“O peixe
não vê a água
POR BOLÍVAR
LAMOUNIER
Há quem
singelamente acredite que certas mazelas que assolam países comparáveis ao
Brasil – corrupção, violência, crime organizado – diminuem automaticamente à
medida que o crescimento econômico avança e a sociedade enriquece. Que bom se o
mundo fosse tão simples!
Na
verdade, a relação é curvilínea. É certo que, na origem, os dois fatos
coincidem. No nível mais baixo de desenvolvimento, todas essas mazelas (vou
usar esse termo como abreviação) permanecem contidas. Baixo crescimento, baixa
incidência de tais mazelas. Mas, com o avanço do crescimento, elas aumentam de
maneira acentuada e se mantêm por muito tempo em níveis muito elevados. Só
começam a declinar quando a sociedade atinge níveis muito altos de renda por
habitante e bem-estar.
Por que a
corrupção, a criminalidade e a violência são baixas quando o nível de riqueza
econômica é baixo? Por várias razões. Primeiro, porque a riqueza móvel é
diminuta e a riqueza imóvel (terra, gado...) é difícil de roubar ou de tomar
pela força. Segundo, porque a maioria da população se encontra dispersa em
grandes extensões geográficas, com baixa capacidade de organização e
comunicação e pouca instrução. É pouco adestrada no manejo de armas – quando
possui armas, fator crucial que as elites dominantes controlam sem muita dificuldade.
Ou seja, tudo o que as camadas majoritárias de baixa renda não possuem as
camadas dominantes têm de sobra.
Quando tem
início, o processo de crescimento econômico tende a ser muito rápido, uma vez
que se vale principalmente da incorporação de mão de obra de baixa qualificação
e em tecnologias assaz modestas. Acelerando-se, ele transfere a referida mão de
obra para indústrias e outras atividades urbanas, incidindo poderosamente sobre
a distribuição da população, que rapidamente se concentra em grandes cidades.
Essa população passa então a pressionar por habitação, alimentação e serviços,
e a nutrir expectativas mais altas. Apesar de sua pouca instrução, seus
contatos horizontais e sua capacidade de agir coletivamente aumentam. O
conflito distributivo aumenta tremendamente, uma vez que as camadas de baixa
renda não dispõem de reservas que lhes permitam sobreviver mais que uns poucos
dias. Vivem da mão para a boca.
Não menos
importante, as normas e os valores que antes reduziam a propensão ao conflito
perdem força; no Brasil, nem precisamos lembrar isso, pois a base escravista de
nossa pirâmide social não permitiu o desenvolvimento de uma estrutura normativa
capaz de exercer tal restrição. Teoricamente, a Igreja Católica poderia ter
retardado os conflitos, mas isso é um mito; entre nós, a Igreja foi também
muito fraca em termos organizacionais e quase nula no tocante à formação de
valores interiorizáveis como normas de conduta.
Eis o
ponto-chave: não é por acaso que estamos onde estamos, no olho do furacão.
Situado num nível relativamente alto de crescimento e falhando continuamente em
suas tentativas de superar a “armadilha da baixa renda”, o Brasil parece
impotente diante do agigantamento dos conflitos. Nossa renda anual por
habitante é baixa e vai continuar baixa por um bom tempo. E repito, aqui estou
falando da renda anual média; os que sobrevivem na parte de baixo da pirâmide
vivem nas imediações do inferno.
Os grandes
processos econômicos e sociais a que fiz menção não contam toda a história. De
tempos em tempos, o inesperado traz uma surpresa. Certos fatores políticos
negativos se abatem sobre a sociedade de uma forma que ela às vezes nem chega a
perceber. Dou um exemplo. No período dos governos militares, a discussão sobre
as causas da violência ficou praticamente fora da discussão pública. Os
militares queriam liquidar os movimentos armados, a oposição política queria
questionar as débeis políticas sociais dos militares. Inexistia, evidentemente,
um centro moderado capaz de identificar as nuvens negras que começavam a se
formar. O que tivemos foi um arremedo de Hobbes contra Rousseau: Maluf dizendo
que bandido bom é bandido morto e Montoro replicando que políticas sociais
vigorosas seriam o único antídoto para a crescente violência. Nesse quadro, o narcotráfico
entrou sem dificuldade, assoviando e chupando cana ao mesmo tempo.
No momento
atual, não é impossível que outra megadesgraça esteja em gestação. Estamos
ainda saboreando o rescaldo amargo da eleição presidencial: uma polarização
política estúpida, que pode dar ensejo a episódios de violência ou, de forma
menos visível, provocar uma deterioração irreversível em nossa capacidade de
conviver em paz. A radioatividade liberada pelo confronto entre bolsonaristas e
antibolsonaristas poderá tornar inviável por muito tempo a formação de um
ambiente de negócios saudável.
Temos
acreditado – e isso não me parece inteiramente falso – que temos instituições
robustas. Mas o conceito de instituições não deve ser compreendido numa acepção
formal estreita, como se dissesse respeito apenas à Constituição, à repartição
dos Poderes, etc. Sua robustez depende de um acolchoado pouco visível, formado
por atitudes e disposições de espírito positivas, externas a ela: daquilo que
Émile Durkheim agudamente designou como “os elementos não contratuais do
contrato”. A Constituição formal é um contrato de todos com todos, mas, por
melhor que seja, por mais bem elaborada que haja sido, ela pode tornar-se
incapaz de reger os destinos da sociedade em momentos de má-fé e desconfiança
mútuas entre os cidadãos ou entre parcelas relevantes da sociedade.
Esta
reflexão me traz à memória um episódio recente: o do general Augusto Heleno,
ministro do Gabinete de Segurança Institucional, comparecendo a um movimento de
rua e manifestando-se na linguagem de uma das seitas em confronto. Não me
parece que tal conduta tenha sido, naquele momento, a mais apropriada a um
general e ministro de governo.”
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