“STF curva-se
perante Erdogan
Por Demétrio Magnoli
Ali Sipahi era,
até um mês atrás, um homem comum. De lá para cá, por um ato do STF, tornou-se o
único preso político do Brasil. No 6 de abril, cumpriu-se sua prisão preventiva
para fins de extradição, determinada pelo ministro Edson Fachin, sob a acusação
de terrorismo. Kafka passeia entre nós: a prova do “crime” de Sipahi,
brasileiro naturalizado de origem turca, foi depositar, em 2014, uma ínfima
quantia no Banco Asya, então um banco legal na Turquia. Caímos baixo: o ato de
Fachin converte o sistema judicial brasileiro em tentáculo da repressão do
regime autoritário turco de Recep Erdogan.
Narro uma história
que, a essa altura, Fachin teria o dever de conhecer. A cisão entre Erdogan e o
clérigo Fethullah Gulen, seu antigo aliado, em 2013, provocou o declínio do
experimento democrático na Turquia. A perseguição ao Hizmet, movimento dirigido
por Gulen com centenas de milhares de aderentes, ganhou as dimensões de um
expurgo colossal desde a tentativa de golpe militar de julho de 2016, atribuída
sem provas a seu inimigo político. Sipahi está preso por pertencer à Câmara de
Comércio Turco-Brasileira e ao Centro Cultural Turco-Brasileiro, instituições
inspiradas pelo Hizmet. Ele é um prisioneiro de consciência feito pela nossa
precária democracia, que presta vassalagem judicial a um tirano.
Fachin não está
só no pátio da vergonha. Tem a companhia do vice-procurador-geral da República,
Luciano Mariz Maia, que assina um parecer do MPF contrário à revogação da
prisão preventiva. Conto o que os dois doutores fingem não saber.
Erdogan
qualificou o frustrado golpe de 2016 como um “presente de Deus” que propiciaria
a “limpeza social” da Turquia. O Hizmet, uma rede de sociedades filantrópicas,
escolas, centros culturais e instituições financeiras (como o Banco Asya),
prega a economia de mercado, o empreendedorismo e a conciliação do Islã com os
valores democráticos. Diante da onda repressiva de Erdogan, cerca de 250 turcos
ligados ao Hizmet encontraram no Brasil um pátria alternativa. Eles imaginaram
emigrar para uma nação que respeita os tratados internacionais de direitos
humanos e sua própria Constituição. O “novo” Fachin, um desmemoriado que se
esqueceu de suas decisões recentes, não podia fazer parte do cálculo deles.
Faz só três anos
que o STF revogou, por unanimidade, a prisão preventiva de um extraditando
solicitado pelo regime chavista de Maduro. O relatório, escrito por Fachin,
apontava as violações de direitos humanos, a perseguição de opositores e a
submissão do Judiciário ao Executivo na Venezuela. O cenário turco assemelha-se,
sob os três aspectos, ao venezuelano. Qual é a conveniência oculta,
extra-judicial, que explica o contraste entre as duas decisões?
Sipahi não se
chama Cesare Battisti. Jamais matou alguém. Nunca foi condenado por nenhum
tribunal independente. Cidadão brasileiro, com filho brasileiro, residência
fixa e 16 funcionários em São Paulo, ele não é uma “causa célebre”, da esquerda
ou da direita. O descaso conjunto do STF e do MPF com os princípios dos
direitos humanos o transformou em vítima de um regime que se nutre dos serviços
de um cortejo de juízes vergados diante do poder de turno.
Stalin instaurou
sua ditadura totalitária a pretexto de limpar a URSS dos “trotskistas”. Na sua
cruzada autoritária, Erdogan substituiu “trotskistas” por “gulenistas”. Os
expurgos turcos produziram a prisão de 50 mil opositores, inclusive cerca de
300 jornalistas e 600 advogados, a exoneração de 150 mil funcionários públicos
e de 4,2 mil juízes e procuradores, a demissão em massa de professores
universitários e o fechamento de 166 veículos de comunicação.
As garras
persecutórias do regime turco estendem-se pelo mundo todo, por meio das
embaixadas. Nas democracias, os magistrados protegem os exilados turcos da
fúria do tirano. Na Rússia, juízes que não merecem esse título mandam
prendê-los. Fachin, que permanece sentado sobre a sua decisão insensata,
empurra o Brasil à vala de Putin. Até quando aguardarão os demais ministros do
STF para dar um basta à marcha do arbítrio?”
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