“Os
proprietários da miséria nacional
POR FERNÃO LARA
MESQUITA
A crise é
generalizada porque é uma crise dos fundamentos. O País perdeu a capacidade de
identificar as referências básicas em relação às quais se posicionar. Uma das
mais básicas dessas referências básicas é o direito de propriedade. A
brasileira, como toda sociedade deseducada, tem apenas a si mesma como
referência. Age como se o mundo tivesse começado com ela. E, como o Brasil
começou com apenas 13 proprietários, a defesa da propriedade privada nunca foi
popular por aqui.
Os 13
proprietários do Brasil eram, porém, apenas os prepostos do proprietário único
de Portugal e seu império ultramarino. Nas monarquias absolutistas “soberania”
e “propriedade” (ou patrimônio) eram dois nomes da mesma coisa ou, melhor, da
mesma pessoa. Tudo pertencia ao rei. O governante despótico não tinha de ir a
uma assembleia de representantes do povo para pedir dinheiro. A sociedade
inteira é que tinha de ir a ele para suplicar que lhe deixasse as migalhas do
pão que ela amassava.
A única exceção
foi o rei inglês. Não é por questão de gosto que na Inglaterra os castelos são
de pedra e madeira e os franceses, espanhóis, russos ou portugueses são de
ouro. Numa luta que vai fazer mil anos desde a Carta Magna de 1215, o rei
inglês foi mantido sempre e cada vez mais “pobre” e mais dependente do
Parlamento para manter seus luxos e sustentar suas guerras. Cada novo pedido de
sua majestade por recursos foi negociado em troca de uma garantia a mais de
proteção da propriedade de cada indivíduo da plebe sobre o resultado do seu
trabalho contra o poder do rei e seus “nobres” de tomá-lo para si, até que, a
partir de 1680, o Parlamento ganhasse a supremacia de que desfruta até hoje.
A propriedade e
a liberdade individuais emergiram, portanto, de uma luta travada entre um corpo
de representantes do povo, que só tinha de seu a sua capacidade de trabalho, e
um déspota. Onde o rei ou seu equivalente foram compelidos a depender do
Parlamento ou seu equivalente como fonte de alimentação da sua renda, a
propriedade individual foi ganhando proteção cada vez mas sólida e a liberdade
floresceu. Onde aconteceu o contrário o resultado foi o inverso.
A propriedade
dos meios de produção onde esse tipo de processo histórico ocorreu não é um
privilégio, ao contrário, é uma responsabilidade que atrela o seu titular ao
processo de produção. Os proprietários sem proteção de “reis” são compelidos
pelo mercado a voltar a sua propriedade para a melhor satisfação dos
consumidores, e os que forem lentos ou ineptos nesse processo serão penalizados
por prejuízos e, se não aprenderem a lição, pela perda dessa propriedade.
“Mas é
precisamente dessa escravidão que é preciso libertar o homem”, dirá um francês
ou um aluno dos franceses da USP dos tempos em que ela existia como
universidade. A alternativa é a privilegiatura, esse nosso feudalismo
remasterizado, lembrará este escriba. Não há terceira via...
Hernando de Soto,
no seu livro clássico O mistério do Capital: por que o capitalismo triunfou no
Ocidente e falhou nos outros lugares, deixou a teoria de lado e foi a campo
fazer medições do valor da obra visível dos contingentes mais pobres das
populações do Cairo, Lima, Manila, Cidade do México e Port-au-Prince (Haiti).
Os resultados foram surpreendentes. No Haiti o valor dos imóveis rurais e
urbanos ocupados por essa população e as construções neles existentes montaram
a US$ 5,2 bilhões em valores de 1995, quatro vezes mais que os bens de todas as
empresas operando legalmente no país, nove vezes o valor de todas as
propriedades do governo e 158 vezes o valor de todos os investimentos
estrangeiros diretos feitos no Haiti em toda a sua história. No Peru, os US$ 74
bilhões medidos equivaliam a cinco vezes o valor de todas as empresas com ações
na bolsa de Lima, 11 vezes o de todas as empresas privatizáveis do governo
peruano, 14 vezes mais que todo o investimento estrangeiro feito no país ao
longo de toda a sua história. Cairo, Cidade do México e Manila deram resultados
ainda mais astronômicos. O livro registra uma menção ao Brasil, cuja indústria
imobiliária passava por uma forte crise naquele momento, mas as vendas de
cimento batiam recordes todos os meses. O “favelão nacional”, hoje de dimensão
continental, estava em plena construção...
A conclusão é
que não são a disponibilidade de recursos naturais, o espírito empreendedor ou
a quantidade de trabalho investido que explicam a diferença da riqueza das
nações, mas sim o grau de proteção da propriedade privada de que cada uma
desfruta. Onde ela é garantida, a obra de cada cidadão, rico ou pobre, menor ou
maior, é “capital vivo” que serve, como no caso da residência de cada cidadão
nos EUA, como garantia dos seus próximos investimentos, que, por sua vez,
garantirão os desenvolvimentos seguintes. Com o tempo, desenvolve-se uma
padronização de linguagem e regulamentação e todos os bens ganham uma segunda
dimensão “de representação” que pode ser transacionada sem as limitações de
“portabilidade” do bem físico, enquanto nos países onde essas residências são
favelas erguidas em terrenos que ninguém sabe de quem são ou serão a mesma
quantidade de esforço investido transforma-se apenas em “capital morto”, cuja
propriedade não está garantida nem mesmo para quem a construiu pessoalmente, e,
portanto, não se desdobra em fruto nenhum.
A massa
miserável precisa, portanto, da garantia da propriedade para apropriar-se do
resultado do seu esforço e sair da miséria. A questão é identificar a
ferramenta política capaz de transferir o poder das mãos de quem aparelha a
força do Estado para apropriar-se do resultado do trabalho alheio para as de
quem precisa da proteção do Estado contra esse tipo ancestral de rapinagem. E,
como o nosso Poder Judiciário demonstra todos os dias com “autos de fé” contra
os hereges do “sistema” ou simplesmente pela força dos seus holerites, manda no
Estado quem tem o poder de contratar e, principalmente, de “demitir” políticos
e funcionários públicos.”
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