“Atenas,
Brasil
Por Pedro
Fernando Nery
Naquela
segunda-feira de outono, Seu Demétrio se juntou a mais de mil aposentados no
protesto contra os cortes. O prolongamento da recessão e a crise da dívida
levaram o governo a reduzir as aposentadorias. Seu Nicolau acompanhou a piora
dos últimos anos: o colapso dos hospitais públicos e o aumento do desemprego
aumentavam a pressão no orçamento doméstico. Tendo de ajudar os filhos sem
emprego, não poderia suportar a redução da aposentadoria.
A multidão
de cabelos brancos marchou, mas esbarrou com o ônibus da polícia bloqueando o
caminho. “Vergonha, vergonha!”, bradavam enquanto, enfileirados, balançavam o
veículo. A polícia reagiu. Gás lacrimogêneo e spray de pimenta sobre os
manifestantes idosos. Alguns foram para o confronto físico, outros arremessaram
objetos: a maioria, com dificuldade de respirar e olhos lacrimejando, tentou
correr.
***
Sem a
reforma da Previdência de 2019, a dívida seguia sua rápida expansão. De 60% do
PIB em 2014, já há muito ultrapassara os 95% – barreira que diversos estudos da
experiência internacional associam com redução do crescimento da economia. De
fato, o investimento tinha sumido: o Estado virara mera folha de pagamento. O
setor privado se via às voltas com sucessivas tentativas desastradas de aumento
de impostos e com a elevação dos juros.
A rolagem
da dívida foi ficando impossível. Credores demandavam cada vez prazos menores e
juros maiores. O círculo vicioso de mais dívida, mais juros e menos crescimento
virara um espiral fora de controle.
Diante da
crise política, o Supremo tentava arbitrar um curto-circuito constitucional.
Seu Demétrio e Seu Nicolau inicialmente comemoraram a decisão contra a
contribuição extraordinária dos aposentados. Perante o conflito entre
dispositivos da Constituição, o STF decidira que a regra de ouro que impedia a
emissão da dívida para pagar despesas correntes, do art. 167, não prevalece
sobre a irredutibilidade dos benefícios do art. 194 ou a vedação à tributação
das aposentadorias do art. 195.
Mas a
hiperinflação vinha fazendo o seu trabalho: o calote real nos compromissos do
governo. Sem reajustar adequadamente os benefícios, eles eram arrasados pela
inflação que beirava os três dígitos, provocando os protestos. Os aposentados
aguardavam o Supremo decidir se eram constitucionais as manobras com os índices
da inflação. Pela pressão do Executivo, demorava-se a pautar o julgamento principal:
sobre se as heterodoxas operações entre o Tesouro Nacional e o Banco Central
não violavam a proibição do art. 164, deste financiar aquele. A solução
inflacionista era a mais confortável diante da incapacidade de elevar impostos
ou reduzir gastos, mas a pobreza extrema subia aceleradamente.
Brasília
também administrava o naufrágio dos Estados. A fila de pedidos de socorro à
União não parou. De Santa Catarina a Alagoas, de Mato Grosso do Sul à Paraíba:
novas falências que se somaram às já presentes em 2019, como Rios e Minas
Gerais.
***
A cena
catastrófica de idosos levando gás de pimenta em protesto contra corte de
aposentadorias não foi inventada. Ela aconteceu na Grécia em outubro de 2016.
Jornais pelo mundo noticiaram o drama dos senhores Dimos e Nikos – aqui
aportuguesados para Demétrio e Nicolau. Foram 15 cortes sucessivos nos
benefícios.
Sem a
reforma da Previdência ou ajuste fiscal compensando, o Brasil seguirá caminho
parecido. Uma diferença é que aqui parte do corte será feito pela inflação
(presa ao euro, a Grécia não tinha como inflacionar).
Soluções
absurdas nesse sentido já são discutidas hoje, douradas como remédio indolor e
saída cidadã, em geral propostas pelo lobby do funcionalismo. Vão do uso dos
números “fictícios” contabilizados na Conta Única do Tesouro a confisco dos
correntistas com saque de recursos colocados pelos bancos no Banco Central –
como se não tivessem dono. Vinte e cinco anos depois, o real segue ameaçado.
Apesar de
não se aplicar imediatamente aos Estados, a reforma da Previdência ainda é
importante para eles. A mera opção das assembleias e governadores poderem
acatar a reforma é inegável avanço, pois não existe hoje: os Estados não têm
autonomia para reformar suas previdências, com regras constitucionalizadas.
O duplo
mergulho na recessão sem a reforma da Previdência não é diagnosticado apenas
pelo governo. É vislumbrado por parte de dezenas de analistas sondados na
publicação Prisma Fiscal, de abril.
Em
verdade, nosso Seu Demétrio e Seu Nicolau vão sofrer mais que seus equivalentes
gregos. Apesar da crise, a Grécia ostenta PIB per capita 50% maior que o
brasileiro. Seu Demétrio e Seu Nicolau enfrentarão crise de proporções gregas,
com renda da Macedônia.”
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