“Nossas instituições e sua circunstância
Por Fernão Lara Mesquita
No primeiro debate entre os 20 concorrentes à indicação para
candidato a presidente pelo Partido Democrata, nos EUA, o principal “argumento
de venda” foi apresentar-se como quem conseguiu o maior numero de contribuições
abaixo de US$ 200 e recusou mais doações milionárias. Está aí um exemplo de
como a boa regra induz o bom comportamento. Naquele país, a única que existe
para financiamento de campanhas é que os concorrentes estão obrigados a
declarar cada contribuição recebida no prazo de cinco dias. Cabe ao eleitor
avaliar se elas o comprometem ou não. Aqui, onde preferimos que o Estado
fiscalize tudo, inclusive a si mesmo, a perspectiva mais palpável é que na
próxima eleição nos seja arrancado mais que o dobro do que nos foi arrancado na
última, que cada partido receba seu quinhão segundo o desempenho na eleição
anterior, e não pelo que tiver feito de bom ou de ruim com o mandato recebido,
e que jamais saibamos quem, dentro deles, ficou com quanto desse dinheiro.
As instituições, como as pessoas, são elas e sua
circunstância. Não é à toa que a expressão que define a ordem institucional
democrática é checks and balances, “freios e contrapesos”. Cada instituição só
produz o efeito desejado quando referida a todas as outras. Tomadas
isoladamente ou encaixadas num contexto pervertido, elas quase sempre produzem
o efeito inverso do que se propõem.
No Estado Democrático de Direito “todo o poder emana do
povo” e toda lei só se torna lei mediante o seu consentimento explícito. O
primeiro direito que condiciona todos os outros é, portanto, o de o eleitor
livrar-se na hora do representante que só age em prol de si mesmo. E para que
isso seja possível é preciso, primeiro, que o sistema eleitoral permita saber
exatamente quem é o representante de quem e que os representados, e não os
representantes, tenham a prerrogativa exclusiva de acionar os instrumentos de
força criados para constrangê-los a lhes serem fiéis. Inverter essa hierarquia
é inverter toda a cadeia das lealdades. Nada é “consertável” no Brasil antes
que consertemos isso.
São as circunstâncias reais, e não a teoria, que põem o
corte de um lado ou do outro da lâmina de cada instituição. Afirmar como
“óbvio” na ordem institucional brasileira, onde o Estado tem todas as
prerrogativas e o cidadão nenhuma, o que é óbvio na ordem institucional
americana, onde se dá exatamente o contrário, é manter o País no beco sem saída
dos falsos silogismos em que andamos perdendo sangue, suor e lágrimas há 519
anos.
Assumir que a decisão monocrática do sr. Toffoli é
desinteressada, nada tem que ver com Flávio Bolsonaro, nem tira da porta da
cadeia e põe na da rua todos os criminosos com e sem mandato mais perigosos da
República é tão falso quanto negar que o sigilo bancário (até dos agentes do
Estado) é um direito que deve ser protegido em princípio... se todas as outras
instituições estiverem estruturadas para manter o Estado nas mãos dos cidadãos,
e não o contrário.
Se, por exemplo, os promotores públicos, aqui como lá,
fossem eleitos pelo povo, e não nomeados pelos políticos que têm por função
fiscalizar e contra cujos poderes têm obrigação de nos defender; se os juízes
passassem por eleições periódicas de confirmação; se tivéssemos os direitos à
retomada de mandatos e ao referendo do que vem dos Legislativos, é provável que
não nos ocorresse considerar uma lei específica de abuso de autoridade. Mas sem
a ancoragem de tudo à palavra final do eleitor e com todo cargo ou emprego
público sacramentado como um “direito adquirido” inalienável, é certo que até a
lei de abuso que vier será usada seletivamente, como todas as outras, na defesa
de privilégios, contra qualquer tentativa de eliminá-los.
O trabalho jornalístico que não parte desta que é a nossa
realidade, esta, sim, pra lá de óbvia, já começa falso. A justificativa do
instituto do sigilo da fonte, por exemplo, é sacrificar a transparência da
informação em nome do valor mais alto do aperfeiçoamento da democracia, a
primeira e inegociável razão de existir da imprensa democrática. Mas publicar
como se fosse produto de jornalismo investigativo os grampos e dossiês que as
partes que disputam o poder livres de qualquer compromisso exigível pelos
eleitores atiram umas contra as outras e manter anônima a fonte, quando não é
um ato de cumplicidade, é um convite para o aparelhamento do jornalismo.
A virtude sempre precisou de incentivos. A boa regra para
estes tempos em que o crime se especializou em usar em vez de fugir da imprensa
e da lei seria a do full disclosure, ou “transparência absoluta”, nas redações.
O jornalista que exige que servidores em atividade, como Deltan Dallagnol,
sejam obrigados a relatar as palestras que fazem, indicando quem pagou por elas
e quanto, além das atividades conflituosas de suas esposas e seus parentes
próximos, não terá nenhuma dificuldade de entender a importância do full
disclosure, não só das peças de “jornalismo de acesso” onde saber de onde vêm
os tiros contribui muito mais para o aperfeiçoamento da democracia que o
apedrejamento do alvo visado, mas até de contemplar a criação de uma versão
doméstica da lei antinepotismo.
Não há conflito obrigatório no fato de jornalistas com
cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade
até o terceiro grau assalariados ou detentores de privilégios concedidos pelo
Estado participarem da cobertura da guerra do Brasil plebeu contra a
privilegiatura. Mas a obrigação de declará-lo sob o hiperlink de cada
assinatura certamente os incentivaria a ser mais equilibrados no direcionamento
das suas investigações, além de ter um efeito fulminante contra a
instrumentalização anônima da arma da imprensa.
Os destinos do jornalismo e da democracia sempre estiveram
amarrados. O choque de transparência, para além de distingui-lo definitivamente
da luta pelo poder e da guerra suja da internet, teria para a qualidade do
jornalismo e da democracia brasileiros um efeito restaurador.”
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