“Privilegiados, uni-vos!
Por Denis Lerrer Rosenfield
A reforma da Previdência terminou, no campo da esquerda, por
provocar desalinhamentos entre os seus membros, com deputados se demarcando da
posição de seus respectivos partidos, sobretudo no PSB e no PDT, com PT, PSOL e
PCdoB mantendo a fidelidade de seus parlamentares. Os primeiros mostraram uma
salutar desavença interna, os últimos mantiveram-se firmes em suas origens
leninistas, em suas várias vertentes.
Contudo, para além do problema partidário de ordem
conjuntural, com ameaças de punições e expulsões, lideradas por chefões
partidários fazendo o seu teatrinho, existe uma questão de monta, concernente
ao que significa ser de esquerda. Ou seja, qual é o tipo de esquerda que se
alinha com os privilegiados de funções públicas e abandona os que não usufruem os
mesmos privilégios? Será que a mensagem da esquerda brasileira – e para além
dela – é uma mensagem particularista, corporativa?
A mensagem da esquerda, em sua vertente marxista, era
efetivamente universal. Estava voltada para a emancipação da classe trabalhadora,
naquele então denominada proletária, e, por intermédio dela, da humanidade. A
defesa dos proletários se faria por sua libertação das amarras do capitalismo,
instituindo um tipo de sociedade cuja característica central seria a igualdade
em todos os níveis, sem nenhum tipo de particularismo, nem de interesse
particular.
Para o presente propósito, não cabe a discussão sobre a
exequibilidade ou não dessa proposta, mas tão somente ressaltar sua
universalidade, sem a qual ela se torna claramente ininteligível. A
contraposição principal se estabelecia em relação aos burgueses, que deveriam
ser eliminados ou, em sua versão mais branda, tornados iguais. Não se tratava,
na posição marxista, de defender os interesses corporativos de funcionários
públicos em detrimento dos outros trabalhadores.
Em linguagem corrente: não tem cabimento político, nem
moral, que os trabalhadores comuns, com ganhos pequenos, financiem o regime dos
funcionários públicos, mediante aposentadorias precoces, integralidade de seus
vencimentos e paridade, entre outros benefícios. Seria a própria mensagem da
esquerda que estaria sendo traída, em proveito de um punhado de privilegiados,
que se arvoram, hipocritamente, em defensores dos “direitos sociais”, como se
fossem os direitos de todos os trabalhadores.
Os deputados rebeldes têm, dentre outros méritos, o de terem
resgatado uma mensagem de cunho universal, abandonando o corporativismo e o
particularismo de seus respectivos partidos. Os que não se rebelaram ficaram
atados à usurpação ideológica. Pensaram eles na sociedade como um todo, não no
caráter restritivo da conjuntura partidária. Partido, em sua definição, defende
uma parte, porém devendo integrá-la ao interesse coletivo, sem o qual cai nas
armadilhas do corporativismo e do fisiologismo.
A pauta previdenciária é uma pauta da sociedade e do Estado,
não apenas dos partidos políticos. Não se trata de ser a favor ou contra o
governo, mas de ser ou não a favor da coletividade, do bem maior. O cálculo
meramente partidário é particular, restrito às suas lideranças e a seus
interesses. Não tem nenhuma dimensão social.
Do ponto de vista da esquerda em geral, a mensagem dos
rebeldes foi de renovação, de sacudida das carcaças partidárias. Pensaram no
todo, e não na parte; no coletivo, e não no particular. Apesar das
incompreensões de seu gesto, estão proclamando por um reposicionamento da
esquerda e de seus respectivos programas.
Democracias contemporâneas dependem de uma esquerda moderna
e plural. Dependem de uma esquerda que pense os desafios do mundo atual,
acompanhando as enormes mudanças políticas, econômicas, sociais, culturais,
tecnológicas e científicas das últimas décadas, que transformaram a face da
humanidade. Pense-se no conceito marxista e positivista de proletário, para melhor
aquilatarmos a grande transformação. Perdeu seu significado, quanto mais não
seja, porque o mundo mudou.
O que tinha a esquerda a propor na reforma da Previdência?
Além do não dogmático, voltado para a defesa dos privilegiados e de suas
corporações, tinha algo a dizer? Não poderia ter apresentado uma proposta mais
universal do que aquela que, após laboriosas negociações, foi finalmente
aprovada em primeira votação? Não teria sido o momento de a esquerda dizer não
aos privilegiados e sim aos trabalhadores em geral?
Em vez disso, optou por abandonar os trabalhadores,
refugiando-se numa suposta fidelidade partidária e doutrinária. Ora, é
precisamente essa doutrina que está em questão. Ela não responde ao espírito do
tempo, funciona como óculos às avessas, que só vêm para dentro, retirando-se do
exterior.
O PT continua firme em suas posições esquerdizantes, à sua
origem leninista, apesar de seu namoro com a social-democracia no primeiro
governo Lula. O PCdoB e o PSOL seguem na mesma linha dogmática. O PSB tem
também um programa partidário de cunho marxistizante, cuja leitura remete a uma
peça de ficção política, própria de outro tempo. O PDT, originário do antigo
PTB, por sua vez, é fruto de outra concepção, oriunda do trabalhismo inglês e,
nesse sentido, já não segue a orientação leninista, algo próprio, então, dos
comunistas ingleses. Historicamente, correspondem ambos os partidos a uma
primeira versão da social-democracia no País, embora tampouco tenham seguido o
caminho da modernização. Haveria aí uma proximidade com os tucanos, com a atual
social-democracia brasileira, por terem fontes comuns.
Os debates da reforma da Previdência, extremamente pobres na
perspectiva das esquerdas, mostraram os impasses de uma modernização
necessária, mas claudicante e já atrasada. O seu dilema poderia ser assim
traduzido: O “proletários de todo o mundo, uni-vos!” tornou-se “privilegiados,
uni-vos!”. Triste destino!”
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