos responsáveis por ele. A epidemia mesmo só refluirá quando cumprir o seu ciclo, isto é, quando contaminar e imunizar mais da metade da população e os números de baixas aos hospitais e aos túmulos começarem a diminuir naturalmente.

O “outro lado” dessa epidemia é, porém, bem menos “democrático” que aquele que corre só por conta do vírus. E nele se embalam os mais variados tipos de delírio. Gente como o ex-senador Suplicy, representante talvez extremo de um grupo grande de nostálgicos do século 20, está até feliz. Nunca viu o Estado tão perto de sustentar todo mundo do nada como ele sempre sonhou. Há um mal disfarçado tom de comemoração também em círculos engajados chiques que saúdam “a desaceleração de que a humanidade estava precisando”. Ninguém sintetizou melhor que Luiz Felipe Pondé em artigo para a Folha de ontem: “Perguntar por que os pobres não fazem quarentena é perguntar por que não comem bolo, já que não têm pão” - o que põe esses governadores que ameaçam “prender e arrebentar”, mais aquela imprensa que se alinha automaticamente com toda e qualquer multa ou tapa na orelha mais forte da “autoridade” contra os seus leitores no papel das nossas Marias Antonietas.

A quarentena, para todos os efeitos eleitorais, seja como for, é jogo feito. Bolsonaro está “de mãos lavadas” da responsabilidade para a qual, diga-se de passagem, ele não tem alternativa que não seja temerária; os governadores vivem o seu momento de onipotência e o lulopetismo olha de fora, esfregando as mãos, o circo pegar fogo.

O problema é como sair vivo dela e da maior recessão que o mundo já viu. Os novos miseráveis do Brasil não estão em nenhum mapa e, portanto, não dão matéria. E intraprivilegiatura tudo vai na santa paz de sempre. Enquanto “esquerda” e “direita” se esbofeteavam passou o 1.º round da desidratação das reformas onde a dificuldade sempre foi identificar quem - governo ou oposição - esvaziou mais o balão do resgate do favelão nacional da miséria para que não murchasse o que mantém a privilegiatura pairando acima do que der e vier e, 2019 entrando, o aumento de 16,32% para toda a tchurma assinado pelo STF das lagostas e dos vinhos de “no mínimo quatro premiações internacionais” até hoje não revogados. E, já sob pandemia, tivemos a exclusão das reduções de salários do funcionalismo do “Orçamento de Guerra” e o apedrejamento sumário do Plano Mansueto. Nada de vender estatais e fechar ralos históricos. Os heroicos governadores que acusam o povo indisciplinado pela pandemia aceitam, no máximo, um ano sem aumento para mandar suas dívidas inteiras de volta para o favelão nacional com a Lei de Responsabilidade Fiscal enfiada no mesmo saco. De passagem, liminar do condestável Lewandowski manda junto o cadáver da reforma trabalhista ao estabelecer que acordos entre patrões e empregados para driblar a crise só valem se assinados por sindicatos.

Resta-nos rezar pela cura. Mas esta interessa pouco à imprensa, como eu o convido a conferir lendo no www.vespeiro.com  a matéria que este Estadão recusou uma semana atrás.”