“Os Farias Briters
Por Pedro Fernando Nery
Quanto ganham, como é o seu jeito de viver? Um terço deles
ganha o Bolsa Família. Mais da metade vive sem esgoto, mais de 20% vive sem
coleta de lixo, cerca de 10% vive sem banheiro. Eles são os moradores de Farias
Brito, município de 19 mil habitantes no Ceará. Ou os Farias Briters, para
fazer um paralelo com os famosos Faria Limers.
Os Faria Limers são os que povoam a Faria Lima. O
conglomerado ao redor da avenida reuniria uma população um pouco inferior à do
município cearense, 16 mil. Os Faria Limers foram capa da Veja São Paulo: são
os profissionais bem remunerados, até superstars, que trabalham nas empresas
altamente produtivas do local.
Vão dos grandes bancos nacionais e estrangeiros às Big Tech
(Google, Facebook), passando por escritórios de advocacia e assets do mercado
financeiro. A reportagem viralizou na internet, que aproveitou para fazer memes
com os hábitos de trabalho e de consumo dos invejados Faria Limers, early
adopters e entusiastas de itens como patinetes elétricos, coletes de náilon e
meias coloridas. A expressão se difundiu: o próprio Estado a usou para se
referir a Guedes e Doria indo para Davos.
O contraste dos Faria Limers − os mais bem incluídos no
mercado de trabalho e na sociedade de consumo – e os Farias Briters, os
excluídos, é para se ter em mente no momento em que o País ensaia uma
recuperação mais forte. A desigualdade continuará um gigantesco desafio na
retomada, e a agenda não pode ser pautada somente por um dos extremos.
O Caged registra novas vagas formais criadas em Farias Brito
no ano que passou: 30, puxadas pelos serventes de obra. Não recuperou,
portanto, as 73 carteiras assinadas perdidas entre 2015 e 2018. Os números
podem parecer muito baixos, e é porque são: no ano do Pibão de 2010, a
informalidade alcançava 80% dos Farias Briters com ocupação. Aquele censo
registrava ainda 70% da população vulnerável à pobreza.
O PIB per capita está abaixo do salário mínimo: o Farias
Briter vive em média com R$ 30 por dia (o tíquete de almoço na Faria Lima chega
a R$ 110 segundo a Abrasel). A mortalidade infantil em Farias Brito é igual à
da Suécia, há 50 anos. O IDH equivale ao da Botswana. A maior cidade vizinha,
Juazeiro do Norte, tem taxa de homicídio quatro vezes maior que a de São Paulo:
55 por 100 mil habitantes, assídua na lista do Mapa da Violência.
As crianças são um quarto da população do município cearense
(o dobro da proporção na subprefeitura de Pinheiros, que abriga a Faria Lima).
As transferências da Seguridade Social, concentradas nos mais velhos e no
mercado de trabalho formal, pouco chegam ali. Os benefícios do INSS são
predominantemente os rurais (72%) e o BPC (12%). Por isso, Farias Brito não é
afetada pela reforma da Previdência (somente 6% são aposentadorias por tempo de
contribuição). Com a reforma, porém, o espaço fiscal para benefícios como o
Bolsa Família será menos limitado.
A reforma tributária também seria importante. Por conta de
um sistema regressivo que tributa pesadamente o consumo, o Farias Briter paga
mais imposto que o Faria Limer – em proporção à sua renda.
Há esperança. Se estudos como os de Alexandre Rands mostram
que a raiz da desigualdade regional brasileira é a desigualdade na educação, é
ótimo perceber que Farias Brito segue o exemplo de Sobral e da excelente escola
cearense de políticas públicas.
Embora esteja entre os 30% municípios mais pobres do Brasil,
Farias Brito é top 10% no Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica).
O progresso aparece ano a ano: na década que passou todos os índices passaram a
superar os da rede pública do município de São Paulo.
O Congresso se movimenta. Duas propostas poderiam elevar
substancialmente as transferências às crianças pobres de Farias Brito, com
baixo ou nenhum impacto fiscal. O Senado já aprovou no fim do ano o Benefício
Universal Infantil, e a Câmara discute a Agenda para o Desenvolvimento Social,
que fortalece o Bolsa Família. Os dois projetos são focados nas crianças na
primeira infância e na extrema pobreza. Elas não escolheram onde nascer:
poderiam ter sido filhas de Faria Limers, mas a loteria da vida as colocou em
famílias Farias Briters.”
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