“Chernobyl
Por Monica De
Bolle
“Onde antes
temia o custo da verdade agora apenas pergunto: qual o custo das mentiras?”
Termina com essa indagação a minissérie do canal HBO sobre o terrível desastre
nuclear de 1986 na Ucrânia, então sob domínio da União Soviética. A série é
sobre a tragédia, mas é também sobre um regime pútrido, carcomido pela
corrupção e pelas mentiras. As citações memoráveis são quase todas sobre as
mentiras. Considerem essa: “Quando a verdade ofende, mentimos e mentimos até
não sermos mais capazes de lembrar que ela sequer existe. Mas existe. Está lá”.
Ou essa: “Todas as mentiras que contamos são uma dívida com a verdade. Mais
cedo ou mais tarde, essa dívida será paga”.
O Brasil vive de
mentiras há muitos anos, portanto a dívida com a verdade é vultosa. Algumas
dívidas já começaram a ser pagas, como a acumulada após anos de mentiras sobre
a economia. Na semana passada escrevi sobre versão tropical da estagnação
secular da qual padece o Brasil. Permitam que eu puxe esse fio mais um
pouquinho. O PIB quase inercial brasileiro é a dívida que temos a pagar após
anos de má condução econômica e do acúmulo de mentiras. As mentiras que nos
contavam quando diziam que o País não tinha problema fiscal algum, que tudo
estava sob controle. As mentiras que levaram às pedaladas, à expansão
desordenada do crédito público, à crença de que tolerar mais inflação hoje
traria recompensas na forma de alta do investimento, à ilusão de que a redução
da desigualdade era para sempre mesmo com toda a macroeconomia fora do lugar.
Essas foram
apenas as mentiras mais recentes, algumas contadas durante o segundo mandato de
Lula, muitas contadas ao longo do primeiro mandato de Dilma, mais outras tantas
nas campanhas eleitorais. A verdade cobrou seu quinhão em 2015 e 2016, e,
implacável, continua a fazê-lo até hoje. Afinal, também tivemos a mentira de
que a remoção de Dilma traria o crescimento econômico, a confiança, o
investimento, tudo isso de volta, sem prejudicar as instituições do País.
Tivemos a mentira de que o teto de gastos de Temer – por necessário que fosse,
apesar de mal desenhado – restauraria o motor engatado da atividade econômica.
A verdade,
sempre à espreita, é que a economia brasileira perdeu dinamismo há tempos
porque os governantes do País pouco se preocuparam em modernizar a indústria,
abrir a economia, priorizar a educação, investir na infraestrutura. E, prestem
bem atenção: a mentira não tem partido, ou vício ideológico, ou religião, ou
gênero, sexo, raça ou cor. A mentira é negação, ofuscação, omissão, distorção.
A mentira às vezes é intencional, às vezes não. Nada disso importa.
Chernobyl. Não
deveria ser metáfora para esse momento, mas o Brasil é aquele reator que,
descontrolado, não consegue parar de aumentar a temperatura do desastre. A
Operação Lava Jato desvelou mentira após mentira, expondo políticos,
empresários, gente que em outros tempos jamais seria pega pela justiça. No
último episódio da série, o físico nuclear Valery Legasov, explica como
funciona um reator nuclear. Didaticamente, expõe os pesos e contrapesos
necessários para controlar o elevado grau de instabilidade do processo de
fissura atômica. Assim revela como os erros humanos – além do erro de desenho
das válvulas de controle do reator – levaram o sistema da estabilidade à total
e irreversível instabilidade. Algo disso soa familiar após revelações recentes.
Os responsáveis
pela Lava Jato iniciaram os trabalhos como um reator em equilíbrio, a cada
etapa gerando a energia necessária para que o mal maior – a corrupção – fosse
punido. Contudo, em algum momento, o reator tornou-se instável. Ao que parece,
alguns dos responsáveis pela operação Lava Jato não viram claramente como as
suas ações passavam rapidamente do equilíbrio ao desequilíbrio, possivelmente
cruzando limites que não deveriam jamais ser cruzados. É importante que se
reconheça que nós, não juristas, não especialistas, não investigadores, não
sabemos se limites intransponíveis foram realmente atropelados. Para tanto, é
preciso que se tenha a investigação – tal qual fizeram os cientistas que
conseguiram chegar às causas verdadeiras da explosão de Chernobyl. As verdades
precisam estar visíveis para que o País possa sair do processo de autocorrosão
no qual está metido há mais de dez anos. Isso requer a devida lucidez para
reconhecer que há inocentes e culpados de todos os lados, não importa o
partido, a religião, a ideologia
Mentira corrói,
cria inimizades, polariza. Mentira destrói. Assistam Chernobyl.”
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