“A virtude do
silêncio
Por Leandro
Karnal
Benjamin Moser
cita (faço sem consultar o texto lido há alguns anos) que Clarice Lispector foi
convidada para um jantar com um conhecido. O anfitrião, desconhecendo a pouca
afeição da autora à sociabilidade, convidou outro casal. Na saída, irritada, a
mais brasileira das ucranianas disse que não sabia que haveria muita gente à
mesa. O episódio aqui mal citado de memória remete ao conto O Jantar, da mesma
Lispector, traz o trivial relido sob a subjetividade de um observador.
Aparentemente, o conto parece indicar uma pessoa, Clarice, mais feliz em
observar alguém jantando do que em participar de uma refeição como comensal
ativa.
Ela ficava
atormentada com a presença de muita gente. Entendo-a. Infelizmente, não posso
ter a justificativa dela de ser tão brilhante na percepção do indizível que a
algaravia externa atrapalhe. Uma mulher genial como Clarice pode dizer: “Não
fiquem conversando comigo, pois estou criando A Paixão Segundo GH”. O mundo se
calaria com respeito similar aos milaneses que, diante do prédio onde o
compositor Verdi convalescia, colocaram feno nas ruas para que as carruagens e
cavalos não perturbassem a enfermidade grave do criador de melodias da
Traviata. Para Clarice e Verdi, teríamos o obséquio da mudez. Gênios podem ser
chatos, misantropos isolados para que saia a obra definitiva e impactante. Nós?
Seremos apenas chatos ao querer silêncio ou isolamento.
O mundo oferece
sístoles e diástoles sociais, como um coração. Expande-se ou contrai-se o
órgão, cumprindo suas funções vitais. A função pública, a vida em meio a grupos,
palestras e aulas e todo o processo expansivo, faz parte de algo natural e até
desejável. As ocasiões sociais ensinam, introduzem novas pessoas e desafiam no
sentido positivo. Acho que, com o tempo e a personalidade, tendemos a querer um
pouco mais de isolamento.
Li que os
finlandeses valorizam muito o silêncio, que só deveria ser quebrado em um
transporte público tendo em vista mal iminente. A notícia me faz desejar
Helsinque como alguns anelam Paris. Imagino um ônibus onde eu esteja imerso em
um livro e ninguém, jamais, nunca tenha a ideia de perguntar se o livro é bom.
Essa questão, para mim, é similar a interromper um casal no meio de uma relação
erótica e pedir aos envolvidos uma avaliação minuciosa do momento e se
recomendam alguma carícia em particular.
Sou colocado em
uma sala esperando uma palestra ou outro evento. De repente chega alguém,
compadecido da minha solidão, e decide que seria gentil ficar comigo
conversando. Sou bom em conversa rápida com pessoas desconhecidas. É um treino
de anos. Etimologia do nome da pessoa, dados familiares, pequenas questões
sobre algum símbolo ou joia que o interlocutor esteja usando, comentários
interessantes para preencher o silêncio e o vazio. A questão é que o vazio não
precisa ser preenchido porque ele não é ruim. O silêncio externo aguça o
interno. Tenho saudade dos Exercícios de Santo Inácio de Loyola, um mês de
retiro em quase total silêncio. A ordem religiosa dos trapistas e seus
prolongados períodos de silêncio também me animam muito. Li o grande trapista
Thomas Merton prestando atenção se a sabedoria dele era fruto do que ouvira ou
do que calara.
Sim, querida
leitora e estimado leitor: gosto de companhia e de conversas. Tal como Harold
Bloom, confesso que é difícil a competição entre o mundo descrito nos livros e
as conversas em geral.
O coração
funciona entre aberturas e fechamentos. Retraindo e expandindo, ele cumpre sua
missão. Surgiu uma categoria nova de silêncio: o dos celulares. Nada falo, mas
fico digitando e tagarelando pelos dedos. Pior, preguiçosos em geral adoram
gravar mensagens de voz, algo que abomino profundamente. Alguém pode ser um
gênio e dizer que não deseja muitos convidados. É o silêncio brilhante da
Clarice. Alguém pode transmutar-se em místico denso e fascinante como um trapista.
É o silêncio de Merton. Por fim, alguém pode dizer a um político desagradável
¿Por qué no te callas? É a vontade de silêncio real de Juan Carlos. Gênios,
santos e reis podem adotar ou impor o silêncio. Nós, mortais atarefados ou
entediados, temos de falar e de ouvir sempre. Nosso laconismo não é adornado
pelo QI extraordinário, pela coroa da glória celeste ou pelo diadema real das
Espanhas. Porém, caberia aqui o desejo utópico de um botão on e off sobre o
barulho circunstante? Não apenas conversas, mas gente vendo vídeos sem fone de
ouvido no avião, pessoas narrando seu cotidiano de um desesperador tom sépia e,
por fim, sibilar de vozes gravando ou ouvindo longuíssimos trechos narrados ao
celular...
O mundo é um
lugar barulhento. Dizem que os anjos cantam hosanas sem cessar no céu. O
inferno, afirma-se, tem o som forte de choro e ranger de dentes. Haveria um
espaço sem barulho algum? Teremos de buscar na Finlândia esse paraíso terreal
repleto da paz imperativa do silêncio? Ruas sem buzinas, salas sem celulares,
aeroportos sem avisos e o débil som das folhas do outono caindo, farfalhando,
tênues e poéticas. O que será que ouviríamos se não fôssemos todos algozes do
frágil silêncio? É preciso ter esperança.”
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