“Justiça nota
zero
José Nêumanne
Apesar de não
haver batido o recorde da participação de cidadãos nas ruas, ocorrido nas
manifestações de mais de milhão contra a má gestão do Estado e a favor da
deposição da então presidente Dilma Rousseff entre 2013 e 2016, impressionou a
multidão que foi à Paulista domingo contra o Supremo Tribunal Federal (STF) em
geral e, em especial, seu ministro Gilmar Mendes. Fotos e vídeos circulando em
perfis sociais não permitem definir quantos manifestantes se reuniram vestidos
de verde e amarelo e empunhando bandeiras. Isso se deve parcialmente à preguiça
de plantões de domingo e em parte ao desprezo que meios de comunicação e
autoridade policial devotam à cidadania desorganizada e desamparada. Ao não
prestar o serviço relevante à sociedade divulgando a contabilidade das massas
indóceis a Polícia Militar deixa esses cálculos à mercê da parcialidade dos
militantes que as convocam. E também revela o medo que seus chefes, da alta
hierarquia no Estado, têm da indignação das pessoas que vão às ruas protestar –
pânico que, por sinal, não disfarça um desdém criminoso.
No entanto, as
imagens publicadas apenas na rede mundial dos computadores não deixam dúvida de
que é notória a irritação que se espalha pela Nação ante a indiferença por seus
anseios de parte da cúpula do Judiciário, que se esmera em sabotar e
ridicularizar os esforços de agentes da lei. Estes veem seu longo e penoso
trabalho se perder no latinório vulgar dos togados. Parte da explicação desse divórcio
se explica, mas não se justifica, pela nomeação pelas autoridades, tratada com
preguiça e desídia pelo Legislativo, de julgadores dos tribunais superiores, em
especial do Supremo. Em exercício de mera demonstração de conta de padaria,
constatei na semana passada, em artigo publicado no Estado, que, como está
definido no título, Dos 11 do Supremo, só 2 são juízes concursados (Página 2, 3/04/19). Nem é preciso fazer soma
similar para revelar essa constatação no Superior Tribunal de Justiça (STJ), no
Tribunal Superior do Trabalho (TST) e no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Para refrear a
tentação de quem, na certa, argumentará que assim a lei prevê, este autor avisa
desde já que esta é apenas uma informação, sem adiantar juízo nenhum de valor.
Serve tão somente para facilitar a compreensão do leigo – grei à qual este
escriba pertence – em relação ao evidente divórcio existente entre sentenças
lavradas por juízes jovens, bem preparados e em contato com a vida real de lar
e rua e seu desmanche nos julgamentos de turmas e plenários das chamadas altas
cortes, viciadas pelo corporativismo dos quintos (legais) de corporações
profissionais ou funcionais com assento nos pináculos do Poder que se define
como “justo”.
A atual
composição do Supremo Tribunal Federal (STF) é o exemplo maior desse desajuste.
O presidente Dias Toffoli foi reprovado em dois concursos públicos para a
magistratura e subiu da condição de advogadinho do PT para advogadão-geral da
União e daí para o ápice da carreira. Lula, que o nomeou, preencheu mais duas
vagas com Cármen Lúcia e Lewandowski. Dilma, em um mandato e meio, mandou para
o topo mais quatro (!): Fachin (que manifestou apoio à candidatura da petista),
Rosa, Fux e Barroso, num total de sete pelo PT. Outros quatro chegaram ao ápice
da carreira pelas mãos de Sarney, Collor, Fernando Henrique e Temer.
Nem sempre essa
composição distorcida foi patrulhada pela turba. Esse ódio, ao contrário, foi
destilado exatamente da lua de mel vivida entre o STF e a opinião pública
durante o julgamento da Ação Penal 470, cognominada de mensalão pelo delator da
devassa, Roberto Jefferson, dono do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de
nossos dias. A popularidade gozada pelo relator do processo, Joaquim Barbosa, e
a impopularidade com que o povão marcou o revisor, Ricardo Lewandowski, foram
substituídas no momento em que a Operação Lava Jato começou a incluir tucanos
entre seus denunciados, acusados e réus. Foi isso que fez Gilmar Mendes, que
foi advogado-geral de FHC, acionar o dispositivo dos habeas corpus a granel. A
atuação do procurador, que perdoa em vez de denunciar, como seria mais próprio
de sua origem, chegou a extremos como o de desqualificar os ex-colegas em ações
de combate à corrupção, jogando no lixo tradições judiciais ancestrais, tais
como a renúncia ao julgamento por suspeição e a acusação insultuosa, genérica e
indiscriminada sem nomes nem provas.
O conjunto da
obra do mato-grossense inspirou o jurista Modesto Carvalhosa a encaminhar ao
Senado em 14 de março um requerimento a seu presidente, Davi Alcolumbre
(DEM-AP), para abrir um processo de impeachment contra ele. Como já jogou um
balde de gelo na fogueira que poderia ser ateada no outro lado da Praça dos
Três Poderes, o varão da fronteira terminou sendo no domingo 7 de abril o
destinatário do recado da multidão na manifestação referida no início deste
texto.
Carvalhosa,
aliás, também é autor de proposta mais ambiciosa, pregando uma Constituinte
exclusiva com mandatários impedidos de concorrer a cargos públicos até o
cumprimento de uma quarentena. Esta teria mais efeito genérico do que o caso
específico do tempestuoso ministro que se considera “supremo”. A falta de
prática e o parti pris de advogados e procuradores, mais numerosos na atual
composição, dada como a pior da História, poderia, por exemplo, ser substituída
pelo tal “notório saber”, expressão constitucional vaga, que poucos senadores
são capazes de entender por falta de prática, exigindo prestação de concursos
públicos para a magistratura e, à falta disso, currículo equivalente ao cargo.
Providência mais urgente seria a de pôr fim à vitaliciedade do posto,
limitando-o, por exemplo, a um mandato dos senadores que os sabatinam: oito
anos.
Nem a urgente
revogação da “PEC da bengala”, outra forma de mudar ocupantes das cadeiras no
STF, porém, bastará para garantir o caput do artigo 5.º da Constituição
federal, que reza: “todos são iguais perante a lei”. O inciso LVII deste artigo
preceitua que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória” e tem provocado uma guerra em que ele é
interpretado de forma elástica, tornando-se mais um deslize semântico do que um
impasse jurídico.
Toffoli, Celso,
Gilmar, Lewandowski e Marco Aurélio aceitam a leitura dos advogados que lutam
para esticar as autorizações para prisão de condenados às calendas do “trânsito
em julgado” (última sentença nas quatro instâncias existentes na prática na
barafunda jurisdicional cabocla). Segundo o sofisma, “considerado culpado”
significa “preso”. Contra ela votam Cármen Lúcia, Fachin, Fux, Barroso e Alexandre.
Rosa concorda com os primeiros, mas, como os últimos, acha que jurisprudência
não é publicação periódica para durar tão pouco. Há, ainda, quem lembre bem que
“sentença penal condenatória” é dada após segundo grau, no qual decisão
colegiada já define a natureza factual do delito, interrompendo a presunção da
inocência e só restando ao condenado recursos de natureza processual.
Fala-se muito na
eventual libertação de Lula com a provável vitória dos “garantistas”. E agora,
adiada sine die a sessão marcada para 10 de abril, vem à tona mais uma prova de
como os infindáveis recursos prejudicam as garantias do cidadão. O Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) confirmou a vitória do cantor João Gilberto
sobre a Universal, que incorporou a EMI-Odeon, gravadora em que este gravou
seus três primeiros LPs. Em setembro de 2018, João acusou o selo de ter
esvaziado o patrimônio da EMI para não pagar o que lhe devia. O músico,
apontado como o mais importante intérprete da Bossa Nova, vive em penúria e
agora viu reconhecido seu direito à indenização que cobra. Esse valor mais do
que bastaria para sanear as finanças do lançador de Desafinado. E o depósito
dificilmente criaria qualquer dano ao patrimônio de uma empresa do porte da
devedora.
No entanto, como
lembrou no domingo 7 o colunista da Folha de S.Paulo Ruy Castro, “ainda cabe
recurso e João Gilberto, 87 anos, terá de se transformar em Matusalém para ver
os R$ 173 milhões que a Justiça determinou a seu favor.” Como se sabe, a
contagem de tempo no livro mais lido de todas as eras não é igual à atual e a
possibilidade de João atingir os 969 anos atribuídos ao filho de Enoque, pai de
Lamaleque e avô de Noé é zero à esquerda, não os usados no título do texto de
Ruy, Uma questão de zeros. Esta, na certa, é a nota que merece nossa Justiça em
aplicação da igualdade de direitos entre um gênio da música brasileira e seu
devedor.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário