Por Fernando Henrique Cardoso
Nos últimos artigos tenho insistido na necessidade da
formação de um “centro democrático progressista”. O que é isso? Desde logo, não
se trata de um “centrão”, ou seja, de um agrupamento de pessoas que dominam
legendas de partidos e, na prática, se unem para apoiar ou rejeitar propostas
do governo, cobrando um preço clientelístico. O “centro democrático” tampouco
pode ser um agrupamento anódino, que ora se define como favorável ao povo e
esbanja recursos, como os populistas, ora se comporta de modo austero, com bom
manejo das contas públicas, mas sem olhar para o povo, como os “neoliberais”.
Então, o que seria?
Escrevi sobre o “liberalismo progressista” dizendo que ele
se diferencia do “liberalismo conservador, de corte autoritário”. Neste, o
mercado é o deus ex-machina que molda a sociedade. O primeiro respeita os
mercados, sabe que as economias contemporâneas são “de mercado” (quase sem exceção),
mas sustenta que elas não dispensam a regulação e mesmo a ação do Estado na
economia. A atuação estatal, não sendo a única e nem mesmo a principal mola do
crescimento econômico, continua a ser necessária para evitar que a desigualdade
mine a democracia e o crescimento.
Na prática, o risco maior do liberalismo conservador, de
caráter autoritário, é o de derrapar para formas abertamente não democráticas
de decidir e assim aumentar o fosso entre dirigentes e dirigidos, abrindo
espaço para manifestações populares antagônicas ao poder. Já o risco do
progressismo é se transformar em populismo e, com o propósito ou o pretexto de
servir ao “povo”, desorganizar as finanças públicas, levar à inflação e ao
desemprego. O país cai na estagnação, abrindo espaço para a “direita” (ou seja,
para formas disfarçadas ou abertas de autoritarismo).
Não terá sido um vaivém entre essas formas de liberalismo,
autoritarismo e populismo (mais do que o risco de fascismos ou comunismos) o
que vem caracterizando boa parte das formas políticas do mundo contemporâneo?
Desse vaivém escapam os países onde liberdade e democracia não formam parte do
ethos nacional (os que não são ocidentais ou ocidentalizados). A oscilação
acima referida, e mesmo a dúvida sobre o valor da democracia representativa,
tem aumentado muito, afetando nações de tradição liberal. Não faltam autores
que chamam a atenção para estes desdobramentos: a crise das democracias, como
morrem as democracias, o povo contra as elites, e assim por diante, dão título
a muitos dos volumes que tratam dos fenômenos políticos contemporâneos.
Por trás desse desaguisado estão os novos meios produtivos e
as formas contemporâneas de comunicação, que moldam as sociedades. A primeira
vez que me dei conta disso foi em maio de 1968, quando eu era professor da
Universidade de Paris em Nanterre. Anos mais tarde, procurando teorizar a esse
respeito, disse no discurso em que transmiti a presidência da Associação
Internacional de Sociologia, em 1986, que os fios desencapados da sociedade
podem se tocar de repente, produzindo curtos-circuitos fora da polaridade
tradicional “proprietários versus trabalhadores” e dos partidos que no passado
os representavam. Havendo comunicação em rede, as faíscas que se acendem num
ponto se propagam para os demais e o protesto atravessa os limites entre
classes e segmentos sociais, contaminando amplos setores da sociedade. Essa
dinâmica do protesto e a velocidade da sua expansão já eram perceptíveis em
1968. Foi somente quando a TV e o rádio passaram a cobrir as manifestações
estudantis que estas entraram em contato com as negociações sindicais, que
antes se davam à parte e à distância.
Que dizer agora, quando a internet e as redes conectam as
pessoas e saltam as organizações? Se Descartes dizia cogito ergo sum (penso,
logo existo), hoje a frase síntese é outra: estou conectado, logo existo. Mais
ainda: as forças produtivas contemporâneas, com robôs e inteligência
artificial, aumentam a produtividade, concentram a renda e não geram empregos
na proporção da procura por trabalho, a despeito da redução da taxa de
crescimento da população. E graças à internet muitos ficam sabendo do que
acontece.
Não será esse o fantasma por trás dos “coletes amarelos” de
Paris, dos partidários do Brexit na Grã-Bretanha ou dos eleitores de Trump que
querem ver os Estados Unidos great again? E não haverá risco, em nuestra
America, de confundir a Frente Ampla (eventualmente vitoriosa no Uruguai), ou
os peronistas argentinos e agora as manifestações no Chile, que lembram o
Brasil de 2013, e mesmo no Equador ou na Bolívia, com uma luta tradicional da
“esquerda” contra a “direita”, como se ainda estivéssemos nos tempos da guerra
fria? A guerra agora é outra: menos desigualdade, fim da corrupção política,
mais empregos e melhores salários. E quando há diminuição do ritmo de
crescimento, como lembrava Tocqueville sobre a Revolução Francesa, a
insatisfação eclode forte, como atualmente no Chile.
Dito isso, o centro liberal precisa ser progressista não
apenas porque a igualdade de oportunidades e a garantia de um patamar de
condições de vida dignas para todos são essenciais para uma democracia estável
e uma sociedade civilizada, mas também porque vivemos outro momento do
capitalismo, no qual as políticas públicas devem ser complementadas pela ação
da sociedade civil. É do interesse da maioria existir um governo ativo e com
rumo. Capaz de respeitar as regras do mercado, mas também os interesses e
necessidades do povo. E estes não se resolvem automaticamente na pauta
econômica, requerem ação política e ação da sociedade.
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