O arquiteto do imprevisível
Por Fernando Gabeira
Tantos votos no fim de 2019 de que o ano novo fosse leve, e
ele praticamente começou com as bombas sobre o carro do general Suleimani, no
Iraque. De novo a tensão, o medo da guerra e tonitruantes ameaças.
Com a humildade de quem não conhece os meandros da política
no Oriente Médio, meu primeiro impulso foi entender a estratégia de Trump.
Recorri aos especialistas, mas não foram poucos os que admitiram incompreensão
diante dos passos do presidente dos EUA. O que ele quer adiante, como vai
desdobrar esta crise por ele agravada?
O próprio Trump afirmou que não estava começando uma guerra,
e sim tentando acabar com um conflito. Dois tipos de debate surgiram: os que
valorizam ou condenam a ação do Trump e os que, simplesmente, se limitam a
perguntar se foi sábia a sua decisão.
Há uma longa história de atritos entre EUA e Irã, mortes,
sequestros, derrubada de aviões. Por que agora Trump deu um passo que nem Bush
nem Obama ousaram arriscar?
Havia uma tensão crescente, morte de um americano,
bombardeio das guerrilhas xiitas no Iraque, invasão da embaixada americana. Era
uma sucessão de escaramuças, mas não completamente estranha às relações dos
dois países.
Assim como é difícil entender por que Trump decidiu isso
agora, também é difícil prever todas as consequências.
Não creio que o Irã, apesar da pressão popular, vá retaliar cegamente
ou mesmo abrir várias frentes de luta contra os EUA. Seus líderes são
experientes, embora alguma resposta tenham de dar imediatamente.
Suleimani era um dos artífices da repressão interna aos
manifestantes contra o regime iraniano. Sua morte uniu o país e, certamente,
esvaziou, no momento, os anseios democráticos de uma parte da população. Sua
influência se estendia às milícias do Iêmen e do Iraque, aos governos na Faixa
de Gaza, na Síria e no Líbano, onde o Hezbollah também é forte.
No entanto, até agora houve apenas duas reações políticas
consideráveis. No Iraque, houve a decisão da retirada das tropas americanas,
decisão cujo modo de realizar ainda é incógnito. Por seu lado, Teerã anunciou
que deixaria o acordo nuclear costurado por Obama com a participação da Europa.
Trump já se desligou dele em 2018, abrindo o caminho para seu fracasso.
Não só pela clássica hostilidade entre EUA e Irã, a política
norte-americana na região não é fácil de ser formulada. Obama tentou um caminho
conciliatório, baseado em negociação. Mas dois importantes aliados, Israel e
Arábia Saudita, não aprovavam esse enfoque. O próprio Obama ordenou a execução
de muitos oponentes usando drones. No seu governo, Osama bin Laden foi
despachado deste mundo. Mas os executados por Obama eram considerados
terroristas e, sobretudo, não tinham cargos em governo, como Suleimani, nem
eram tratados como heróis nacionais.
É essa linha que Trump ultrapassou, linha que, submetida ao
Congresso, talvez tivesse enormes dificuldades de aprovação.
Ainda não conhecemos as consequências. Mas Trump arriscou um
passo perigoso quando ameaçou destruir os bens culturais do Irã. Apesar da
simpatia que desperta entre seus adeptos e admiradores, incluído o governo
brasileiro, Trump isolaria dramaticamente os EUA se rebaixasse o país ao nível
dos taleban ou do Isis, que destruíam, sorrindo, obras caríssimas à humanidade.
Em primeiro lugar, romperia com a própria posição americana,
que respaldou em 2017 a condenação ao bombardeio do legado cultural dos países
em guerra. Mesmo dentro dos EUA, não sei se seria respaldado nessa decisão. Vi
uma entrevista de fonte do Pentágono dizendo que não tinham planos de atacar
alvos culturais. Não deixa de ser um apelo do tipo: não nos meta nessa
empreitada.
Se um simples articulista tem de estudar e tomar certas
precauções diante de um quadro complexo e dinâmico, imaginem um país. Se me
lembro bem dos tempos da política, a fórmula clássica é estimular a distensão e
reforçar os votos pela paz e pela solução pacífica dos problemas. Mesmo sem
entender bem o quadro, é uma declaração que não tem como comprometer o País.
É compreensível que Bolsonaro e seu ministro tenham tomado
uma posição de apoio a Trump, se levamos em conta suas ideias. Entra aí uma
questão que cansei de criticar no PT: a política externa não é uma decorrência
direta das ideias de um presidente ou de um partido. Ela se move de forma mais
cautelosa, porque representa uma política nacional, certo tipo de consenso que
tem um passado e, certamente, um futuro.
Na cabeça de Bolsonaro, as coisas funcionam assim: o PT
apoiava Cuba e Venezuela, ganhamos as eleições, temos o direito de apoiar os
EUA de forma irrestrita. Essa é a dificuldade, supor que uma vez ganha as
eleições o vencedor impõe ilimitadamente sua vontade.
A suposição de que a política externa seja apenas uma
decorrência da visão partidária se estende a outras áreas, com o mesmo
potencial corrosivo. A produção artística, por exemplo. A ideia é a mesma: se o
PT apoiou um determinado tipo de produção cultural, a hora é de mudar
radicalmente e apoiar um campo simetricamente oposto. Em ambos os casos –
política externa e produção cultural – uma visão desse tipo é perigosa.
No campo internacional, desfigura uma construção simbólica
que o País levou décadas para afirmar. No campo cultural, simplesmente anula o
estatuto independente da arte e a considera apenas petista ou bolsonarista, na
realidade, uma extensão do populismo de esquerda ou de direita.
É esse tipo de equívoco que talvez leve Trump a afirmar tão
naturalmente que pode bombardear os bens culturais do Irã. A mesma ilusão dos
aiatolás, que tentaram remover as ruínas de Persépolis por acharem ser símbolo
de uma cultura decadente.
Não conseguiram, mas a ideia é sempre a mesma: ou a cultura
é uma propaganda ou merece ser destruída.”
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