“Ressurreição
Por Ana Carla Abrão*, O Estado de
S. Paulo
O domingo de Páscoa marca a mais
importante celebração cristã, a ressurreição de Jesus, ápice da Paixão de
Cristo. A data coincide com a Páscoa judaica, ou Pessach, tradição milenar que
comemora a libertação do povo hebreu. Segundo o Livro do Êxodo, a Páscoa
Judaica aconteceu pouco antes da décima praga se abater sobre o Egito, matando
todos os primogênitos daquela terra.
Libertação ou ressurreição, a
Páscoa – cristã ou judaica – deste ano de 2020 passará para a história pela
intensidade que esses significados assumiram, nos convidando a reflexões
inéditas. A dimensão da crise de saúde pública e da recessão econômica que se
desenha, levam à revisão de conceitos e a novas experiências que certamente
transformarão o mundo e o Brasil – para o bem e, a depender das respostas à
crise, talvez também para o mal.
O Brasil foi atingido pelo surto
de covid-19 em situação econômica muito distinta daquela que nos caracterizava
no fim de 2008, quando a crise financeira mundial se abateu sobre o País. O PIB
daquele ano cresceu 5,1%, após uma queda de 3,6% no último trimestre de 2008 em
comparação com o trimestre anterior. Em 2007, o crescimento havia sido de 6,1%.
Em 2019, em contraste, ficamos com um frustrante 1,3% de crescimento e abrimos
o ano de 2020 com perspectivas de pouco mais de 2%. Essas estimativas já estão
sendo revistas para quedas em torno dos 5% estimados pelo Banco Mundial para o
Brasil.
Outros indicadores, como os
níveis de dívida líquida (12 pontos de porcentagem mais alto agora), desemprego
(11,2% agora, comparativamente aos 7,9% em 2008) e informalidade de 41%, frente
aos 28% em 2008, segundo o IBGE, também apontam para uma fragilidade econômica
muito maior.
Não por coincidência, nosso
mercado de ações apresentou uma das maiores quedas dentre os mercados mais
importantes, atingindo uma perda média de 40% entre 21 de fevereiro e 23 de
março. Uma economia frágil se reflete em perda de confiança, que se reflete em
destruição de valor. As maiores perdas se concentram nos setores diretamente
afetados pela crise, como o setor aéreo, mas também não pouparam os outros
setores, mostrando a característica de espalhamento da crise e sua disseminação
por toda a cadeia produtiva, diferentemente da crise de 2008.
As respostas emergenciais vieram.
Governos federal, estaduais e municipais se mobilizaram no combate à crise. O
Congresso tem agido de forma ágil. O setor privado se juntou como nunca antes
numa grande rede de filantropia. Vide o exemplo dos acionistas do Itaú
Unibanco, com a doação histórica de R$ 1 bilhão para o combate à crise. A falta
de coordenação por parte do governo federal certamente comprometerá a eficácia
de algumas das ações. Mas esse vácuo começa a se mostrar cada vez menos
relevante à medida que lideranças políticas e da sociedade civil vão assumindo
papel protagonista e outras diferentes de coordenação vão tomando forma.
Mas há que se tomar cuidado e
tentar qualificar as ações. Afinal, a crise é urgente e seu fato gerador deverá
ser, quiçá, temporário. Por outro lado, os impactos deverão ser mais ou menos
duradouros a depender da efetividade e foco das ações. Quanto mais evitarmos
resolver de maneira oportunista problemas de outra ordem e que nada têm a ver
com a atual crise, maiores as chances de emergirmos de forma mais organizada
desse grave episódio. Mais oportunistas e menos focadas, maiores as chances das
ações representarem apenas o agravamento da crise fiscal que já nos acompanha
há anos. E aqui destacam-se as discussões sobre o socorro aos Estados e o
desvirtuamento de uma solução estrutural como o Plano Mansueto, há meses
repousando no Congresso Nacional e agora ressuscitado.
Não há dúvidas de que os Estados
precisam de recursos e de salvaguardas para evitar seu colapso frente à queda
na arrecadação em função da brusca interrupção da atividade produtiva. Isso
deverá se dar via transferências diretas e também por meio da garantia de que
as perdas tributárias serão recompostas pelo Tesouro Nacional durante o período
necessário para o enfrentamento da crise e de suas consequências.
Ações adicionais de socorro à
economia e ao crédito no nível federal também deverão ser desenhadas. Mas
pendurar aí perdão de dívidas passadas e permissão para endividamentos novos em
níveis incompatíveis com a capacidade de geração futura de receita desses
entes, equivale a fomentar o descontrole fiscal e validar a irresponsabilidade
passada, e não a apoiar os gastos que sabemos necessários e urgentes. Confundir
as duas coisas equivale a comprometer nossa capacidade de recuperação no futuro
e a perpetuar a crise que por si só já é muito grave e profunda.
Há que se garantir que regras e
conceitos sejam respeitados e também que as bases das nossas instituições
fiscais sejam respeitadas. Somente elas nos garantirão a possibilidade de –
assim como nas Páscoas cristã e judaica –, passada a quarentena, nos
libertarmos desse vírus e ressuscitarmos nossa economia.”
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