“‘Cada
cidadão, um voto’ não passa de enfeite
POR JOSÉ
NÊUMANNE
O
presidente Jair Bolsonaro, eleito pela maioria dos votos úteis de cidadãos do
País inteiro, tem sido acusado por adversários e observadores independentes de
desrespeitar as instituições da nossa democracia representativa, especialmente
o Congresso. De fato, no quesito relacionamento com o Legislativo, o atual
chefe do Executivo tem deixado muito a desejar. Mas será que a Câmara e o Senado
têm representado a cidadania como deveriam?
Há
controvérsias. É público e notório que, nesta legislatura, uma quantidade
expressiva de parlamentares de praticamente todos os partidos se tem valido do
expediente legal, mas muito duvidoso, para ser gentil, do ponto de vista ético,
do foro de prerrogativa de função para escapar de punições penais e participar
ativamente da confecção e revisão de dispositivos legais. Só para citar os
casos mais abusivos, o deputado Celso Jacob (MDB-RJ) tem sido o menos faltoso
em sessões de comissão e plenárias de dia e dorme no presídio da Papuda, o
mesmo “lar” do senador Acir Gurgács (PDT-RO). Aécio Neves (PSDB-MG) e Gleisi
Hoffmann (PT-PR) fugiram de disputas majoritárias no Senado para se abrigarem
no seguro valhacouto do voto proporcional da Câmara.
Os casos
mais espantosos dos remidos do foro privilegiado são os próprios presidentes
das Casas. Davi Alcolumbre (DEM-AP) teve dois inquéritos sobre malversação de
verbas eleitorais arquivados na celebração da impunidade que é a Justiça
Eleitoral em seu Estado. Mas, mercê de denúncia do Ministério Público
Eleitoral, os casos pendentes estão no Supremo Tribunal Federal (STF). Eleito
presidente do Senado numa disputa fraudada, exposta às escâncaras pela
transmissão gerada pelo próprio canal do órgão, contou com a cumplicidade do
relator, Roberto Rocha (PSDB-MA), para arquivar investigação da fraude por
falta de evidências. Para máximo escárnio, o País tomou conhecimento em tempo
real dos detalhes da existência de um voto em dobro de nobre varão impune.
Outro suspeito
é Rodrigo Maia (DEM-RJ), do partido de Alcolumbre e do chefe da Casa Civil do
governo, Onyx Lorenzoni, este também réu confesso de ter usado caixa 2, que
será criminalizada se os deputados aprovarem decisão dos senadores que consta
da lei contra abuso de autoridade. O filho do ex-prefeito do Rio de Janeiro
César Maia tem o codinome Botafogo, seu time do coração, na lista de propinas
do Departamento de Operações Estruturadas da construtora baiana Odebrecht.
Eleito nos últimos lugares de sua coligação, é, contudo, no momento o herói
nacional da resistência do Congresso aos maus bofes do chefe do Executivo, e
indicado até como verdadeiro herói da reforma da Previdência.
A eleição
fraudulenta do presidente do Senado foi comemorada com euforia por brasileiros
de bem, por ter ele afastado da presidência do Congresso e da dita linha
sucessória da Presidência da República, pelo tal voto em dobro, Renan Calheiros
(MDB-AL). Primeiro presidente do Senado a se tornar réu no exercício do
mandato, o alagoano de Murici é alvo em mais 11 inquéritos no STF: oito dizem
respeito à Operação Lava Jato, um à Zelotes, um a desvios em Belo Monte e outro
sobre o caso Mônica Veloso.
A relação
de apavorados com a possibilidade de virem a motivar investigações no combate à
corrupção, acusados, denunciados ou processados não pode ser medida
aritmeticamente, pois muitos preferem esconder-se no meio do alarido das
sessões parlamentares. Mas há quem não dê a mínima para mostrar a cara e bater
boca. A presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), Gleisi Hoffmann, acusada
de ter participado de um esquema de corrupção na gestão do marido, Paulo
Bernardo, em que tungavam proventos de aposentados do Ministério do
Planejamento, solta o verbo contra a reforma da Previdência e se dirige a Sergio
Moro como se ele fosse suspeito e ela, juíza pura.
Mais do
que o despudor, a representação das instituições as põe em xeque. Desde que
depôs Collor e Dilma e manteve Temer fora do alcance da lei, a Câmara dos
Deputados tornou-se o poder de fato da República. Isso tem permitido golpes
recentes, caso do orçamento impositivo. E o faz como resultado da
proporcionalidade dos votos das bancadas estaduais e do decisivo sufrágio de
legenda, instrumento de fortalecimento dos partidos da Constituição ultraliberal
de 1946, remodelado e reforçado na Constituição “malandrinha” de 1988. Por esse
método usurpador, os Estados mais populosos, como São Paulo, não podem ter
representação de mais de 70 deputados, enquanto as bancadas dos menores, em
especial os antigos territórios federais, não podem ter menos de 8. Não venha o
leitor desavisado atribuir a este escriba apoio ou qualquer subserviência ao
atual governo, pois tenho travado essa batalha desde a época do debate do
Congresso constituinte. Aliás, o simples fato de a Carta Magna ter sido
debatida, escrita e promulgada por congressistas que se mantiveram no
Legislativo, e por quantos mandatos lhes aprouver, de vez que não há limitação
para reeleições, já basta para saber ao sabor de que interesses ela se tornou esse
vade-mécum enxundioso.
Entre a
Constituição nada cidadã do dr. Ulysses, que, com ajuda confessada de Nelson
Jobim, retocava seu texto sem aprovação prévia do plenário, e as refregas do
Legislativo contra Collor, Dilma e Bolsonaro passaram-se 31 anos de crise de
representação, na qual o brocardo “cada cidadão, um voto” é apenas um enfeite.
Ao longo desse caminho pedregoso, em 2010 José Roberto de Toledo escreveu Um
cidadão, 13 votos, que resume tudo na linha fina: “Por que o voto de um
paulista que vive em Roraima vale 13 vezes mais do que o de um pernambucano que
mora em São Paulo? Ou por que um carioca morador no Amapá equivale
eleitoralmente a 5 gaúchos baseados em Minas Gerais?”. E aí, mais até do que na
corrupção, está o busílis.”
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