‘Presidencialização’ da política?
Por Pedro S. Malan
“Poderão as democracias sobreviver quando são as crenças
pessoais e não os fatos que sustentam nossa visão de mundo? Esta é a pergunta
que deverá marcar não apenas 2020, mas os anos seguintes.” Ela foi feita neste
jornal (27/12) por Pedro Doria e é especialmente relevante no Brasil de hoje,
marcado por uma certa presidencialização da política.
Não se trata, está claro, de peculiaridade de nosso país. Em
seu último número de 2019, a revista The Economist comenta (pág. 125) o
resultado de amplo mapeamento feito pela empresa Chartbeat, que mede audiências
para jornalismo online. O universo inclui 5 mil sites e 4 milhões de artigos,
divididos em 34 tópicos (pessoas e temas). Assim como no ano anterior, em 2018
o presidente Donald Trump dominou as atenções: foram 112 milhões de horas
diárias na leitura de peças jornalísticas, em média mais de 300 mil horas por
dia e picos de mais de 600 mil ou 700 mil. Nenhuma outra palavra ou tema
rivalizou ao longo do ano, em termos de interesse sustentado, com Trump.
Pudera, em apenas um dia de dezembro o presidente dos EUA emitiu nada menos que
123 tuítes. (O evento recordista, mas apenas por um dia, foi o incêndio na
Catedral de Notre-Dame, em Paris.)
Trata-se da presidencialização da política, versão EUA. O
presidente é fonte inesgotável de notícias e de sua multiplicação através das
redes sociais – por seguidores, pelos que discordam, por robôs de ambos os
lados. O que importa é estar em evidência e ocupar sempre espaços na mídia, a
favor ou contra; é manter permanentemente mobilizado o eleitorado.
É natural, compreensível, que o poder incumbente esteja no
centro das atenções. Em regimes presidencialistas, o chefe do Poder Executivo
ocupa lugar privilegiado. Não é surpresa que Jair Bolsonaro – que, como sabido,
tem Trump como modelo – tenha visibilidade na mídia muito superior à de outras
lideranças políticas. A Folha de S.Paulo (31/12/2019) listou suas próprias
manchetes do ano, 365. Bolsonaro ocupa posição mais de duas vezes superior à do
segundo colocado (governo); e está mais de três vezes e meia à frente do
terceiro colocado – Lava Jato e Previdência, empatadas.
E quais os traços centrais dessa política presidencializada
que caracteriza o Brasil de hoje e tende a predominar ao longo do próximo
triênio? Decididamente, o presidencialismo à brasileira não é, desde a eleição
de Bolsonaro, o conhecido presidencialismo de coalizão. Além de rejeitar
coligações partidárias no Congresso, nosso presidente implodiu o próprio
partido pelo qual foi eleito. (As liberações para emendas parlamentares, no
entanto, bateram recorde em 2019.) Tampouco tem sido um presidencialismo de
cooptação, de animação ou de isolação, como já os tivemos.
O nosso é um caso de presidencialismo de confrontação, à
moda de Trump, para manter um eleitorado fiel permanentemente mobilizado. Para
quê? Para 2022, decerto; talvez já para 2020, se o novo partido estiver
regularizado até lá. E para mais também, talvez. O principal mentor intelectual
de Bolsonaro, filhos e alguns ministros assim se expressou em vídeo recente(outubro
de 2019): “A política não é uma luta de ideias, é uma luta de pessoas e de
grupos. Tem que parar com essas concepções ideológicas gerais que não levam a
parte alguma. O que você tem que saber é exatamente o que fazer no momento
decisivo”. Ainda em outubro de 2019, via tuíte, já havia postado que “só uma
coisa pode salvar o Brasil: a união indissolúvel de povo, presidente e Forças
Armadas”. O que seria o mencionado momento decisivo? Ainda cumpre esclarecer.
A pergunta feita por Pedro Doria, relembrada acima, faz
pensar em Aldous Huxley: “A sobrevivência da democracia depende da capacidade
de um grande número de pessoas de fazer escolhas realistas à luz de informação
adequada”. A observação, feita em 1958 (Admirável Mundo Novo Revisitado), permanece
tão atual quanto relevante. Raymond Aron sempre apontou o fato de que, no mundo
da política, crenças prevalecentes numa sociedade podem e devem ser vistas como
parte integrante de teias de fatos, percepções e circunstâncias que configuram
aquilo que chamamos realidade. Keynes, a seu turno, atribuía grande importância
ao que denominou degrees of belief (graus do acreditar) prevalecentes em
determinada sociedade. Entre nós, o tema foi tratado com brilhantismo por
Eduardo Giannetti em seu livro O Mercado das Crenças, que antecipou os estudos
do Prêmio Nobel Jean Tirole sobre produção, consumo e investimento em crenças.
São todas, segundo penso, observações mais que relevantes para o Brasil de
hoje.
Em Diários Intermitentes (póstumo, recém-lançado), Celso
Furtado reflete sobre os políticos profissionais que conheceu de perto: “... um
político puro, em última instância, decide em função das chances pessoais que
tem para continuar ocupando espaço”. A observação é verdadeira, mas pode ser
ampliada: não existe vácuo na política, espaços estão sempre a ser disputados.
A estratégia voltada para a sua conquista, manutenção ou ampliação é
constantemente revisitada à luz de fatos novos, crenças pessoais e, espera-se,
alguns valores, lealdades, princípios e espírito público.
O papel de lideranças políticas responsáveis, em particular
do presidente da República e seus principais colaboradores, é o de contribuir
para reduzir – e não aumentar – os graus de incerteza sobre o futuro. Não com
promessas, bravatas e discursos contra inimigos do País e do povo, internos ou
externos. Mas com propostas de políticas públicas, o que exige exercício
consistente de abertura ao diálogo, com base em moderação, serenidade, postura
e compostura; exercício apto a inspirar um mínimo de confiança e cooperação na
busca de (compartilhados) objetivos maiores. Árdua tarefa.”
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